24 dezembro 2009

A dificuldade de entender Waterloo

  Receio que o grupo me tire a coragem de pensar diferente e declarar a divergência


NA SEMANA retrasada, evoquei um episódio de 1975. Numa célula do Partido Comunista Italiano, em Milão, um companheiro fez um comentário infeliz sobre a sexualidade de Pier Paolo Pasolini, que acabava de ser assassinado. Eu saí, consternado, e o episódio foi o fim da parte de minha vida em que pude ser militante.

O que abandonei naquela época foi a militância, não a política. Meu interesse pela política continua forte até hoje, mas algo mudou. Desconfio de partidos, grupos e aglomerações; mais especificamente, desconfio das falsas concordâncias que surgem entre os membros de partidos ou grupos. Sempre receio que o grupo me tire a coragem de pensar diferente e declarar a divergência.

Existe uma antiga "prova" da existência de Deus, que se chama prova pelo "consenso das gentes", ou seja, algum deus (que, por acaso, é sempre "o nosso") deve existir "porque" todos os povos têm ao menos a ideia da existência de uma divindade. A única coisa que esse argumento me parece provar é que preferimos a tranquilidade de viver concordando com os amigos à tarefa solitária de pensar por nossa conta.

Claro, aquele episódio de 75 não foi a única razão que me afastou da militância partidária. Também no começo dos anos 70, devo ter lido "Darkness at Noon" (escuridão ao meio dia), o livro em que Arthur Koestler diz adeus ao comunismo.

E, na mesma época, li "The God that Failed" (o Deus que falhou), uma coletânea de textos de intelectuais ex-comunistas, publicada em 1949, por Richard Crossman (reli o livro agora, numa reimpressão ainda disponível, de 2001, pela Columbia University Press). A geração dos militantes à qual pertencem os autores reunidos no livro (André Gide, Richard Wright, Ignazio Silone, Stephen Spender, Louis Fischer e Arthur Koestler) se dividiu em duas categorias.

De um lado, os impenitentes, tipo Eric Hobsbawm, que não querem desistir de seus ideais: se, como disse Enrique IV ao tornar-se católico por conveniência política, "Paris vale uma missa no domingo", por que o comunismo não valeria purgas, massacres e perda de liberdade? Do outro lado, os arrependidos, que buscam expiar a culpa de ter acreditado em ideias ensanguentadas.

Minha geração, que veio depois, ficou logo cética, mas, em sua descrença, sem originalidade. Já no século 19, Gustave Flaubert, no divertido "Dicionário das Ideias Feitas" (Nova Alexandria), escrevia: "Ilusões: sempre dizer que tivemos muitas, mas que as perdemos todas" (cito de memória). Acontece que, logo nestes dias, recebi um e-mail inesperado de um amigo que não via há mais de 30 anos. Um amigo da época daquele episódio de 1975. Iniciamos uma correspondência: cada um de nós está tentando contar ao outro por qual caminho sua vida enveredou.

Aquém disso, tentamos também reconstruir nossas experiências daqueles dias, entre 1968 e 1979, que é quando a gente se perdeu de vista. Ora, talvez se trate de um efeito normal do tempo que passou, mas o fato é que, apesar dos esforços (dele e meus), aquele passado me parece cada vez mais caótico e estrangeiro.

Mais do que qualquer ensaio, é um texto literário que resume melhor (aliás, não resume, descreve) minha sensação ao refletir sobre aquela época. Trata-se da "Cartuxa de Parma", de Stendhal (ed. Globo). Quem leu deve se lembrar da aventura do protagonista, Fabrice del Dongo.

O jovem Fabrice é um grande admirador nem tanto de Napoleão, mas das ideias de liberdade que o imperador francês encarnou e difundiu Europa afora. Aos 17 anos, em 1815, o que sobra ao nosso herói é a esperança de se juntar a Napoleão na hora de sua tentativa extrema de voltar ao palco da história, depois do exílio na ilha de Elba.

Fabrice, que mal fala francês, vaga pela França até encontrar um hussardo morto, veste seu uniforme com orgulho (e vaidade) e, com isso, por acaso, envolve-se, ou melhor, é envolvido na batalha de Waterloo, onde Napoleão será definitivamente derrotado. Quanto a Fabrice, ele será ferido pela espada amiga de outro francês e, sobretudo, não entenderá absolutamente nada da batalha, que aparecerá, aos seus olhos, como uma frenética alternância de idas e voltas de cavalheiros num nevoeiro de balas perdidas.

Fabrice, aliás, uma vez chegado de volta em casa, não parará de se perguntar: "Será que eu estive mesmo na batalha de Waterloo?". Saio de férias, retomo em 28 de janeiro. Bom fim e bom começo de ano a todos.

17 dezembro 2009

Salas dos passos perdidos




O Natal anuncia que a vida é uma viagem, que somos todos -como Jesus- viajantes


NATAL É uma das épocas do ano em que mais viajamos.

Isso é especialmente verdadeiro no hemisfério Sul. Ao Norte do equador, as pessoas tentam reunir suas famílias, que foram dispersas pelo tempo, pelos casamentos, pelas perspectivas de trabalho ou, simplesmente, por cada indivíduo ter anseios de independência e vontade de tocar a vida por conta própria. Ao Sul do equador, a essa vontade de reunião de família, acrescenta-se a proximidade das férias de verão: junte Natal com o Ano Novo, use 15 dias de férias, e lá vamos nós.

Por essa razão, no Natal, as rodoviárias e os aeroportos são sempre abarrotados, pelos viajantes e por seus restos voluntários (lixo) e involuntários (malas extraviadas e crianças perdidas). A quem viaja, aconselha-se levar consigo o necessário para encarar, sem demasiado tédio, filas e esperas intermináveis. É um paradoxo: "Chegue antes porque, de fato, o voo partirá só bem depois do horário previsto".

Seja como for, muitos de nós passarão um bom tempo naqueles espaços intermediários que são os saguões, as salas de espera, as salas de embarque, em suma, os cenários (menos fugazes do que gostaríamos) de nosso trânsito.

Uma bonita expressão francesa designa esses espaços como "salles des pas perdus", com ou sem hífen, que significa "salas dos passos perdidos". Não sei se existe uma etimologia definitiva dessa expressão, mas parece que, originalmente, salas dos passos perdidos são os átrios dos tribunais de Justiça, onde as partes, depois de ter exposto seus argumentos, esperam a decisão da corte em intermináveis idas e voltas de passos "perdidos", ou seja, movidos só pela ansiedade e pela incerteza quanto ao futuro.

Hoje, a expressão se refere também às salas de espera e aos vestíbulos centrais dos aeroportos e das estações ferroviárias, em suma, a aqueles lugares onde fazemos a hora batendo pernas, lugares que, simplesmente, não são nem nossa origem nem nosso destino, mas sempre apenas transições.

Já assisti a noticiários televisivos de 25 de dezembro em que a notícia eram os "infelizes" que, entre atrasos, tempestades e "overbooking", passaram a noite do dia 24 no saguão de uma aeroporto. Logo no Natal; é o cúmulo, não é?

Nem tanto. Pense bem, o Natal cristão celebra um nascimento, o de Jesus, que acontece num estábulo, que, para quem viajava a dorso de mula ou de jumento, 2.000 anos atrás, era o equivalente de uma rodoviária ou de um aeroporto.

O Natal anuncia que a vida é uma viagem, não só porque estaríamos em trânsito para outro lugar onde seremos recompensados ou punidos para sempre, mas porque somos todos, como o recém-nascido da festa, viajantes: ninguém vale pela sua ascendência, pelo lugar onde nasceu ou pela tradição a qual ele pertence, mas cada um vale pelo que ele conseguirá fazer com sua vida.

Leitura natalina: no começo do romance de W. G. Sebald, "Austerlitz" (Companhia das Letras), o narrador encontra o professor Austerlitz na sala dos passos perdidos da estação de Antuérpia. Detalhe: se o professor Austerlitz tem um interesse muito especial pelas estações de trem, seus átrios e suas salas de espera, é porque o mundo é uma gigantesca sala dos passos perdidos, em que estamos todos, sempre, em trânsito ou talvez (numa veia mais kafkiana) caminhando em círculos, angustiados, na espera de algum oficial público que nos diga, enfim, qual foi a decisão da corte.

Música natalina: "Salle des Pas Perdus", de 2001, é o primeiro CD de Coralie Clément (uma jovem cantora francesa, que canta com uma voz ofegante, estilo anos 1960-70). Na letra da música que dá o título ao CD, uma jovem escreve a um moço, propondo-lhe um encontro num café, depois de ter cruzado com ele no vestíbulo do prédio (em que ambos moram, talvez) e no átrio da estação St. Lazare. "Você sente meu perfume a cada noite, no vestíbulo do prédio", mas, mesmo assim, a gente poderia nunca se encontrar.

Precisamos aprender a viver e a encontrar os outros nas salas dos passos perdidos. Precisamos inventar a arte de viver em trânsito.

E me ocorre que a maior (única?) artista da vida em trânsito é Sophie Calle. Sua maravilhosa exposição, "Cuide de Você", deixou São Paulo e está agora no Museu de Arte Moderna do Rio, até fevereiro 2010.

Mas estou divagando (é o que a gente faz nas salas dos passos perdidos); só queria dizer isto a quem viaja no Natal: console-se, Natal é também uma festa para transeuntes.

ccalligari@uol.com.br

10 dezembro 2009

Lembranças de César Benjamin




Quase sempre, para ganhar a cumplicidade de todos, temos de apostar no que é boçal


QUANDO A ditadura chegou, em 1968, aos 14 anos, César Benjamin militava no movimento estudantil secundarista. Preso em 1971, ele ficou na cadeia até ser expulso do país, em 1976. Mais tarde, em 1980, participou da fundação do PT. Em 1995, ele saiu do partido.
Na sexta-feira retrasada, a Folha publicou um artigo de César Benjamin, sob o título "Os Filhos do Brasil".
 
Nele, Benjamin começa por evocar situações de seu cativeiro, em que presos comuns o respeitaram, embora tivessem sido "incentivados" a estuprá-lo.

Logo, Benjamin narra um episódio de 1994, quando ele trabalhava na campanha eleitoral de Lula. Durante um almoço, Lula, ao aprender que Benjamin ficara preso durante anos, teria comentado: "Eu não aguentaria. Não vivo sem boceta". A seguir, Lula teria narrado como, nos 30 dias que durara sua detenção durante a ditadura, ele tinha tentado "subjugar" (sexualmente) um "menino do MEP" (Movimento de Emancipação do Proletariado), o qual tinha resistido a cotoveladas e socos.

Benjamin conclui que não assistirá ao filme "O Filho do Brasil" porque o "culto à personalidade" sempre contrasta com a "complexidade da condição humana".
Claro, leitores e comentadores do artigo de Benjamin pediram que "os fatos" fossem apurados. Mas quais fatos?

O fato relatado por Benjamin é o almoço de 1994. Quanto ao que foi dito nesse almoço, Silvio Tendler, publicitário, que estava presente, parece confirmar a letra, mas não o espírito da conversa: "Aquilo foi uma brincadeira, uma piada que ele [Benjamin] tenta transformar em drama".

Como fica, então, a história do "menino do MEP"? Um leitor (José Cláuver, de Macaé, RJ) entende assim: Lula deve ter feito "um relato em tom de chacota, vangloriando-se de sua "macheza", querendo dizer que "traçaria" quem lhe desse oportunidade, num momento de carência sexual. "Macho que é macho não nega fogo!'".

Concordo com José Cláuver e posso facilmente imaginar que Lula, em 1994, tenha inventado a história do "menino do MEP" só porque ela parecia cair bem na conversa, porque era um jeito fácil de cimentar uma cumplicidade entre "homens".

Claro, naquele almoço de 94, visto o passado de César Benjamin, a chacota não tinha como funcionar: o que, para Lula, devia ser uma piada logo esquecida só podia ficar como um horror inesquecível para Benjamin.

Resta acrescentar: saber criar, com poucas palavras, laços imediatos de cumplicidade e companheirismo é uma qualidade, um talento social e político. Infelizmente, quase sempre, a cumplicidade mais fácil é encontrada em nossos denominadores comuns mais estúpidos: a piada que faz rir a todos é a mais boçal.

Era 1975. Eu estava em Milão para Finados, dia em que acompanhava meus pais na visita às tumbas de familiares e amigos.

No dia 3 ou 4 (feriado na Itália), fui para uma reunião ordinária da célula do Partido Comunista de meu bairro. Clima perfeito para os anos de chumbo: a cada vez que entrava um companheiro, a neblina da rua, insinuando-se na sala, confundia-se com a fumaça dos cigarros. Cheguei tarde e sentei perto da porta. Alguém começou a reunião informando: "Companheiros, morreu P... P...P...P...". Falou como se estivesse gaguejando na letra P.
Outro (provavelmente numa piada ensaiada) repetiu, perguntando "P, P, P, P?". "É", explicou o primeiro, contando nos dedos, "Pier, Paolo, Pasolini, Pederasta". Todos riram.

Recuei até a porta e saí para a rua. Atrás de mim saiu Mario Spinella. A princípio, numa reunião como aquela, Mario teria tomado a palavra e empurrado aquela risada de volta para a garganta de todos -ele tinha paciência e cacife para isso. Mas, naquela noite, o cansaço o venceu. Caminhamos em silêncio, constrangidos e envergonhados, até à casa dele, que funcionava, de fato, como uma espécie de biblioteca aberta dia e noite.

Mais tarde, a casa encheu. Alguém decidiu ser engraçado e encenou a morte de Pasolini na praia de Ostia em dialeto friulano.

Quando fui embora, Mario me acompanhou até a porta e me disse: "Pois é, a boçalidade não é uma prerrogativa de classe".

Cheguei à casa dos meus pais pela meia-noite. Meu pai estava lendo, numa poltrona da sala. Peguei, na estante de poesia, "As Cinzas de Gramsci" (que ainda é o Pasolini que prefiro) e sentei ao lado dele.

Ele disse: "Que bom que você voltou". E ficamos lendo, cada um seu livro, madrugada adentro. Foi a última vez que frequentei a célula de um partido político.

ccalligari@uol.com.br

03 dezembro 2009

Presentes de Natal




Para quem os recebe, nossos presentes valem pouco mais da metade do que eles nos custam


TUDO INDICA que vai ser um "grande" mês de dezembro.

Compraremos e distribuiremos presentes como nunca; provaremos de vez que o país saiu da crise de 2008.

De qualquer forma, o Brasil já está entre os campeões mundiais em extravagância perdulária natalina.

Claro, há muitos países ricos que, no Natal, gastam mais do que a gente, mas o que vale, nessa classificação, não são os valores absolutos, mas as vendas do varejo no mês de dezembro comparadas com as dos meses contíguos. Ora, em dezembro, no Brasil, a gente gasta por volta de 40% a mais do que na média de novembro e janeiro.
Não quero criticar o costume de oferecer presentes e os "excessos" das festas. A questão que me interessa é outra: toda consideração moral à parte, será que os gastos natalinos são um bom negócio para a economia? Ou seja, gastando para presentes e ceias, estamos mesmo criando e distribuindo riqueza?

Joel Waldfogel, professor da Wharton (a famosa escola de administração da Universidade da Pensilvânia), acaba de publicar um pequeno livro, seriíssimo e divertido, "Scroogenomics - Why You Shouldn't Buy Presents for the Holidays" (Scroogeconomia - por que você não deve comprar presentes para as festas; Princeton Univ. Press). O livro defende a tese seguinte: o Natal é uma calamidade econômica, durante a qual nossas sociedades, a cada ano, destroem riquezas consideráveis.

Para começar, Waldfogel repetiu em vários contextos culturais uma mesma experiência: perguntou a grupos de presenteados quanto eles se disporiam a pagar para adquirir os objetos que acabavam de receber.

No Brasil, em 2008, o resultado foi o seguinte: em média, os presenteados estariam dispostos a pagar, pelos presentes que tinham recebido, 47% a menos do que os ditos presentes tinham custado para os presenteadores. Ou seja, 47% do que foi gasto pelos presenteadores não produziu valor nenhum, perdeu-se na transação.

Digamos que comprei para você, por R$ 100, um objeto pelo qual você pagaria, no máximo, R$ 53. Claro, minha despesa subvencionou o comércio e a produção do objeto que comprei, mas ela foi uma catástrofe econômica: quase a metade do que gastei não serviu para nada. Joguei dinheiro fora.

Quer a gente goste ou não da tradição natalina de trocar presentes, seria bom, comenta Waldfogel, que conseguíssemos, ao menos, tornar essa troca mais produtiva. Obviamente, Waldfogel aprova o uso do vale-presente (embora, nos EUA, misteriosamente, um vale-presente em cada dez não seja nunca resgatado) e nos encoraja a oferecer dinheiro, sem constrangimento.

Talvez fosse bom mesmo racionalizar nossas trocas natalinas, mas, antes disso, três observações.

1) Por que oferecemos presentes?
Resposta óbvia: para produzir a maior satisfação possível no presenteado, para fazê-lo feliz.
Talvez, mas vamos devagar. Por exemplo, é bem possível que a troca natalina de presentes seja sobre tudo um gigantesco "potlatch", como dizem os antropólogos, ou seja, uma maneira de torrarmos festivamente nossos recursos (dinheiro, bens e tempo) só para manifestar nossa riqueza (grande ou pequena) aos outros, ao céu e a nós mesmos. Além disso, cada um presenteia amigos e inimigos por razões que pouco têm a ver com a intenção de fazer o outro feliz. Há presentes pedagógicos e paternalistas (ofereço um vale-livros ao primo que não gosta de ler e uma camiseta P ao maridão que virou um boto), assim como há presentes que servem só para intimidar os presenteados (no estilo: "Este, meu caro, você nunca vai poder retribuir".).

2) Será mesmo que qualquer presenteado saberia escolher seu próprio presente melhor do que qualquer presenteador, por generoso e bem intencionado que esse seja?
Duvido: basta considerar a montanha de trapos e quinquilharia que apodrece em nossos armários e estantes (tudo adquirido por nós mesmos) para saber que nossas próprias escolhas são tão incertas quanto as dos que tentam nos presentear.

3) Quando alguém que amo (e que me ama) me oferece um presente, não espero receber aquele objeto que quero e procuro há tempo -claro, vou gostar de receber isso, e vai ser uma festa, mas, cá entre nós, esse tipo de coisa posso encontrar e comprar sozinho. De quem me ama, espero muito mais: espero receber algo que, até então, literalmente, eu não sabia que eu queria. O verdadeiro presente é aquele que me revela meu próprio desejo.
Enfim, boas compras de Natal.

ccalligari@uol.com.br

26 novembro 2009

Adultos infantilizados




A infantilização do consumidor é peça chave do espírito do capitalismo atual


D URANTE O feriado, nos cinemas, só dava "Lua Nova", de Chris Weitz, "2012", de Roland Emmerich, e "Os Fantasmas de Scrooge", de Robert Zemeckis. Claro, havia outros filmes, mas meio que perdidos na programação.
 
Imaginemos que você preferisse ler um romance e consultasse a lista dos mais vendidos. Você encontraria cinco títulos de Stephenie Meyer (a autora da saga de vampiros, cujo segundo volume inspira o filme "Lua Nova"), dois volumes dos "Diários do Vampiro", de L. J. Smith, e, no fim, "O Pequeno Príncipe".

Ora, assisti a "Os Fantasmas de Scrooge" (não perderia um filme de Zemeckis, o diretor de "Forrest Gump") e achei excelente; vi de óculos, em 3D, deleitando-me com a atmosfera encantada: como disse uma menina, nevava na sala de cinema. Não vi "Lua Nova", mas gosto da saga de Meyer, sobre a qual escrevi nesta coluna, assim como escrevi sobre o primeiro filme da série, "Crepúsculo". Além disso, aposto que me divertiria com a fantasia catastrófica de "2012"; Emmerich já me divertiu com "Independence Day". Enfim, tenho uma lembrança comovida de "O Pequeno Príncipe".

Então, por que me queixaria dessa preponderância de filmes e livros obviamente infantojuvenis? Não me queixo, apenas constato: nas salas de cinema ou nas livrarias, aparentemente, os adultos devem ser uma pequena minoria, com a exceção, é claro, dos que acompanham suas crianças ou as presenteiam com livros. Estou sendo irônico: é claro que os grandes consumidores de filmes e livros infantojuvenis só podem ser os adultos.

Domingo, um amigo editor me explicava, justamente, que o filé mignon atual são os "crossovers", ou seja, as obras que "atravessam", que seduzem tanto as crianças quanto os adultos. O best-seller e o blockbuster ideais são histórias supostamente para crianças e adolescentes, mas capazes de conquistar os leitores e os espectadores adultos.

Se consultarmos a lista dos livros mais vendidos de não ficção, a conclusão é a mesma. Como assim? Os ensaios não são o domínio reservado e sisudo dos adultos? Artifício: o sucesso dos livros de autoajuda forçou os jornais a separá-los dos de não ficção, mas, de fato, os mais vendidos de não ficção são os livros de autoajuda. Ora, o texto de autoajuda se relaciona com o leitor como com alguém que precisa e prefere ser guiado, orientado, ajudado a pensar, decidir e agir, ou seja, relaciona-se com o leitor como com uma criança.

Pois bem, Benjamin Barber, no seu novo livro, "Consumido - Como o Mercado Corrompe Crianças, Infantiliza Adultos e Engole Cidadãos" (Record), apresenta a infantilização do consumidor não como um acidente cultural momentâneo, mas como a peça chave do espírito do capitalismo contemporâneo.

Barber é convincente e divertido: chegaram os "kidadults", os "criançultos". O drama do dia não é que as crianças sejam alvo do mercado, mas que o mercado esteja transformando os adultos em crianças.

Por que o mercado prefere lidar com "criançultos"? E o que nos predispõe a sermos infantilizados? Uma breve hipótese. Houve, sobretudo a partir da segunda metade do século 20, uma explosão de um tipo especial de amor dos pais pelos filhos, um amor feito de esperanças e expectativas monstruosas (as crianças serão o que quisemos e não conseguimos ser, nada lhes faltará). Esse tipo de amor parental cria consumidores ideais: por exemplo, indivíduos com pouquíssima tolerância à frustração (e alergia à própria ideia de que algo seja difícil ou, pior, impossível) e com uma imperiosa necessidade de satisfação imediata (e alergia a tudo o que posterga: preparação, estudo, reflexão, complexidade, poupança).

Alguém dirá: e daí, qual é o problema? Exemplo. João quer ser rapper na África do Sul e gasta, impulsivamente, o décimo terceiro da mãe na roupa certa para se parecer com seus ídolos. Para ser rapper na África do Sul, talvez fosse mais urgente que ele estudasse inglês seriamente. Mas essa observação poderia entristecer João. Melhor deixá-lo sonhar e confundir sua mascarada com o começo da realização de seu desejo; afinal, ele é feliz assim, não é? Pois é, suposição errada: quem cresce sem nunca se deparar com o impossível ou mesmo com o difícil, acaba, mais cedo mais tarde, vivendo no desespero. Por quê? Simples (como um filme para crianças): ele só consegue atribuir seus fracassos ao que lhe parece ser sua própria impotência.
ccalligari@uol.com.br

19 novembro 2009

"In vino veritas"




A educação dos gostos pode parir inquietante uniformidade; é o que acontece com o vinho



DUAS SEMANAS atrás, enquanto saboreávamos uma garrafa de Pomerol, um amigo me contou que, durante uma viagem recente, seus anfitriões chineses tinham insistido para que ele experimentasse um vinho da parte da Mongólia que é região autônoma da China. Meu amigo se preparou para o pior, mas, surpresa, o vinho da Mongólia era um cabernet muito parecido com um bom Bordeaux.

Melhor para meu amigo. Mas duvido que a terra da Mongólia seja igual à das colinas bordelesas. Tampouco o cultivo da vinha cabernet é uma tradição mongol.

Em compensação, numa pesquisa na internet, encontrei ao menos um viticultor da Mongólia que declara envelhecer seu vinho, durante dois anos, em barris de carvalho importados da França. Esse processo confere ao vinho gosto e buquê específicos, que, nos últimos 20 anos, tornaram-se uma espécie de padrão do vinho da região de Bordeaux. Resultado: o vinho da Mongólia está pronto para satisfazer a maioria dos consumidores americanos, europeus etc., mas nunca saberemos o que teria sido um vinho da Mongólia, se ele tivesse existido. Os viticultores da Mongólia perderam a chance de inventar uma cultura do vinho que lhes seja própria, e nós, a de apreciar um gosto novo, diferente. O mundo perdeu um pouco de sua diversidade possível.

"In vino veritas" significa que o vinho solta a língua: quem bebe revela verdades. Lendo "Gosto e Poder", de Jonathan Nossiter (Companhia das Letras; Nossiter é o diretor do filme "Mondovino", de 2004), a expressão ganha outro sentido: a evolução do vinho, nas últimas três décadas, mundo afora, diz verdades incômodas sobre os perigos da globalização, ou seja, sobre um processo que transforma não só os produtos dos quais fruímos mas também o nosso gosto.

Em 1899, Thorstein Veblen previa que, "no futuro", o consumo ostensivo de artigos de luxo não seria suficiente para confirmar o privilégio de classe. O consumidor, ele pensava, deverá se tornar um entendedor, capaz de ostentar seu saber sobre os objetos que ele consome (Veblen listava: roupa, arquitetura, drogas e, é claro, bebida).

A necessidade de cultivar a faculdade estética e de conversar sobre o gosto levará os mais ricos a abandonar a vida ociosa para se instruir um pouco -o suficiente para justificar as escolhas e as preferências.

Essa transformação prevista por Veblen tem um lado simpático: afinal, mesmo quem não dispuser dos meios para adquirir e usufruir terá acesso ao saber sobre o que seria bom consumir, e esse saber "enobrecerá" o consumidor, promovendo-o socialmente pela educação dos gostos. Problema: a "educação dos gostos" é capaz de parir uma inquietante uniformidade do gosto. A história recente do vinho, mostra Nossiter, é um exemplo disso. Três tempos:

1) O consumidor "futuro" de Veblen pode aprender tudo sobre "domaines" e safras, mas esse esforço não o dispensa de justificar suas escolhas pelo próprio prazer que seu vinho preferido lhe proporciona. Aqui, ele encontra duas dificuldades. Como descrever e transmitir esse prazer? E como se certificar de que sua preferência não seja singular e arbitrária?

2) Imaginemos que, nesta hora, surja alguém (Robert Parker?) que invente uma linguagem para descrever as qualidades gustativas e olfativas do vinho. Se for uma linguagem barroca e um tanto tola, melhor ainda: seu uso meio hermético confortará o consumidor com a impressão de pertencer a uma "confraria".

E imaginemos que o mesmo Parker proponha seu próprio gosto como critério universal de classificação de todos os vinhos.

Eis que o consumidor "futuro" dispõe das palavras que ele procurava e de um sistema classificatório que, se ele o aceitar, tornará seu gosto menos questionável e "arbitrário". Claro, são as palavras e o gosto de um outro, mas nada é perfeito, não é?

3) Imaginemos agora que um enólogo amigo de Parker (Michel Rolland?) descubra e comercialize a receita para transformar os vinhos de quase qualquer território (por que não da Mongólia?) de modo que correspondam ao gosto de Parker, que se tornou o gosto de quase todos. Em suma, a dita educação dos gostos produziu o triunfo de um gosto só (e, é claro, um excelente negócio).

A todos, boa leitura e boa meditação sobre o futuro de nosso gosto globalizado. Só uma coisa: nem tudo é ruim na globalização. Por exemplo, sou a favor da aparição de queijos "tipo" taleggio, camembert etc. no meio da cultura autóctone do queijo de minas e do queijo prato. E talvez, sem os barris franceses, o vinho da Mongólia seja intragável. Mas essa é outra história.

12 novembro 2009

Impasse de um sonho moderno?




O sonho de um mundo que seja uma nação só, integrando etnias e culturas, ainda vale?


NA SEMANA passada, na base militar de Fort Hood, Texas, um major-psiquiatra do Exército dos EUA, Nidal Malik Hasan, 39, saiu atirando. Com a exceção de um civil, suas vítimas (13 mortos e 27 feridos) foram seus companheiros de armas.
 
Hasan é muçulmano, nascido nos EUA de imigrantes palestinos, e estava na iminência de partir para a guerra do Afeganistão. Será que o Exército deveria ter previsto um conflito possível entre sua religião e seu serviço numa guerra contra o Taleban e outros extremistas islâmicos? Será que o Exército deveria ter considerado que, por ser muçulmano, Hasan não seria apto a servir? E será que, depois desse incidente, o Exército dos EUA adotará, explícita ou silenciosamente, a política de dispensar os muçulmanos do serviço militar ativo?
 
Do ponto de vista logístico, seria inócuo: há 3.000 soldados de religião muçulmana num exército de mais de meio milhão. Mas pense bem: você gostaria de ser cidadão de um país que desconfiasse de você, a ponto de lhe proibir servir nas Forças Armadas?
 
Domingo, no canal de TV CBS, o senador Lindsey Graham, republicano, declarou que o ato de Hasan "não tem nada a ver com religião, nada a ver com o fato de que esse homem é muçulmano".
 
Certo, tudo indica que Hasan não é um terrorista islâmico; também seria inexato dizer que sua religião o levou a sair atirando. Mas é ingênuo imaginar que a "explosão" de Hasan não tenha nada a ver com uma contradição entre sua religião e a iminência de seu serviço no Afeganistão ou mesmo com seu ofício do momento (quais expressões de ódio contra sua fé e sua ascendência ele ouviu dos veteranos traumatizados de quem ele se ocupava como psicoterapeuta, há meses?).
 
A explicação da declaração apressada de Graham está nas palavras do general George Casey, chefe de Estado-Maior do Exército, que quis imediatamente prevenir a tentação de excluir os muçulmanos das Forças Armadas: "Seria uma vergonha", ele disse, "se nossa diversidade fosse mais uma vítima (dessa matança)".
 
Se isso acontecer, seria, de fato, uma derrota não do Exército dos EUA, mas de um ideal moderno que os EUA, bem ou mal, tentam encarnar desde sua fundação -ou seja, o sonho de um país em que a ascendência, a etnia e a religião dos cidadãos não implicariam nenhuma diferença de cidadania (sonho reavivado, mundo afora, pela eleição de Obama).
Durante a Segunda Guerra Mundial, os EUA segregaram os descendentes de japoneses. Desconfiaram da etnia mais do que da ascendência, pois, à diferença do que aconteceu aqui, os descendentes de italianos ou alemães não foram segregados nem afastados do serviço militar.
 
Embora combatessem contra a nação que fora a pátria dos pais ou avós, esses soldados não viveram dramáticos conflitos entre patriotismos opostos. Podiam ser alemães ou italianos pelo passado, pela tradição, pela língua ou pela relação com a terra, mas eram americanos por algo diferente, que prevalecia: ideias, projetos, sonhos comuns.
 
Um desses sonhos (que vale para quase todas as nações americanas) é o sonho de uma nação parecida com o que seria o mundo se ele pudesse ser uma nação só, milagrosamente capaz de incluir e integrar cidadãos de qualquer etnia, história e cultura.
 
O problema (de Lindsey Graham, de George Casey e talvez de todos nós) é evitar que Hasan seja transformado numa espécie de homem-bomba cultural: uma prova de que há diferenças que resistem a quaisquer desejo e esforço de integração, intatas, no âmago do indivíduo, até explodirem um dia.
 
  A novela da Uniban continua. Na sexta passada, por decisão do Conselho Universitário da Uniban, Geisy Arruda, ameaçada de estupro e linchamento coletivos, foi expulsa da universidade, porque, "claro", tudo isso aconteceu por ela ter tido posturas provocantes. Em caso de estupro, aliás, a gente sabe que a culpa é sempre da mulher; quem manda usar minivestido, hein? São todas putas, não é? Gostam de provocar e depois se queixam se os garotos as tratam como merecem.
 
Eu achava mesmo que esses papos sinistros só sobrevivessem nos piores botecos e, mesmo assim, em horário avançado. Talvez o Conselho da Uniban, para chegar à sua decisão, tenha se reunido num boteco. Numa universidade é que não pode ter sido.

Bom, na última segunda, o reitor da Uniban revogou a expulsão de Geisy. "Imparcial", também revogou a suspensão de seis alunos identificados entre os agressores.

ccalligari@uol.com.br

06 novembro 2009

A turba da Uniban




As turbas têm um ponto em comum: detestam a ideia de que a mulher tenha desejo próprio


NA SEMANA passada, em São Bernardo, uma estudante de primeiro ano do curso noturno de turismo da Uniban (Universidade Bandeirante de São Paulo) foi para a faculdade pronta para encontrar seu namorado depois das aulas: estava de minivestido rosa, saltos altos, maquiagem -uniforme de balada.
 
O resultado foi que 700 alunos da Uniban saíram das salas de aula e se aglomeraram numa turba: xingaram, tocaram, fotografaram e filmaram a moça. Com seus celulares ligados na mão, como tochas levantadas, eles pareciam uma ralé do século 16 querendo tocar fogo numa perigosa bruxa.

A história acabou com a jovem estudante trancada na sala de sua turma, com a multidão pressionando, por porta e janelas, pedindo explicitamente que ela fosse entregue para ser estuprada. Alguns colegas, funcionários e professores conseguiram proteger a moça até a chegada da PM, que a tirou da escola sob escolta, mas não pôde evitar que sua saída fosse acompanhada pelo coro dos boçais escandindo: "Pu-ta, pu-ta, pu-ta".

Entre esses boçais, houve aqueles que explicaram o acontecido como um "justo" protesto contra a "inadequação" da roupa da colega. Difícil levá-los a sério, visto que uma boa metade deles saiu das salas de aula com seu chapéu cravado na cabeça.

Então, o que aconteceu? Para responder, demos uma volta pelos estádios de futebol ou pelas salas de estar das famílias na hora da transmissão de um jogo. Pois bem, nos estádios ou nas salas, todos (maiores ou menores) vocalizam sua opinião dos jogadores e da torcida do time adversário (assim como do árbitro, claro, sempre "vendido") de duas maneiras fundamentais: "veados" e "filhos da puta".

Esses insultos são invariavelmente escolhidos por serem, na opinião de ambas as torcidas, os que mais podem ferir os adversários. E o método da escolha é simples: a gente sempre acha que o pior insulto é o que mais nos ofenderia. Ou seja, "veados" e "filhos da puta" são os insultos que todos lançam porque são os que ninguém quer ouvir.

Cuidado: "veado", nesse caso, não significa genericamente homossexual. Tanto assim que os ditos "veados", por exemplo, são encorajados vivamente a pegar no sexo de quem os insulta ou a ficar de quatro para que possam ser "usados" por seus ofensores. "Veado", nesse insulto, está mais para "bichinha", "mulherzinha" ou, simplesmente, "mulher".

Quanto a "filho da puta", é óbvio que ninguém acredita que todas as mães da torcida adversa sejam profissionais do sexo. "Puta", nesse caso (assim como no coro da Uniban), significa mulher licenciosa, mulher que poderia (pasme!) gostar de sexo.

Os membros das torcidas e os 700 da Uniban descobrem assim um terreno comum: é o ódio do feminino -não das mulheres como gênero, mas do feminino, ou seja, da ideia de que as mulheres tenham ou possam ter um desejo próprio.

O estupro é, para essas turbas, o grande remédio: punitivo e corretivo. Como assim? Simples: uma mulher se aventura a desejar? Ela tem a impudência de "querer"? Pois vamos lhe lembrar que sexo, para ela, deve permanecer um sofrimento imposto, uma violência sofrida -nunca uma iniciativa ou um prazer.

A violência e o desprezo aplicados coletivamente pelo grupo só servem para esconder a insuficiência de cada um, se ele tivesse que responder ao desejo e às expectativas de uma parceira, em vez de lhe impor uma transa forçada.

Espero que o Ministério Público persiga os membros da turba da Uniban que incitaram ao estupro. Espero que a jovem estudante encontre um advogado que a ajude a exigir da própria Uniban (incapaz de garantir a segurança de seus alunos) todos os danos morais aos quais ela tem direito. E espero que, com isso, a Uniban se interrogue com urgência sobre como agir contra a ignorância e a vulnerabilidade aos piores efeitos grupais de 700 de seus estudantes. Uma sugestão, só para começar: que tal uma sessão de "Zorba, o Grego", com redação obrigatória no fim?

Agora, devo umas desculpas a todas as mulheres que militam ou militaram no feminismo. Ainda recentemente, pensei (e disse, numa entrevista) que, ao meu ver, o feminismo tinha chegado ao fim de sua tarefa histórica. Em particular, eu acreditava que, depois de 40 anos de luta feminista, ao menos um objetivo tivesse sido atingido: o reconhecimento pelos homens de que as mulheres (também) desejam. Pois é, os fatos provam que eu estava errado.

ccalligari@uol.com.br

29 outubro 2009

Clichês de vida e de morte



O soldado do tráfico quer ser um enlatado cultural, um produto de massa desejado


NA SEMANA passada, na zona norte do Rio de Janeiro, durante um conflito entre os traficantes do morro dos Macacos, na Vila Isabel, e os do morro de São João, em Engenho Novo, um helicóptero da Polícia Civil foi derrubado a tiros. Enquanto a guerra entre as facções do tráfico continua, a polícia tenta encontrar os responsáveis e, quem sabe, "reconquistar" esses e outros morros cariocas. Essa conjuntura produziu, ao longo da semana, numerosas mortes e algumas imagens assombrosas.

A mais comentada, Brasil afora, foi uma fotografia de Marcelo Sayão/Efe: ela mostra um corpo torturado e baleado, que foi achado, na terça-feira, dentro de um carrinho de supermercado, nas proximidades do morro dos Macacos.

Na foto, ao redor do carrinho, há nove adolescentes, meninos e meninas; um deles, vestido a caráter, carrega um skate; dois usam chapéus de beisebol; só um veste uma camiseta sem logotipos e marcas, branca; alguns esticam o pescoço para examinar o cadáver (ocultado parcialmente por um saco de lixo).

No mesmo dia ou nos dias seguintes, não sei mais, esbarrei em outra fotografia, cujo tema era mais usual e de cujo autor, infelizmente, não me lembro. Nela, um soldado do tráfico está em cima da laje de uma casa que é situada, provavelmente, nas alturas do morro.

A cena é fotografada de baixo, como se fosse vista por alguém que está tentando subir -por exemplo, um invasor, seja ele policial ou traficante de outra quadrilha. Com o rosto escondido pela camiseta revirada e transformada em capuz (mas quem inventou esse hábito, os jogadores de futebol ou os criminosos?), o soldado do tráfico ergue sua metralhadora mais como uma bandeira do que como uma arma. Bandeira de quê? Do tráfico de drogas ou de sua vontade (satisfeita?) de ter um acesso fácil à festa do consumo?

No fundo, tanto faz. A droga é apenas mais um objeto que resume e carrega consigo as falsas promessas de todos os outros objetos: "Consuma-me e fique bacana e feliz".

Tanto faz, também, porque duvido que, lá em cima do morro, o soldado do tráfico se preocupe com as cores e a significação de sua bandeira; ele não está defendendo ou promovendo a causa de seus valores ou de seus interesses, ele está apenas encenando (propositalmente, para o fotógrafo, para os amigos e para nós) um gesto que faz parte da retórica trivial da resistência ou da revolta, tipo "no passarán" ou lutaremos "até o último homem".

Em outras palavras, o soldado do tráfico está se identificando com as representações do heroísmo assim como elas são vendidas pela produção cultural de massa (sobretudo de segunda categoria): o que ele quer é, antes de mais nada, encarnar um clichê. Por isso mesmo, aliás, ele é patético, no duplo sentido da palavra: sinistro (porque quem age para sair bem na foto é capaz de qualquer pose -ou seja, de qualquer selvageria que capture o olhar do outro) e tocante (pela miséria de seu destino).

Falando em destino miserável, pareceu-me entender, de repente, por que o cadáver no carrinho do supermercado é o futuro do soldadinho que se exibe no alto do morro. Há, entre as duas imagens, uma implicação lógica. Claro, quem vive na bravata, geralmente, coloca sua vida em risco, mas, no caso, não é só disso que se trata.

O soldado do morro pratica uma bravata sem valores, ideais ou interesses definidos para defender. Sem dúvida, ele tem aspirações de consumo, está a fim de um tênis legal, de um chapéu de marca e de todo o bagulho de que ele precisar, mas seria ingênuo pensar que ele arrisca a vida por essas "commodities" -que, afinal, ele poderia conseguir de outro jeito, a um custo menor.

Se ele arrisca a vida é para nos mostrar, do alto do morro, sua metralhadora erguida, na esperança de causar forte impressão: junto com nosso medo, ele quer suscitar nossa admiração, quem sabe nossa inveja. Por isso, antes de ambicionar TER as coisas que estão nas prateleiras das lojas, ele ambiciona SER um enlatado cultural, um produto de massa supostamente desejado por todos. E é normal que um produto de massa, mais cedo mais tarde, acabe num carrinho de supermercado.

Talvez seja este o sentido da curiosidade manifestada pelos jovens reunidos ao redor do morto desovado em baixo do morro dos Macacos: "Que produto mais estranho é esse? Será que é maneiro? Será que é "da hora'?".

ccalligari@uol.com.br

22 outubro 2009

Charmes do celibato



Deixar saudade e fazer falta é menos arriscado e mais prazeroso do que estar presente dia a dia


ALGUMAS SEMANAS atrás, uma leitora, Lucila Almeida, comentou minha coluna sobre "Casamentos Possíveis" observando que, paradoxalmente, o artigo a levara a "refletir sobre aquelas pessoas que não casam porque não conseguiram ou porque optaram por uma vida mais descompromissada". "Essas pessoas", acrescentava a leitora, "são cruelmente cobradas pela sociedade por não terem seguido o comportamento padrão".

Seguia um pedido: que eu escrevesse um pouco sobre os "que saem da curva", "por não casarem ou por não ter escolhido a profissão que dá mais dinheiro ou ainda por ter optado não ter filhos -enfim, por uma série de atitudes que não são consideradas padrão pela sociedade". Por que eles parecem ser cobrados? E qual é a parte de inveja na cobrança?

Passei o último fim de semana no Rio Grande do Sul, numa celebração dos 20 anos da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, da qual fui um dos fundadores (desde a metade dos anos 80, quando cheguei ao Brasil, até 1994, a capital gaúcha foi o lugar onde escolhi morar). Bom, senti saudade, mas o que mais importa aqui é que fui comovido pelas marcas da saudade que deixei nos outros. No avião que me levava de volta a São Paulo, essa experiência produziu em mim algumas reflexões que se aplicam, em parte, ao celibato. Mas vamos com calma.

Certamente, casar-se ou juntar-se (com ou sem filhos) é um padrão, e quem "sai da curva" recebe uma cobrança dos próximos e da sociedade em geral. O fascismo italiano, por exemplo, desejoso de braços para ampliar e fortalecer a nação, instituiu um imposto sobre o celibato: "Não quer se casar? Paga multa". Alguns dirão que é natural que seja assim: o casamento serve ao interesse da espécie; para que ela continue existindo, é necessário que a gente se reproduza ou, no mínimo, adote formas de divisão do trabalho que facilitam a sobrevivência: desde "Vamos dividir o aluguel?" até "Você cuida do fogo enquanto eu luto contra o urso que insiste em querer recuperar a caverna na qual a gente se instalou".

O problema, claro, é que, às vezes, o urso mais perigoso é o outro com quem decidimos coabitar. Deve ser por isso que o celibato é, ao mesmo tempo, estigmatizado como um desvio ("E sua filha, coitadinha, encontrou alguém, enfim?") e idealizado, invejado ("Você não casou? Sorte sua, fique firme e livre.").

Diante dessa ambivalência, quem persiste no celibato vive sentimentos desagradáveis. Ele pode se sentir em falta com a família, a sociedade ou a espécie e pode também envergonhar-se por ser objeto de inveja enquanto, na realidade, sua vida não lhe parece invejável: às vezes, onde os outros enxergam liberdade, ele enxerga apenas sua incapacidade de encontrar alguém com quem compartilhar a vida e o medo de ficar sozinho para sempre.

Mas deixemos de lado as dificuldades de achar um par e a chatice de lidar com as cobranças sociais. E examinemos as razões pelas quais alguém, homem ou mulher, persiste no celibato.

Há a explicação tradicional: quem não casa se mantém fiel à sua família de origem -a menina, fiel ao pai; o menino, fiel à mãe. Ela vale em muitos casos, e note-se que é uma via de mão-dupla: frequentemente, é o desejo dos pais que mantém um filho ou uma filha no celibato, como companhia ou, quem sabe, como enfermeiros para a velhice dos genitores.

Outra explicação me foi dada por um amigo, anos atrás. Como ele não parava de descasar e casar-se com mulheres diferentes ou, mais de uma vez, com a mesma, ele me disse, para se justificar: "Não sou sádico". Como assim? Pois bem, ele achava que recusar o casamento ao outro de quem gostamos (e que gosta de nós) só pode ser uma maneira de torturá-lo com uma privação: "Amo você, mas há algo que nunca lhe darei".

Enfim, as emoções da viagem a Porto Alegre me sugeriram uma terceira explicação, que não é universal, mas é a que prefiro. Há homens e mulheres que podem persistir no celibato porque deixar saudade e fazer falta é prazeroso e certamente menos arriscado do que estar lá a cada dia. Eles pensam: "Melhor ser o parceiro com quem o outro lamenta não se ter casado do que ser o parceiro com quem ele lastima ter se juntado".

De fato, nos instantâneos que imortalizam encontros breves que parecem prometer futuros radiosos (e irrealizados), a gente é sempre mais bonito e sorridente do que nos longos reality shows das convivências conjugais.

15 outubro 2009

O prazer da vingança



O desejo frustrado de se vingar é uma poderosa matriz narrativa para os nossos devaneios


PODE SER que, ao longo da vida, você nunca tenha sido ofendido. Mas, para a imensa maioria dos humanos, não é assim. Quando crianças, esbarramos em adultos que parecem quase sádicos, na sua incapacidade de nos escutarem e entenderem; logo depois, encontramos os "bullies" da turma do fundão da sala de aula, da praia ou da rua. E assim continua.

A vida de cada um escolhe as encruzilhadas em que sofremos mil violências morais ou físicas, grandes ou pequenas. Com elas, em regra, não ganhamos nada, a não ser que a gente acredite numa justiça divina após nossa morte: quem sofre aqui na Terra será recompensado nos céus. Também podemos nos consolar com a ideia de uma "grandeza" moral que nos seria própria, pela "generosidade" com a qual aguentamos as ofensas, esquecendo-as ou mesmo oferecendo gentilmente o outro lado do rosto.

Mas resta uma dúvida (que compartilho com Nietzsche, "Genealogia da Moral", Companhia das Letras): nossa moral aparentemente generosa e a esperança de que Deus, um dia, recompense os ofendidos e puna os ofensores talvez sejam uma grande invenção coletiva, criada, justamente, para que as vítimas sejam confortadas e possam perdoar não tanto aos agressores, mas a elas mesmas, ou seja, perdoar a "covardia" da qual elas acabam se acusando, num eterno lamento por elas não terem revidado na hora.

Disse antes que, com as violências que sofremos, não ganhamos nada. Mas não é bem assim: o lamento de não ter revidado é uma das grandes fontes da ficção. Pense bem: inúmeras vezes, dias e mesmo meses a fio, depois de ter sido insultado, machucado, assaltado, empurrado real ou simbolicamente, você ficou imaginando e aprimorando, em seus detalhes, desfechos diferentes, nos quais você, na hora da ofensa, teria imediatamente resgatado sua honra e punido o agressor, deixando-o tão inerte e silencioso quanto você mesmo ainda lamenta ter ficado. Em suma, o desejo frustrado de se vingar é uma poderosa matriz narrativa, sobretudo nos devaneios privados, em nosso cinema de bolso, que fica escondido por ele ser pouco conforme com os ditados da moral dominante.

Quentin Tarantino, com "Bastardos Inglórios" (que acaba de estrear e é um de seus melhores filmes), leva esse cinema de bolso para as salas: é uma verdadeira festa de vingança, uma fantasmagoria cuja violência é alegre e libertadora.

A história contada não cola direito com os fatos da Segunda Guerra Mundial? Você acha curioso que um bando de soldados dos EUA, infiltrados na França ocupada pelos nazistas, aja como índios apaches saídos de um bangue-bangue, recolhendo os escalpos dos que conseguem matar? Ou se surpreende com o fato de que eles marquem com uma suástica na testa os poucos que eles decidem poupar?

Pois é, reconheçamos a Tarantino a mesma liberdade que nós nos permitimos em nossos devaneios de vingança.

Para o que serve essa liberdade de imaginar? Talvez as ficções e, em particular, o cinema (de bolso ou de sala) tenham algum poder de alterar a história, fazendo justiça, por exemplo. Não digo isso apenas porque, em "Bastardos Inglórios", a vingança final acontece graças a uma sala de cinema. E, é claro, sei que os devaneios, em geral, não se realizam mas também sei que eles nunca são vãos, simplesmente porque são o alimento de nosso desejo.

Um outro filme, lindíssimo, conta com uma distribuição limitada e talvez não chegue às salas do Brasil inteiro (no caso, anote o título e espere o DVD): "Deixa Ela Entrar", de Tomas Alfredson. É um filme sueco, que é apresentado como uma história de terror, e é verdade que há um vampiro no filme. Mas o meu prazer de espectador foi outro...

Acho que já contei: quando era criança, eu tinha uma pequena orquestra imaginária, que levava sempre comigo. Ela me servia para combater o tédio, sobretudo quando acompanhava meus pais em intermináveis visitas a museus. Passei bom momentos com a minha orquestra, mas confesso que teria adorado ter também outros amigos imaginários, mais eficientes na hora dos apuros. Uma vampira que gostasse de mim teria sido perfeita. Já imaginou? Alguém que saísse das sombras e arrancasse os pescoços, as cabeças e os braços dos idiotas que me azucrinavam a vida?
Pois é, "Deixa Ela Entrar" é a história de um menino que tem (ou inventa?) a amiga imaginária da qual ele precisa, para se vingar. De uma amiga assim, todos precisamos.

ccalligari@uol.com.br

08 outubro 2009

Razão, crença e dúvida



Onde se manifesta a razão? Na arrogância de certezas absolutas ou na capacidade de duvidar?


MEU PRIMEIRO contato com a história que segue foi em junho passado, no blog de Richard Dawkins (www.richarddawkins.net, site que se autodenomina "um oásis de pensamento claro"). Dawkins é o evolucionista britânico que se tornou apóstolo do racionalismo ateu e cético, escrevendo, entre outros livros, o best-seller mundial "Deus - Um Delírio" (Companhia das Letras, 2007).

Mas eis a história. Em 2002, na Austrália, o casal Sam, de origem indiana, perdeu a filha, Gloria, de nove meses.

A menina, a partir do quarto mês, apresentou sintomas de eczema infantil, que é uma condição alérgica que afeta mais de 10% dos bebês e, geralmente, acalma-se ou some aos seis anos ou na adolescência. As causas do eczema infantil não são bem conhecidas; a medicina administra a condição da melhor maneira possível, esperando que passe. O problema é que o eczema (pele seca com prurido) dá uma vontade de se coçar à qual as crianças não resistem, e a pele, ferida, abre-se para qualquer infecção. Foi o que aconteceu com Gloria, que morreu de septicemia.

Não foi falta de sorte: o pai de Gloria é homeopata e, em total acordo com a mulher, medicou a menina só com remédios homeopáticos (insuficientes na condição da menina). Isso até o fim, quando ela definhava pelas infecções internas e externas. Gloria foi levada a um hospital três dias antes de morrer: as bactérias já estavam destruindo suas córneas, e os médicos só puderam lhe administrar morfina para aliviar seu sofrimento.

Os pais de Gloria foram presos, acusados de homicídio por negligência e, no fim de setembro, condenados pela Justiça australiana: o pai, a oito anos de prisão, a mãe, a cinco anos e quatro meses. Segundo o juiz, Peter Johnson, ambos os pais "faltaram gravemente com suas obrigações diante da filha": o marido pela "arrogância" de sua preferência pela homeopatia e a mulher pela excessiva "deferência" às decisões do marido.

Os termos da decisão de Johnson são admiráveis. A obediência -ao marido, no caso-, seja qual for seu fundamento cultural, nunca é desculpa; ela pode ser, ao contrário, o próprio crime. E, sobretudo, o marido é condenado não por recorrer à homeopatia, mas pela "arrogância" que lhe permitiu perseverar em sua crença e em sua decisão diante do calvário pelo qual passava a menina.

A sentença de Peter Johnson é, para mim, um modelo de racionalidade, porque estigmatiza a certeza independentemente do objeto de crença. Ou seja, o juiz não discute o bem fundado da autoridade do marido e, ainda menos, os méritos respectivos da homeopatia e da medicina alopática. Tampouco ele quer limitar a liberdade de opinião, garantida pela Constituição; a sentença penaliza apenas, por assim dizer, a rigidez.

Se me coloco no lugar dos pais de Gloria, não consigo imaginar uma crença, por mais que ela possa ser crucial para mim, que resista à visão do corpinho de minha filha transformado numa ferida aberta e purulenta.

Antes disso, eu (embora confiando, a princípio, na medicina alopática) já teria convocado não só os homeopatas (o que, aliás, seria uma banalidade, visto que a homeopatia é uma especialidade médica reconhecida) mas também todos os xamãs, feiticeiros e curandeiros que me parecessem minimamente confiáveis. E, é claro, embora agnóstico, eu rezaria, sem nenhuma vergonha e sem o sentimento de trair minhas "convicções", pois a primeira delas, a que resume minha racionalidade, diz, humildemente, que há muito no mundo que minha razão não alcança.

Se fosse testemunha de Jeová, e minha filha precisasse de uma transfusão (que a religião proíbe), abriria imediatamente uma exceção. Mesma coisa se fosse cientologista, e minha filha precisasse de ajuda psiquiátrica. Sou volúvel e irracional? O fato é que tenho poucas crenças (provavelmente, nenhuma absoluta), e acontece que, para mim, a razão é uma prática concreta, específica: um jeito de pesar e decidir em cada momento da vida.

O surpreendente é que, ao ler os comentários dos leitores no blog de Dawkins, os "racionalistas" parecem tão "rígidos" quanto o pai de Gloria. "A razão" (que eles confundem com uma visão aproximativa do estado atual da arte médica) é, para eles, um objeto de fé, uma crença pela qual facilmente condenariam os "infiéis" à fogueira.

Com o juiz Johnson, pergunto: onde se manifesta a razão? Na arrogância das certezas ou na capacidade de duvidar?

ccalligari@uol.com.br

01 outubro 2009

Raças e cotas



As cotas só afirmam as diferenças com as quais sonham os racistas? Ou podem mudar algo?


PERTENCEMOS A uma única espécie: a espécie humana.

Quanto a isso não há dúvida, visto que procriamos alegremente sem que as diferenças étnicas ou raciais atrapalhem o bom funcionamento sexual e reprodutivo. Mas só 250 anos atrás, na América do Norte e na França, foi proclamado o princípio de que, por pertencermos à mesma espécie, temos todos os mesmos direitos, independentemente de etnia, cultura, religião, gênero, berço e cor (da pele, do cabelo ou dos olhos).

Desde então, tal princípio vem se afirmando, aos trancos e, sobretudo, aos barrancos, por várias razões.

1) Há etnias e culturas que não topam aquela ideia proclamada 250 anos atrás.

2) Não conseguimos decidir se nossa igualdade de direito deve implicar ou não uma igualdade de fato. Depois de algumas tentativas desastradas, parece que concluímos que o importante é que todos tenhamos ao menos oportunidades parecidas no começo da vida. Estamos longe disso.

3) Mesmo acreditando na unidade da espécie e na igualdade dos direitos, adoramos pertencer a uma turma e continuamos enxergando um mundo dividido em nações, etnias, raças, classes, torcidas etc. Claro, prezamos nossa singularidade e, por isso, queremos ser contados um a um, como indivíduos, cada um diferente e único dentro da espécie comum. Mas também gostamos de privilégios, e os privilégios são mais "agradáveis" quando são negados a um grupo de excluídos: sala VIP só tem "graça" se os outros esperam no saguão do aeroporto. Em suma, no mínimo, a vontade de sermos singulares nos induz a criar grupos de discriminados, "diferentes" de nós.

4) As vítimas dessa discriminação, na hora de invocar o princípio da igualdade de todos para obterem os mesmos direitos dos demais, são obrigadas a se constituírem como grupo. Sem isso, sua reivindicação não teria chance alguma: o protesto de um negro discriminado será sem efeito se não existir algum "movimento negro".

Em tese, os grupos de vítimas da discriminação deveriam ser fundados em "identidades de defesa", ou seja, identidades que surgem provisoriamente, de maneira reativa. Por exemplo, "os negros" existem como grupo, aos olhos dos racistas, para serem discriminados; ora, a luta contra essa discriminação exige uma identidade positiva, de modo que os negros possam existir como grupo na hora de se opor à sua discriminação. No caso, eles afirmarão e valorizarão uma improvável ascendência racial comum. Problema: ao defender-se, eles darão crédito à mesma diferença inventada pelos racistas a fim de discriminá-los.

O perigo é que essas identidades, adotadas para lutar contra a discriminação e permitir, enfim, uma sociedade de indivíduos iguais, acabem consolidando as próprias diferenças que tratam de abolir. Por exemplo, uma política de cotas reservadas a negros e pardos (na universidade, no emprego público e mesmo no setor privado) é uma maneira de se opor à discriminação, mas, para funcionar, ela exige que a gente acredite nas diferenças raciais e as estabeleça como parte da identidade do cidadão -que é exatamente a situação com a qual o racismo sonha desde sempre.

Esse argumento é crucial no livro de Demétrio Magnoli, "Uma Gota de Sangue" (ed. Contexto), que é, ao mesmo tempo, uma excelente história e apresentação do racismo no mundo moderno e uma crítica das políticas de cotas por elas necessariamente confirmarem a existência de diferenças raciais que não têm realidade biológica e cujo fundamento histórico é o próprio racismo.

Isso, logo no Brasil, onde a mistura das cores deixaria esperar um enterro mais rápido da categoria de raça.

Compartilho com Magnoli o sonho de uma sociedade em que a cor da pele seja indiferente. Mas minha avaliação das políticas de cotas é "matizada". Quando cheguei nos EUA, em 94, eu pensava como Magnoli, ou seja, previa que o sistema de cotas, instituído para "compensar" os efeitos da discriminação, dividiria o país, levando-o de volta para o século 19. Não foi o que aconteceu. Aos poucos, a presença de cidadãos de todas as cores na maioria das corporações (da polícia urbana ao corpo docente das universidades) se transformou num duplo valor compartilhado por todos ou quase: um valor estético (a diversidade é bonita) e um valor produtivo (a diversidade é funcional).

Até que um dia pareceu lógico, num país cujo sul inteiro foi racista e segregado, que um negro pudesse ser presidente.

ccalligari@uol.com.br

24 setembro 2009

O amor entre pais e filhos



Não é algo "natural"; como outros amores, tem razões para surgir, acabar ou se tornar ódio


DOIS PROJETOS de lei se propõem a legislar em matéria de amor entre pais e filhos (conforme reportagem de Johanna Nublat, na Folha de 20/9). Ambos se baseiam na premissa de que, entre pais e filhos, há obrigações não só materiais, mas também afetivas.

Pelo projeto (4.294/08) do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), os pais devem aos filhos menores a presença e o amor que são indispensáveis para que os jovens vinguem sem carências e feridas que nunca cicatrizariam direito. Reciprocamente, os filhos devem aos pais idosos a presença e o amor sem os quais a vida, na velhice, poderia perder seu sentido.

Concordo: para ser "bom pai" não basta pagar mesada ou pensão, e, para ser "bom filho", não basta pagar o salário de quem faz companhia à velha mãe ou ao velho pai.

O projeto do deputado Bezerra institui o princípio de uma indenização por dano moral, que poderia ser exigida por pais e filhos que tenham sido abandonados afetivamente. Curiosamente, volta-se ao mesmo lugar de onde se queria fugir: "Você pensou que era suficiente pagar? Acha que não me devia também afeto, atenção, cuidados?

Pois bem, pague mais".

Fora esse paradoxo, a dificuldade está na avaliação do que constitui "abandono" afetivo.
Em sua maioria, os neuróticos (ou seja, a gente), mesmo quando conheceram os cuidados assíduos de pai, mãe, avós etc., queixam-se de uma falta de amor invalidante, que os teria deixado para sempre carentes, tristes e inseguros.

Inversamente, numa veia humorística, conheço adultos que, para evitar o almoço de domingo na casa da mãe, pagariam antecipadamente uma indenização. "Mãe, a gente não vai, mas mando os R$ 300 da multa, tudo bem?". A um preço módico, eles protegeriam assim seu casamento dos venenosos comentários maternos sobre as insuficiências da nora.

O outro projeto de lei (700/07), do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), trata só do abandono afetivo das crianças e quer que, aos filhos menores, seja garantida a "assistência moral", que inclui "a orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais" e "solidariedade e apoio nos momentos de intenso sofrimento ou dificuldade". Esse projeto não propõe apenas indenizações financeiras para quem foi abandonado, mas transforma o "abandono" num crime, punível com a detenção, de um a seis meses.

De novo, concordo com a "justificação" do projeto: "A pensão alimentícia não esgota os deveres dos pais em relação a seus filhos [...]. Os pais têm o DEVER [sic] de acompanhar a formação dos filhos, orientá-los nos momentos mais importantes, prestar-lhes solidariedade e apoio nas situações de sofrimento e, na medida do possível, fazerem-se presentes quando o menor reclama espontaneamente a sua companhia".

Mas o que dizer sobre os pais dos filhos que saqueiam a casa para comprar drogas? Se eles expulsarem os filhos, irão presos?

E imaginemos uma situação nem tão rara: a de um pai que, um dia, aprende que o filho ou a filha é homossexual, não entende, não aceita e se fecha no mutismo como se quisesse se esquecer da própria existência do filho ou da filha. Esse pai iria preso? Não seria melhor que ele encontrasse um profissional com quem conversar? E, se for aprovado o projeto do deputado Bezerra, o filho que não cuidasse desse tipo de pai na velhice deveria uma indenização ao genitor?

Considerando os dois projetos, a impressão com a qual fico é que a tentação de transformar em norma legal o que seria uma relação minimamente "certa" entre pais e filhos é também (se não sobretudo) uma maneira de negar a seguinte realidade, que é incômoda e que nos choca: contrariamente ao que gostaríamos de acreditar, o amor entre pais e filhos não é incondicional, mas é parecido com os outros amores de nossa vida, tem razões para surgir, para acabar ou mesmo para se tornar ódio.

Filhos e pais não se amam "naturalmente". Claro, a extrema dependência nos primeiros anos da vida humana parece impor o amor entre filhos e pais. E, por exemplo, a mortalidade dos pais faz com que os filhos lhes apareçam, na velhice, como única justificativa de sua vida. Mas essas são apenas circunstâncias que instituem, em nossa cultura, a ilusão de que o amor recíproco entre pais e filhos seja "natural".

Não é assim. O amor entre pais e filhos não é garantido, nem por lei; de ambos os lado, ele pode ser, isso sim, conquistado e merecido.
Ou não.

ccalligari@uol.com.br

17 setembro 2009

A dificuldade de dizer não (ou sim)



A necessidade narcisista de sermos amados nos torna covardes e nos leva a assentir


DURANTE TODA minha infância, eu dizia "não" mesmo quando queria dizer "sim".

Usava o não como uma palavra de apoio, uma maneira de começar a falar. Minha mãe: "Vou sair para fazer compras; algo que você gostaria para o jantar?". Eu, enérgico: "Não", acrescentando imediatamente: "Sim, estou a fim de ovos fritos (ou sei lá o quê)".

Os adultos tentavam me corrigir: "Então, é sim ou não?". "Não, é sim", eu respondia.

Entendi esse meu hábito muito mais tarde, quando li "O Não e o Sim", de René Spitz (ed. Martins Fontes). No fim da faculdade, Spitz era um dos meus autores preferidos, o único, ao meu ver, que conciliava a psicanálise com o estudo experimental do desenvolvimento infantil. No livro, pequeno e crucial, Spitz nota que, nas crianças, o uso do "não" aparece por volta do décimo oitavo mês de vida, logo quando elas costumam falar de si na terceira pessoa, como se precisassem (e conseguissem, enfim) se enxergar como seres distintos dos outros.

Para Spitz, a aquisição da capacidade de dizer "não" é um grande evento da primeira época da vida: a conquista da primeira palavra que serve para dialogar e não só para designar um objeto.
Mas, cuidado, especialmente no segundo ano de vida, o "não" teimoso da criança não significa que ela discorde do que está lhe sendo proposto ou imposto: a criança diz "não" para afirmar que, mesmo ao concordar ou obedecer, ela está exercendo sua própria vontade, a qual não se confunde com a do adulto.

Em suma, durante muito tempo, eu persisti na atitude de meus dois anos. Mais tarde, consegui me corrigir. Mas em termos; sobrou-me uma paixão pelas adversativas: mal consigo dizer "sim" sem acrescentar um "mas" que limita meu consentimento. É um jeito de dizer que aceito, mas minha aceitação não é incondicional. "Vamos ao cinema?". "Sim, mas à noite, não agora."

O uso do sim e do não, no discurso de cada um de nós, pode ser um indicador psicológico valioso.
Mas, para isso, é preciso distinguir entre "sim" e "não" "objetivos", que têm a ver com a questão da qual se trata (quero ou não tomar café ou votar nas próximas eleições), e "sim" e "não" "subjetivos", que são abstratos, ou seja, que expressam uma disposição de quem fala, quase sem levar em conta o que está sendo negado ou afirmado.

Se o "não" subjetivo é um grito de independência, o "sim" subjetivo é uma covardia, consiste em concordar para evitar os inconvenientes de uma negativa que aborreceria nosso interlocutor.

Alguns exemplos desse "sim" covarde (e, em geral, objetivamente mentiroso). "Respondeu à minha carta?" "Sim, já mandei." "Gostou de minha performance?" "Sim, adorei." "Quer me ver de novo?" "Sim, te ligo amanhã." Mas também: "Você vai assinar a petição para expulsar os judeus do ensino público?" "Claro, claro, estou assinando."

Acontece que dizer "não" é arriscado. A confusão com o outro, aquela confusão que ameaça a primeira infância e contra a qual se erguia nosso "não" abstrato e rebelde, é substituída, com o passar do tempo, por mil dependências afetivas: "Desde os meus dois anos, não sou você, não me confundo com você, existo separadamente, mas, se eu perder seu amor (sua amizade, sua simpatia, sua benevolência), quem reconhecerá que existo? Será que posso existir sem a aprovação dos outros?".

Em suma, o sim subjetivo é um consentimento abstrato (o objeto de consenso é indiferente e pode ser monstruoso), pois o que importa é agradar ao outro, não perder sua consideração. A necessidade narcisista de sermos amados nos torna covardes e nos leva a assentir.

Por sua vez, nossa covardia fomenta explosões negativas, tanto mais violentas quanto mais nossa concordância foi preguiçosa. À força de dizer "sim" para que o outro goste de mim, eu corro o perigo de me perder e, de repente, posso apelar à negação abstrata, espalhafatosa e violenta, só para mostrar que não me confundo com o outro, penso com a minha cabeça.

Bom, Spitz tinha razão, o uso do não e do sim permitem o diálogo humano. Mas é um diálogo que (sejamos otimistas) nem sempre tem a ver com as questões que estão sendo discutidas; ele tem mais a ver com uma necessidade subjetiva: digo "não" para me separar do outro ou digo "sim" para obter dele um olhar agradecido. Nos dois casos, tento apenas alimentar a ilusão de que existo.

ccalligari@uol.com.br

10 setembro 2009

Casamentos possíveis



Em geral, a gente casa com a pessoa certa: com quem podemos culpar por nossos fracassos


UMA DAS boas razões para se casar é a seguinte: uma vez casados, podemos culpar o casal por boa parte de nossas covardias e impotências.

O marido, por exemplo, pode responsabilizar mulher, filhos e casamento por ele ter desistido de ser o aventureiro que ainda dorme, inquieto, em seu peito. A decepção consigo mesmo é menos amarga quando é transformada em acusação: "Você está me impedindo de alcançar o que eu não tenho a coragem de querer".

Essas recriminações, que disfarçam nossos fracassos, não são unicamente masculinas.

Certo, os homens são quase sempre assombrados por impossíveis devaneios de grandeza -como se algum destino extraordinário e inalcançável já tivesse sido sonhado para eles (e foi mesmo, geralmente pelas suas mães). Diante de tamanha expectativa, é cômodo alegar que o casal foi o impedimento.

As mulheres, inversamente, seriam mais pé-no-chão, capazes de achar graça nas serventias do cotidiano. Por isso mesmo, aliás, elas encarnariam facilmente, para os homens, os limites que a realidade impõe aos sonhos que eles não têm a ousadia de realizar.

Agora, as mulheres também sonham. Há a dona de casa que acusa o marido, os filhos e o casamento por ela ter desistido de outra vida (eventualmente, profissional), que teria sido fonte de maiores alegrias. E há, sobre tudo, para muitas mulheres, um sonho romântico de amor avassalador e irresistível, do qual, justamente, elas desistem por causa de marido, filhos e casamento.

Com isso, d. Quixote se queixa de que sua mulher esconde seus livros de cavalaria e o impede de sair à cata de moinhos de vento. E Madame Bovary se queixa de que seu marido esconde seus livros de amor e a impede de sair pelos bailes, à cata de paixões sublimes e elegantes.
Pena que raramente eles consigam ter os mesmos sonhos. Um problema é que os sonhos dos homens podem ser de conquista, mas dificilmente de amor, pois eles derivam diretamente das esperanças que as mães depositam em seus filhos, e, claro, uma mãe pode esperar que seu rebento varão seja um dom-juan, mas raramente esperará ser substituída por outra mulher no coração do filho.

Não pense que esse fogo cruzado de acusações seja causa recorrente de divórcio. Ao contrário, ele faz a força do casamento, pois, atrás da acusação ("É por sua causa que deixei de realizar meus sonhos"), ouve-se: "Ainda bem que você está aqui, do meu lado, fornecendo-me assim uma desculpa -sem você, eu teria de encarar a verdade, e a verdade é que eu mesmo não paro de trair meus próprios sonhos".

Ou seja, em geral, a gente casa com a pessoa "certa": a que podemos culpar por nossos fracassos. E essa, repito, não é uma razão para separar-se. Ao contrário, seria uma boa razão para ficar juntos.

Quando a coisa aperta, não é porque sonhos e devaneios teriam sido frustrados "por causa do outro", mas pelas "cobranças", que, elas sim, podem se revelar insuportáveis.

Um exemplo masculino. Uma mulher me permite acreditar que é por causa dela que eu não consigo ser o que quero: graças a Deus, não posso mais tentar minha sorte no garimpo agora que tenho esposa, filhos e tal. Até aqui, tudo bem. Como compensação pelos sonhos dos quais eu desisti, passo as tardes de domingo afogando num sofá e soltando foguetes quando meu time marca um gol, mas eis que, no meio do jogo, minha mulher me pede para brincar com as crianças ou para ir até à padaria e comprar o necessário para o café - logo a mim, que deveria estar explorando as fontes do Nilo ou negociando a paz entre os senhores da guerra da Somália.

Essa cobrança, aparentemente chata, poderia salvar-me da morosa constatação do fracasso de meus sonhos e das ninharias com as quais me consolo. Talvez, aliás, ela me ajudasse a encontrar prazer e satisfação na vida concreta, nos afetos cotidianos. Mas não é o que acontece: o que ouço é mais uma voz que confirma minha insuficiência.

À cobrança dos sonhos dos quais desisti acrescenta-se a cobrança de quem foi (ou é) "causa" de minha desistência e razão de meu "sacrifício": "Olhe só, mesmo assim, ela não está satisfeita comigo." Em suma, não presto, nunca, para mulher alguma -nem para a mãe que queria que eu fosse herói nem para a esposa para quem renunciei a ser herói. E a corda arrebenta.

O ideal seria aceitar que nosso par nos acuse de seus fracassos e, além disso, não lhe pedir nada. Difícil.

ccalligari@uol.com.br

03 setembro 2009

Passivo cultural

Nos EUA, um seguro de saúde para todos é uma mudança no que define o país e sua cultura

O PRESIDENTE dos EUA, Barack Obama, tenta cumprir uma das promessas de sua campanha: uma reforma pela qual todos os cidadãos seriam protegidos por um seguro-saúde básico.

Atualmente, o sistema de saúde pública dos EUA protege as crianças, os idosos e os indigentes, mas deixa de molho uma ampla faixa da classe média, que não é indigente, mas não consegue pagar um seguro particular. Mais de 40 milhões de cidadãos, se eles adoecerem gravemente, terão que vender seus bens e se endividar até alcançar a miséria que lhes dará, enfim, direito à assistência gratuita.

Canadenses, europeus, brasileiros etc. estranham que os EUA não disponham "ainda" de algo parecido com, sei lá, a "Sécurité Sociale" francesa ou mesmo o nosso Sistema Único de Saúde: "Como é que pode? A nação mais rica do mundo!".

Culpar a mesquinhez dos cidadãos mais abastados fica ridículo no caso de um país em que a generosidade é uma regra instituída, a ponto que qualquer caridade implica um desconto direto no imposto de renda das pessoas físicas. Será, então, que o liberalismo norte-americano não entende que o custo de um sistema de saúde é compensado pelo que se ganha em produtividade (trabalhadores atendidos prontamente quando estão doentes, mais saudáveis graças à prevenção, menos angustiados pela pneumonia da mãe etc.)? Duvido.

Resta que Bill Clinton não conseguiu promover um plano de seguro-saúde para todos os cidadãos, e, agora, Barack Obama encontra uma oposição que compromete sua popularidade e divide o país.

O curioso é que, conversando por telefone com amigos e conhecidos (sobretudo os que não votaram em Obama), é difícil encontrar, nos EUA, alguém que não concorde com o princípio de seguro-saúde para todos. Mesmo assim, muitos resistem.

Aparentemente, a metade dos cidadãos dos EUA, perguntados se eles querem um seguro-saúde para todos, respondem: "Claro, quem não gostaria?", mas acrescentam: "Não quero que o Estado escolha o médico que vai me tratar" ou "Não quero subvencionar os abortos de adolescentes lascivas e inconsequentes" ou, ainda e sobretudo, "seguro-saúde universal não é coisa de país socialista ou comunista?".

Ora, o plano proposto preserva a livre escolha dos médicos pelos pacientes (sem contar que, nos EUA, a maioria usa convênios que já limitam a dita escolha). O plano tampouco muda o funcionamento das clínicas que praticam abortos. Resta o espantalho do "socialismo": o que ele significa, 20 anos depois do fim da guerra fria? Certo, na boca dos comentadores da oposição, ele é um pretexto político para reanimar as tropas, mas o que faz sua força?

Pois é, o famoso homem da rua, consultado por mim pessoal e telefonicamente, explicou-me que, no "socialismo", o Estado se mete nos negócios da gente e acaba com a liberdade dos cidadãos -o que, aliás, não é de todo inexato. Mas eu insisti: "OK, entendo que um seguro-saúde para todos seria obrigatório, e você não gosta de nada obrigatório; mas será que queremos, para nós e para os outros, também a liberdade de ficar no desamparo nos casos de doença?".

Pois bem, meus interlocutores responderam que eu tinha razão, mas, no fundo, a liberdade, como se expressou textualmente um deles, é também "a liberdade de se foder".

Entendi assim que talvez a mudança proposta por Obama seja muito mais do que uma mudança de gestão da saúde; talvez se trate de uma mudança no que define, há séculos, os EUA e sua cultura.

Não fica claro? Pois é, imagine que, na formação da cultura brasileira, por uma reviravolta da História e das histórias contadas pela literatura nacional, o traço decisivo não tenha sido, por exemplo, a cobiça do colonizador, mas sim o espírito do bandeirante.

Diante da proposta de um seguro-saúde universal, o colonizador cobiçoso poderia responder "Nada disso (os escravos que se virem)" ou, ao contrário, "Boa ideia, vai melhorar o rendimento dos peões".

Mas como reagiria o Anhanguera, sobretudo se a sua procura do ouro tivesse se tornado uma épica aventurosa que define o espírito da nação? Suspeito que, como meu interlocutor estadunidense, ele recusaria, explicando que a vida do indivíduo é um risco absoluto, e que esse é o sentido, o charme e o interesse da aventura.

Em suma, às vezes, os próprios traços que fazem ou fizeram a grandeza de uma cultura se tornam, para ela, um passivo.

ccalligari@uol.com.br

27 agosto 2009

Saber e experiência



Por que visitamos museus? Procuramos experiência estética ou queremos nos cultivar?


NA SUA próxima visita a um museu de arte, esqueça-se das obras e considere apenas os visitantes.

Um bom número, talvez a maioria, não para diante de uma tela (por exemplo) sem antes ter lido a pequena placa com nome do artista, título e data. Bom, eles querem se cultivar, saber quem pintou, quando e o quê. Mas, dessa forma, muitos acabam, sobretudo, limitando sua experiência: ao constatar que o autor lhes é desconhecido, eles mal olham para a tela e passam à obra seguinte, enquanto, se o pintor for uma celebridade, contemplam com dedicação - as más línguas dirão que eles sentem-se assim "autorizados" a parar e contemplar.

Os mais divertidos são os que adotam estratégias bizarras para dar uma espiada na placa sem que o amigo que os acompanha se dê conta e logo exclamam em voz alta, como se tivessem reconhecido a obra sem auxílio algum: "Aqui está o quadro de...".

E há os grupos de turistas, forçados a correr de uma "obra-prima" a outra, atropelando obras menores, que talvez fossem para eles (quem sabe, só para eles) decisivas.

De fato, o saber pode aprimorar nossa experiência estética; por exemplo, é bom apreciar uma tela de El Greco tendo conhecimento do fato de que ele pintou no século 16, pois talvez, sem isso, sua incrível ousadia expressionista nos comova menos.

Inversamente, se privilegiarmos demais o saber, tenderemos a nunca sair de caminhos trilhados e, pior, a forçar nossa experiência no molde do pouco que sabemos.

A primeira vez que visitei o Museu do Prado, em Madri, aos 14 anos, eu só queira ver a pequena sala onde estavam os quadros de Hieronymus Bosch.

Ao entrar, fui hipnotizado pelo azul estranho e intenso do céu numa paisagem de Joachim Patinir, um pintor flamengo da mesma época, que eu desconhecia. Não li a placa, "atribuí" a Bosch o quadro de Patinir e saí feliz de ter descoberto "meu Bosch preferido", que era tão diferente dos quadros de Bosch mais conhecidos e reproduzidos.

Se tivesse lido a placa, provavelmente eu teria me sentido na obrigação de esquecer o céu de Patinir e destinar minha atenção só aos quadros de Bosch; em obséquio ao meu saber, que era modesto e trivial, eu teria renunciado a uma experiência cuja lembrança ainda me encanta.

Recentemente, visitei a exposição "In-Finitum", no Palazzo Fortuny, em Veneza (até 15 de novembro), que reúne obras e objetos de todas as épocas ao redor de um tema, "In-finitum", que, cá entre nós, é suficientemente vago para que qualquer coisa possa ser incluída na exposição.

Instalações e quadros emprestados por museus e coleções particulares são assim misturados com objetos que enfeitavam a casa de Mariano Fortuny, quando ele estava vivo. Há de tudo: de um "conceito espacial" de Lucio Fontana a um banal ovo de avestruz.

A regra (inusitada e atrevida) das exposições do Palazzo Fortuny quer que os objetos não sejam identificados por placa alguma, como se a gente estivesse visitando a casa de alguém. Para quem não aguenta o tranco, está disponível uma espécie de mapa que deveria permitir identificar os objetos expostos, mas cuidado: a duras penas.

Para alguns, a visita se torna assim uma caça ao tesouro (as crianças adoram). Outros rejeitam o mapa e testam sua própria capacidade de atribuir algumas das obras a seus respectivos autores. Outros ainda, fiéis ao espírito da exposição, percorrem os andares do palácio permitindo-se uma experiência estética e meditativa, sem se preocupar em saber direito quais são os objetos nos quais eles esbarram.

O catálogo obedece ao mesmo princípio da exposição: começa com as reproduções das obras expostas, sem nada que as identifique. Seguem os ensaios e, só em apêndice, a lista das reproduções.

Antes de deixar o palácio, li o caderno em que os visitantes são convidados a escrever suas impressões. O leque vai de "Experiência única, por uma vez pensei e senti, em vez de querer saber quem fez o quê" até a (mais frequente) "Os curadores estão bêbados? Não se entende nada no mapa. Que tal uma plaquinha de vez em quando?".

Pergunta: o que aconteceria em nós, visitantes, se os museus escondessem toda informação sobre as obras expostas?

Moral da história: o debate entre saber e experiência, por mais que seja um clássico do pensamento pedagógico, é sem solução. A falta de saber compromete e empobrece a experiência, mas, sem a liberdade da experiência imediata, o saber se torna chato, estupidamente repetitivo e, no fundo, frívolo.

20 agosto 2009

Discordar de nosso próprio desejo



Um terapeuta deve deixar suas opiniões e crenças no vestiário do consultório, a cada dia


EM 31 de julho, o Conselho Federal de Psicologia repreendeu a psicóloga Rozângela Alves Justino por ela oferecer uma terapia para mudar a orientação sexual de pacientes homossexuais.
Não quero discutir a "possibilidade" desse tipo de "cura" (afinal, reprimir o desejo dos outros e o nosso próprio é uma atividade humana tradicional), mas me interessa dizer por que concordo com a decisão do Conselho.

A revista "Veja" de 12 de agosto publicou uma entrevista com Alves Justino, na qual ela explica sua posição. No fim, a psicóloga manifesta seu temor do complô de um "poder nazista de controle mundial", que estaria querendo "criar uma nova raça e eliminar pessoas", graças a políticas abortistas, propagação de doenças sexualmente transmissíveis etc.

Para ser psicoterapeuta, não é obrigatório (talvez nem seja aconselhável) gozar de perfeita sanidade mental. É possível, por exemplo, que um esquizofrênico, mesmo muito dissociado, seja um excelente psicoterapeuta (há casos ilustres). Mas uma coisa é certa: para ser terapeuta, ser inspirado por um conjunto organizado de ideias persecutórias é uma franca contraindicação.

Na verdade, pouco importa que as ideias em questão sejam ou não persecutórias e delirantes: de um terapeuta, espera-se que ele deixe suas opiniões e crenças (morais, religiosas, políticas) no vestiário de seu consultório, a cada manhã. Quando, por qualquer razão, isso resultar difícil ao terapeuta, e ele sentir a vontade irresistível de converter o paciente a suas ideias, o terapeuta deve desistir e encaminhar o caso para um colega. Por quê?

Alves Justino, com sua aversão por homossexualidade, sadomasoquismo e outras fantasias sexuais, ilustra a regra que acabo de expor. Explico.

A psicóloga defende sua prática afirmando que a psiquiatria e a psicologia admitem a existência de uma patologia, dita "homossexualidade ego-distônica", que significa o seguinte: o paciente não concorda com sua própria homossexualidade, e essa discordância é, para ele, uma fonte de sofrimento que poderíamos aliviar -por exemplo, conclui Alves Justino, reprimindo a homossexualidade.

De fato, atualmente, psiquiatria e psicologia reconhecem a existência, como patologia, da "orientação sexual ego-distônica"; nesse quadro, alguém sofre por discordar de sua orientação sexual no sentido mais amplo: fantasias, escolha do sexo do parceiro, hábitos masturbatórios etc. Existe, em suma, um sofrimento que consiste em discordar das formas de nosso próprio desejo sexual, seja ele qual for (alguém pode sofrer até por discordar de sua "normalidade"). Pois bem, nesses casos, o que é esperado de um terapeuta?

Imaginemos um nutricionista que receba uma paciente que se queixa de seu excesso de peso, enquanto ela apresenta uma magreza inquietante: ela tem asco da forma de seu próprio corpo, que ela percebe como enorme e que ela não aceita como seu. O nutricionista não tentará nem emagrecer nem engordar sua paciente, pois o problema dela não é o peso corporal, mas o fato de que ela discorda de si mesma a ponto de não conseguir enxergar seu corpo como ele é.

No caso da orientação sexual ego-distônica, vale o mesmo princípio: o problema do paciente não é seu desejo sexual específico, mas o fato de que ele não consegue concordar com seu próprio desejo, seja ele qual for. As razões possíveis dessa discordância são múltiplas. Por exemplo, posso discordar de meu desejo sexual porque ele torna minha vida impossível numa sociedade que o reprime (moral ou judicialmente) e cujas regras interiorizei. Ou posso discordar de meu desejo porque ele não corresponde a expectativas de meus pais que se tornaram minhas próprias. E por aí vai.

Nesses casos, o terapeuta que tentar resolver o problema confiando em sua visão do mundo e propondo-se "endireitar" o desejo de quem o consulta, de fato, só agudizará o conflito (consciente ou inconsciente) do qual o paciente sofre. Ora, é esse conflito que o terapeuta deve entender e, se não resolver, amenizar, ou seja, negociar em novos termos, menos custosos para o paciente. Em outras palavras, diante da ego-distonia, o terapeuta não pode tomar partido nem pelo desejo sexual do paciente, nem pelas instâncias que discordam dele.

Ou melhor, ele pode, sim, só que, se agir assim, ele deixa de ser terapeuta e vira militante, padre ou pastor.

13 agosto 2009

Imitar e mostrar as pombas

Imitar e mostrar as pombas

A arte contemporânea é devorada por uma paixão pedagógica;a que preço?


RECENTEMENTE, VISITEI o Castello de Rivoli, perto de Torino. É uma antiga residência régia, transformada (admiravelmente) em museu de arte contemporânea.

Gostei da exposição temporária do momento (Thomas Ruff, o artista-fotógrafo), mas me decepcionei com a coleção permanente (o que estava à mostra era, sobretudo, "arte povera", um movimento italiano, forte nos anos 70, que compõe obras com restos e materiais humildes, achando e declarando que, com isso, ele criticaria, sei lá, o capitalismo).

Manifestei minha decepção: não acho graça em obras que só nos proporcionam algum tipo de experiência à condição de sermos "instruídos" pelo discurso programático que as acompanha.
Uma parte da arte contemporânea, aliás, parece existir para garantir a plena ocupação dos críticos, pois, sem seus comentários, as obras nos diriam pouco ou nada.

A amiga que me acompanhava desdenha de minhas preferências estéticas (mas tranquilize-se: não é verdade que eu goste só de arte figurativa). Na ocasião, ela me administrou um chavão: a arte contemporânea não imita a natureza, ela se preocupa em questionar o próprio ato de criar, como um prestidigitador que tivesse a gentileza de mostrar as pombas na manga de seu casaco em vez de nos iludir com seu truque. Além disso, a arte contemporânea pede que o artista prefira expressar sua "subjetividade" a "imitar" o mundo.

Pois é, mas parece que perdemos a capacidade de enxergar, na arte realista em geral, os mil jeitos pelos quais o artista (clássico, acadêmico ou moderno) SEMPRE expressou sua subjetividade e SEMPRE questionou a tradição e os meios de sua arte.

A novidade é que, frequentemente, a arte contemporânea é devorada por uma paixão pedagógica, uma vontade de explicitar. Por exemplo, o olhar de "Olympia" de Manet, desafiador, direto para nossos olhos, é suficiente para evocar a complexidade da relação entre o pintor e seu modelo. Mesmo assim, poucas décadas mais tarde, Cézanne pintou "Une Moderne Olympia", em que o pintor está incluído no quadro, de costas, sentado diante de seu cavalete. Ou seja, para que os modernos se lembrem de que, em cada quadro, trata-se não só do objeto retratado mas também do ato de pintar, ele sentiu a necessidade de explicitar.

Provavelmente, uma "Olympia" contemporânea seria: nenhum quadro, apenas um cavalete no meio de uma sala. Com essa explicitação, ganhamos algum entendimento? Talvez. Mas a que preço?

Na base da vocação pedagógica da arte contemporânea há uma concepção simplista da "reles" imitação. Três casos, para refletir.

1) Na mesma viagem em que visitei Rivoli, passei por Arles, no sul da França, e revi o Hôtel-Dieu, onde, no fim de 1888, cuidaram de Van Gogh, que acabara de cortar sua famosa orelha. No ano seguinte, os cidadãos de Arles, com um abaixo assinado, pediram que o pintor fosse internado de vez, e Van Gogh viveu num asilo o pouco que sobrava de seus dias.
Num dos quadros que Van Gogh pintou em Arles, ele representou o pátio florido do Hôtel-Dieu. Bom, já faz décadas que a municipalidade de Arles instrui seus paisagistas para que cultivem e podem de forma que o pátio do Hôtel-Dieu se pareça com o quadro de Van Gogh.

2) Oscar Wilde disse um dia que, antes de William Turner (o pintor romântico inglês), o crepúsculo não existia. É um paradoxo, mas nem tanto: é desde Turner que a gente começou a espreitar o pôr do sol como se fosse uma espécie de obra de arte da natureza.

3) Depois da Segunda Guerra Mundial, Varsóvia e Dresden eram um amontoado de escombros. Para reconstruí-las, as municipalidades confiaram nas obras de Bernardo Bellotto, um pintor do século 18 que pintara, justamente, paisagens urbanas de Dresden e Varsóvia. Ora, Bellotto alterava alegremente a disposição e a forma dos edifícios, caso isso melhorasse a composição de seus quadros.

Nos três casos, uma mesma pergunta: quem "imita" quem ou o quê?
Duas sugestões.

"Exactitude", de J.R. Taylor (Thames & Hudson) é uma esplêndida monografia sobre o grupo Exactitude e seu realismo fotográfico (a história de Bellotto, aliás, aprendi na introdução de Taylor).

Acaba de sair "San Paolo" (PubliFolha), que reúne os desenhos paulistanos de Vincenzo Scarpellini, de 2000 a 2006: é um bom jeito para constatar que, em arte, "imitar" significa, de fato, enxergar, revelar e sonhar.

ccalligari@uol.com.br