24 novembro 2010

A coerência é um valor moral?



A coerência é o último refúgio de quem tem pouca fantasia e, talvez, de quem tem pouca coragem

NO FIM de semana retrasado, estive em Olinda, na Fliporto (Feira Literária Internacional de Pernambuco). No sábado, Benjamin Moser, que escreveu uma linda biografia de Clarice Lispector ("Clarice,", Cosac Naify), lembrou que, na famosa entrevista concedida à TV Cultura em 1977, a escritora afirmou que não fizera concessões, não que soubesse.

Moser acrescentou imediatamente que ele não poderia dizer o mesmo. E eis que o público se manifestou com um aplauso caloroso.

Talvez as palmas de admiração fossem pela suposta coerência adamantina de Clarice, que nunca teria feito concessões na vida. Talvez elas se destinassem a Benjamin Moser pela admissão sincera de que ele (como todos nós) não poderia dizer o mesmo que disse Clarice.

Tanto faz. Nos dois casos, o pressuposto é o mesmo. Que as palmas fossem pela força de caráter de Clarice ou pela honestidade de Moser ao reconhecer sua própria fraqueza, de qualquer forma, não fazer concessões parecia ser, para os presentes, uma marca de excelência moral.

A pergunta surgiu em mim na hora: será que é mesmo? Posso respeitar a tenacidade corajosa de quem se mantém fiel a suas convicções, mas no que ela difere da teima de quem se esconde atrás dessa fidelidade porque não sabe negociar com quem pensa diferente e com o emaranhado das circunstâncias que mudam? Aplicar princípios e nunca se afastar deles é uma prova de coragem? Ou é a covardice de quem evita se sujar com as nuances da vida concreta?

Como muitos outros, se não como todo mundo, cresci pensando que não fazer concessões é uma coisa boa.

Fui criado na ideia de que há valores não negociáveis e mais importantes do que a própria vida (dos outros e da gente). Talvez por isso me impressionasse a intransigência dos mártires cristãos (embora eu tivesse uma certa simpatia envergonhada por Pedro renegando Jesus para evitar ser reconhecido e preso).

Durante anos admirei os bolcheviques por eles serem homens de ferro (a expressão é de Maiakóvski, nada a ver com "Iron Man") e desprezei Karl Kautsky, que Lênin estigmatizou para sempre como "o renegado Kautsky", por ele ter mudado de opinião sobre a Primeira Guerra, sobre a revolução proletária, sobre o bolchevismo etc.

Vingança da história: Lênin se tornou quase ilegível, mas a obra principal de Kautsky, que acaba de ser traduzida, "A Origem do Cristianismo" (Civilização Brasileira), continua crucial.

Mas voltemos ao assunto. Hoje, estou mais para Kautsky do que para bolchevique; até porque descobri, desde então, que Mussolini se vangloriava gritando: "Eu me quebro, mas não me dobro". Ele se quebrou mesmo, enquanto eu me dobro e posso renegar ideias minhas que pareçam ser, de repente, inadequadas ao momento (dos outros, do mundo e meu).

Olhando para trás, descubro (com certo orgulho) que, ao longo da vida, fiz inúmeras concessões, inclusive na hora de escolhas fundamentais. Poucas vezes lamentei não ter sido coerente. Mas muitas vezes lamento não ter sabido fazer as concessões necessárias, por exemplo, na hora de ajustar meu desejo ao desejo de pessoas que amava e de quem, portanto, tive que me afastar.

Alguém dirá: espere aí, então a fidelidade a princípios e valores não é uma condição da moralidade?
Estou lendo (vorazmente) "O Ponto de Vista do Outro", de Jurandir Freire Costa (Garamond). O livro é, no mínimo, uma demonstração de que a forma moderna da moral não é o princípio, mas o dilema. E, no dilema, o que importa não é a fidelidade intransigente a valores estabelecidos; no dilema, o que importa é, ao contrário, nossa capacidade de transigir com as situações concretas e com os outros concretos.

A coerência é uma virtude só para quem se orienta por princípios. Para o indivíduo moral, que se orienta (e desorienta) por dilemas, a coerência não é uma virtude, ao contrário, é uma fuga (um tanto covarde) da complexidade concreta. Oscar Wilde, que é um grande fustigador de nossas falsas certezas morais, disse que "a coerência é o último refúgio de quem tem pouca fantasia" e, eu acrescentaria, de quem tem pouca coragem.

Resta absolver Clarice. Aquela frase da entrevista era, provavelmente, apenas uma reverência retórica a um lugar-comum de nosso moralismo trivial.

18 novembro 2010

Felicidade e alegria





Ser alegre (muito melhor do que ser feliz) é gostar de viver mesmo quando a vida nos castiga



QUANDO EU era criança ou adolescente, pensava que a felicidade só chegaria quando eu fosse adulto, ou seja, autônomo, respeitado e reconhecido pelos outros como dono exclusivo do meu nariz.

Contrariando essa minha previsão, alguns adultos me diziam que eu precisava aproveitar bastante minha infância ou adolescência para ser feliz, pois, uma vez chegado à idade adulta, eu constataria que a vida era feita de obrigações, renúncias, decepções e duro labor.

Por sorte, 1) meus pais nunca disseram nada disso; eles deixaram a tarefa de articular essas inanidades a amigos, parentes ou pedagogos desavisados; 2) graças a esse silêncio dos meus pais, pude decretar o seguinte: os adultos que afirmavam que a infância era o único tempo feliz da vida deviam ser, fundamentalmente, hipócritas; 3) com isso, evitei uma depressão profunda pois, uma vez que a infância e a adolescência, que eu estava vivendo, não eram paraíso algum (nunca são), qual esperança me sobraria se eu acreditasse que a vida adulta seria fundamentalmente uma decepção?

Cheguei à conclusão de que, ao longo da vida, nossa ideia da felicidade muda: 1) quando a gente é criança ou adolescente, a felicidade é algo que será possível no futuro, na idade adulta; 2) quando a gente é adulto, a felicidade é algo que já se foi: a lembrança idealizada (e falsa) da infância e da adolescência como épocas felizes.

Em suma, a felicidade é uma quimera que seria sempre própria de uma outra época da vida -que ainda não chegou ou que já passou.

No filme de Arnaldo Jabor, "A Suprema Felicidade", que está em cartaz atualmente, o avô (extraordinário Marco Nanini) confia ao neto que a felicidade não existe e acrescenta que, na vida, é possível, no máximo, ser alegre.

Claro, concordo com o avô do filme. E há mais: para aproveitar a vida, o que importa é a alegria, muito mais do que a felicidade. Então, o que é a alegria?

Ser alegre não significa necessariamente ser brincalhão. Nada contra ter a piada pronta, mas a alegria é muito mais do que isso: ser alegre é gostar de viver mesmo quando as coisas não dão certo ou quando a vida nos castiga. É possível, aliás, ser alegre até na tristeza ou no luto, da mesma forma que, uma vez que somos obrigados a sentar à mesa diante de pratos que não são nossos preferidos ou dos quais não gostamos, é melhor saboreá-los do que tragá-los com pressa e sem mastigar. Melhor, digo, porque a riqueza da experiência compensa seu caráter eventualmente penoso.

Essa alegria, de longe preferível à felicidade, é reconhecível sobretudo no exercício da memória, quando olhamos para trás e narramos nossa vida para quem quiser ouvir ou para nós mesmos. Alguém perguntará: é reconhecível como?

Pois é, para quem consegue ser alegre, a lembrança do passado sempre tem um encanto que justifica a vida. Tento explicar melhor.

Para que nossa vida se justifique, não é preciso narrar o passado de forma que ele dê sentido à existência. Não é preciso que cada evento da vida prepare o seguinte. Tampouco é preciso que o desfecho final seja sublime (descobri a penicilina, solucionei o problema do Oriente Médio, mereci o Paraíso).

Para justificar a vida, bastam as experiências (agradáveis ou não) que a vida nos proporciona, à condição que a gente se autorize a vivê-las plenamente.

Ora, nossa alegria encanta o mundo, justamente, porque ela enxerga e nos permite sentir o que há de extraordinário na vida de cada dia, como ela é.

É óbvio que não consegui explicar o que são a alegria e o encanto da vida. Talvez eles possam apenas ser mostrados: procure-os em "Amarcord" (1973), de Federico Fellini, em "Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas" (2003), de Tim Burton ou no filme de Jabor. "A Suprema Felicidade" me comoveu por isto, por ter a sabedoria terna de quem vive com alegria e, portanto, no encantamento.

Segundo Max Weber (1864-1920), a racionalidade do mundo industrial teria acabado com o encanto do mundo. Ultimamente, bruxos, vampiros, lobisomens, deuses e espíritos andam por aí (e pelas telas de cinema); aparentemente, eles nos ajudam a reencantar o mundo.

Ótimo, mas, para reencantar o mundo, não precisamos de intervenções sobrenaturais. Para reencantar o mundo, é suficiente descobrir que o verdadeiro encanto da vida é a vida mesmo.

11 novembro 2010

Despedidas virtuais




Você já terminou um relacionamento pela internet ou por uma mensagem de celular?



NO SÁBADO passado, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, Xico Sá, Bebel Bertuccelli e eu comentamos os resultados de uma pesquisa, realizada pela Nokia, sobre a relação dos brasileiros com as ferramentas sociais da era digital.

Uma das perguntas da pesquisa dizia: "Você já terminou ou já terminaram um relacionamento com você via internet ou por mensagem de celular?".

Responderam positivamente 15% dos entrevistados. Já antes do debate, essa história de namoros terminados com uma mensagem virtual fez que eu fosse repetidamente consultado: o que achava desse horror tecnológico, hein?

Pois é, tendo a considerar esse tipo de despedida virtual com uma certa simpatia.

1) Em geral, aceitamos que, para muitos homens e mulheres, seja mais fácil encontrar alguém no mundo virtual do que no mundo real. Entendemos, por exemplo, que, na hora de seduzir, os tímidos, retraídos, acanhados ou inibidos soltem mais facilmente os dedos no teclado do que a palavra num encontro cara a cara.

Nota: seria injusto contrapor os que preferem o virtual aos que preferem o real como se os primeiros fossem mentirosos e, os segundos, honestos e sinceros. Virtual ou real, o encontro inicial é quase sempre um jogo em que se trata de convencer o outro de que somos alguma coisa que nem nós acreditamos ser. Quem prefere teclar talvez se esconda graças à distância, mas quem prefere falar ao vivo não abre sua alma: apenas desprende a lábia.

2) Se aceitamos que o virtual facilite a abordagem e as primeiras trocas, por que não deixaríamos que o virtual facilite também as despedidas? De fato, o virtual permite que os tímidos, os retraídos etc. declarem sua vontade de se separar, e isso sem medo de encarar torneios verbais que eles perderiam e que produziriam tentativas culpadas, penosas e infinitas de "reatar mais uma vez".

3) No começo de uma relação amorosa, o virtual talvez sirva para mentir melhor; no fim de um amor, ele pode ajudar a dizer a verdade, ou seja, a reconhecer, enfim, que uma relação está continuando apenas como mentira compartilhada.

4) Em média, a dificuldade em "encontrar alguém" não é maior do que a dificuldade em se separar quando uma relação não vale mais a pena.

5) Os tempos de solidão, durante a procura frustrada de um parceiro ou de uma parceira, são tão longos quanto os tempos de solidão de parceiros que vivem sem paixão, sem amizade e, às vezes, no rancor.

6) A insatisfação de quem procura um amor é esperançosa, enquanto a vida dos que não conseguem se separar é resignada.

7) Um SMS ou um e-mail de despedida podem surpreender quem os recebe, mas só como a revelação de algo que ele já sabia e, por alguma covardia, não confessava nem a si mesmo: ninguém termina virtualmente um amor que não esteja realmente morto.

8) Às vezes, sobretudo (mas não só) nas mulheres, a reação de quem recebe a mensagem de despedida é um pensamento delirante: o outro se separa de mim por SMS porque, se aparecesse na minha frente, ele teria que se render ao amor que ele ainda sente por mim (ele não sabe, mas eu sei que ele sente). Nesse caso, salve-se quem puder.

9) Toda separação é, no mínimo, a perda de um patrimônio comum de experiências e memórias. A dor dessa perda é frequentemente projetada no outro: digo que não posso ou não ouso me separar por e-mail ou SMS porque não quero machucar o outro, enquanto, de fato, é minha dor que quero evitar -com isso, eternizo o declínio da relação e o sofrimento do casal.

10) A convivência numa relação morta é um limbo confortável: para ambos, uma espécie de trégua do desejo. A separação apavora com a perspectiva de voltar a desejar. Antes de mandar um fatídico SMS, alguém hesita: "Vai ser difícil voltar à ativa com a minha idade" -e vai ser mesmo. Ou, então, pergunta: "E se eu ficar sozinho?"; resposta: "Mas você já está sozinho, há tempos".

Moral da história. É bom tentar tudo o que der para que uma relação vingue. Quando ela não vinga (mais), é bom ousar se separar. E deveríamos agradecer os parceiros que nos mandam um SMS lacônico e brutal, "Valeu, beijão e sorte". Pois, desprendendo-se, eles nos libertam e encurtam um processo no qual poderíamos perder anos da vida.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1111201030.htm

04 novembro 2010

Qual divisão do país?




O país me parece muito mais maduro do que mostraram os grupos raivosos das militâncias



SEGUNDA-FEIRA CHUVOSA, no Rio. Leio todos os jornais que encontro, tomando meu café da manhã na Pavelka, padaria merecidamente popular, no Leblon. Não sou o único cliente com mais de um cotidiano nas mãos.

Na mesa do meu lado, dois homens, mais ou menos da minha idade, comentam o resultado da eleição presidencial. Aparentemente, um dos dois votou no Serra, e o outro, na Dilma; mas é óbvio que nenhum dos dois é um fanático.

O tom geral da conversa é de uma certa preguiça, um "ainda bem que terminou", alimentado pela sensação (que os dois parecem compartilhar) de que não havia nada de realmente decisivo que opusesse os candidatos do segundo turno.

Enquanto escuto os dois amigos do Leblon, que comem croquetes de frango e carne, como eu, penso que o país não está dividido e não tem por que estar.

Para começar, contrariamente ao que foi repetido nas queixas de ambas as partes, a campanha não foi especialmente violenta nem sórdida. Tudo bem, voaram balões de água e rolos de fita crepe, e os militantes se chocaram aos berros, de vez em quando. Como é normal que aconteça, cada lado acusou o outro de baixaria e brutalidade. E cada lado zombou das "lamúrias" do outro. Por sorte (mas, na verdade, penso que não foi sorte: foi juízo), os (raros) enfrentamentos nunca tiveram consequências graves, e eu me lembro de uma época, na Europa, em que uma manifestação sem feridos era exceção.

Cá entre nós, a campanha de 2010 foi tranquila. E não acho que isso tenha acontecido só graças ao temperamento naturalmente conciliatório dos brasileiros.

Ainda no primeiro turno, li as propostas e os argumentos de Dilma, Serra e Marina. Pois bem, nunca fiquei com a impressão de que o país estivesse, como se dizia nos meus tempos, diante de uma "escolha de sociedade", tendo que decidir entre futuros radicalmente divergentes. Ao contrário, parece-me que o país teve a sorte de ser chamado a votar em candidatos que todos, atrás das oposições indispensáveis para que as candidaturas e as campanhas fizessem sentido, compartilhavam as mesmas preocupações básicas.

Nesta segunda, vários cotidianos apresentaram, mais uma vez, os planos de governo de Dilma e Serra, frente a frente, para uma última comparação. Reli com cuidado. Claro, há diferenças quanto às prioridades e aos meios e, de qualquer forma, resta se perguntar qual dos dois seria mais eficiente na hora do vamos ver, mas o sentimento inspirador é parecido. Ou seja, nada impediria que José Serra e Dilma estivessem aqui, na Pavelka, discutindo o que seria melhor para o país, entre amigos.

Afinal, eles pertencem a uma mesma geração, a dos que definiram suas aspirações políticas (de fato, suas vidas) na resistência à ditadura militar. Como não compartilhariam um fundo moral comum? Como poderia ser que ambos não desejassem, de um jeito ou de outro, uma sociedade livre e decente, na qual seja mais agradável conviver?

Quem assistiu aos debates presidenciais na televisão afirma que eles foram chatos; aliás, que toda a campanha foi chata. Concordo, mas não estranho: quando existe, entre candidatos, um fundo político comum, só resta debater temas cuja relevância é fictícia ou pretextuosa e, sobretudo, inventar jeitos de demonizar o adversário.

Essa última foi a função das militâncias, oficiais e oficiosas. Sobre esse tema sou suspeito: tenho ojeriza a todas as identidades coletivas. A história de minha geração de europeus e norte-americanos é que passamos por várias identidades coletivas e, no fim, ficamos fundamentalmente anarquistas (ou, numa vertente mais integrada, individualistas).

Peço vênia, mas, recebendo os inúmeros e-mails das militâncias, com desnudamentos extraordinários de última hora, revelações desvendando o grande complô da mídia, e, enfim, agora, com as maldições dos que perderam e os hosanas dos que ganharam, sinto-me um pouco como num jogo de futebol, em que a violência estúpida e cega das torcidas me impede de aproveitar meu domingo no estádio.

Mesmo assim, nesta segunda chuvosa, aqui no Rio de Janeiro, o país me parece infinitamente mais maduro do que suas militâncias -mais parecido com uma mesa da Pavelka com amigos discordando e discutindo do que com o espaço raivoso e vazio da gritaria on-line das últimas semanas.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0411201028.htm