A culpabilidade, dizíamos nesta coluna, parece ser o novo afeto dominante da sensibilidade progressista americana, pelo menos desde os anos 60. Mas de onde ela surgiu? Os acontecimentos da década não explicam nada. Certo, hove a fome em Biafra e a revolta negra. Mas restaria explicar porque a fome dos outros se transformaria em culpa de quem os alimenta; ou a discriminação dos outros em culpa de quem goza de seus plenos direitos.
Dir-se-á que cada hambúrguer engolido é puxado da boca de uma criança faminta, e que, cada vez que um americano se senta em um restaurante onde haja menos que 9% de negros, ele está roubando uma cadeira. Mas é bem a questão: como aconteceu, não só nos EUA aliás, que se acabou pensando desta forma? Um justo altruísmo pode, certo, querer compartilhar peixes, pães e direitos, mas será que precisa por isso bater a culpa?
Houve também o Vietnã. Mas a desastrada aventura vietnamita não foi tanto uma causa quanto um efeito da culpa. Ela demonstrou, aliás, que é impossível ganhar quando a vitória é de antemão culpada.
Ora, já em 1947 (em "Eclipse of Reason"), Horkheimer escrevia: "Mesmo se um grupo de pessoas combatesse o maior mal imaginável, a razão subjetiva tornaria impossível indicar, na natureza do mal ou da natureza da humanidade, os motivos da luta. E muitos perguntariam quais são os verdadeiros motivos." Ele acrescentava que qualquer referência a uma norma ou a um valor pretensamente objetivos, para justificar o conflito, seria considerada (pelos próprios combatentes, aliás) como o disfarce de algum interesse, econômico ou político, inconfessável. Horkheimer tinha razão: de fato, desde a aliança contra a ameaça nazista, o Ocidente nunca mais conseguiu acreditar nas razões pelas quais ele mesmo justifica seus conflitos.
Para entender melhor: Horkheimer opõe aqui razão objetiva e razão subjetiva. Os termos indicam duas maneiras dos seres humanos conceberem e vivenciarem a instância que orienta suas escolhas e ações. A razão objetiva é a razão vivenciada como um istema de princípios e valores, imanente à realidade ou à herança cultural: ela é própria às sociedades tradicionais. A razão subjetiva é vivenciada como uma faculdade autônoma do simples indivíduo: ela é própria ao Ocidente e à sua modernidade.
A observação então significa que, na modernidade ocidental, só podemos justificar nossos atos e escolhas por uma decisão supostamente individual, autônoma. Se invocarmos princípios externos a nós mesmos, ou seja objetivos, para que possam servir de autoridade ou referência, eles só aparecerão como camuflagens, pretextos, desculpas para razões não confessadas e em últim instância sempre subjetivas, individuais, interesseiras. O fracasso americano no Vietnã foi em grande parte isso: a demonstração de uma incapacidade de ir para guerra acreditando nas razões objetivas declaradas (defesa da democracia etc.) e o consequente paradoxo de uma nação querendo perder, de vergonha.
É normal, assim, que a culpa e a vergonha, sua irmã, dominem a cena. Pois, por um lado, irremediavelmente céticos, não sabemos acreditar nos valores objetivos que eventualmente inovamos. Por outro lado, experimentamos a fragilidade de escolhas cuja razão seriam só nossa decisão, ou nossos inateresses individuais. Nosso agir é: ou suspeito ou desprezível por nós mesmos. O membro de uma cultura tradicional achará moralmente indiscutível, por força da razão objetiva, uma guerra em defesa dos usos e costumes de sua comunidade.
Para nós é diferente: quando George Bush disse que os "Gls" iam contra o Iraque defender o "way of life" do Ocidente (que, por exemplo, precisa de petróleo) produziu indignação. Pois a vergonha e a culpa espreitam necessariamente qualquer escolha que não se sustente na autoridade de uma tradição. Mas, se ele tivesse preferido uma retórica da razão objetiva e invocado a defesa da democracia contra a tirania, teria sido pior ainda. A acusação não seria de cinismo, mas de mentira descarada.
Por sermos indivíduos, sujeitos da razão subjetiva, acabamos sempre envergonhados e culpados de nossas escolhas e de nossos atos. Se invocamos nossos interesses, somos culpados da miséria de nossas motivações. Se invocamos princípios éticos universais (nossa tradição), somos culpados de mentir. Qual saída nossa modernidade estaria inventando para este impasse?
Elementos de resposta se encontram por toda parte onde a cultura ocidental –a cultura da razão subjetiva e do individualismo. Os indícios se multiplicam hoje, não só nos EUA, de uma redução da subjetividade humana à sua dimensão real mínima; fisiológica. Talvez seja esta a última versão do "mínimo self" de Christopher Lasch ("O Eu Mínimo", Brasiliense, 1984). Justamente desde os anos 60, a vida parece se definir cada vez menos pelas significações que lhe atribuímos.
Mais exatamente, a significação da vida coincide cada vez mais com a sobrevivência material, ou com o bom funcionamento fisiológico de nossos corpos (inversão radical, aliás, pois geralmente o que definia uma significação para a vida era nossa eventual disponibilidade a morrer por ela). Idéias e ideais encontram, em suma, um denominador mínimo comum no bem-estar. Mas um bem-estar reduzido à sua expressão fisiológica: sobreviver, bem comer, bem dormir, bem sexar... A imagem da felicidade não é mais um sonho político, mas uma receita médica, nutricionista, ginástica.
É uma solução elegante. Com efeito, qual melhor alternativa para o individualismo de nossa cultura e sua desconfiança nos valores do que escolher como valor e alvo da existência a boa manutenção de nossa vida fisiológica? Na falta de uma tradição que precisamos sempre renegar, na falta de uma razão objetiva –falta que é o traço distintivo de nossa cultura– o corpo real não poderia nos oferecer uma nova e aceitável objetividade que possa conferir autoridade a nossas escolhas? Ele tem a vantagem de ser ao mesmo tempo objetivo, comum e, para cada um, um bom representante de sua individualidade.
Mas a redução da subjetividade ao corpo talvez xeja só uma face de um processo mais amplo e complexo. Se é preciso desconfiar dos valores simbólicos, por que não procurar orientação no real? Não só dando à vida uma significação real (ela serviria sua própria manutenção fisiológica), mas também, por exemplo, entendendo a política como uma contabilidade de vantagens e desvantagens reais.
Seria possível, assim, abandonar o duvidoso recurso a valores e projetos e se reunir em grupos políticos novos ao redor de traços reais, corporais (para começar, preferências sexuais, propriedades anatômicas ou cor da pele) e de exigências também reais: fui privado disso, que me devolvam! Ou: te privaram, vou te devolver! Nos anos 60, o sujeito progressista pareceu constatar que não era feito só de ambições de justiça social para todos, mas também de especificidades culturais, fantasias sexuais, desejos, afetos singulares, talvez compartilháveis por um grupo particular, mas certo, não universais. O progressimo de repente abandonou seu projeto de transformação da sociedade como todo e abraçou a causa dos particularismos.
Descobriu tarde demais, aliás, que, entre estas diferenças enfim reconhecidas, nenhum sonho de uma nova comunidade era praticável (Todd Gitlin, que já escreveu sobre os anos 60, descreveu esta transformação em "The left lost in the politics of identity"). As propriedades dos novos grupos que surgiram eram: 1) o traço comum de seus membros é um traço real: a anatomia vira único destino (note-se que a escolha homoerótica dos gays não faz exceção, pois grande parte do movimento gay norte-americano recebeu entusiasticamente as hipóteses sobre a origem genética da homossexualidade), 2) as razões políticas de sua luta não são valores, mas interesses particulares, imediatos e reais. A prova destas duas observações reside no fato que os novos grupos são por essência separatistas: não aceitam em seu seio quem não traga consigo os traços anatômicos previstos e não tenha sofrido a discriminação ou a privação correspondentes.
No grupo político tradicional, não precisava ser proletário para ser socialista ou comunista, nem ser empresário para ser liberal. Do mesmo jeito, as exigências da comunidade nacional podiam estar acima das preocupações individuais de seus membros. Assim, o burguês socialista, o operário liberal, ou o contribuinte favorável a um aumento de imposto para sustentar a força bélica de sua nação, estas figuras demonstravam de alguma forma, por sua existência, que o grupo não perseguia só interesses reais, mas também valores simbólicos que para alguns contavam mais do que sua fortuna.
O novo grupo político acredita no concreto. Ele erige a moral do "lobby" em norma política, com a diferença que encontra no corpo de seus membros um fundamento mais "nobre" do que seus interesses corporativos e também calcula estes interesses como renda de prejuízos passados.
Por que não? Talvez a razão subjetiva tenha encontrado assim, finalmente, um fundamento e tenha-se libertado da vergonha e da culpa que afetavam seu recurso esporádico a valores para ela duvidosos. Mas a culpa não sumiu por isso, ao contrário, se espalhou. Ela não é mais a consequência de nosso inevitável ceticismo (a culpa dos interesses escusos atrás dos grandes princípios). Ela regra agora relações sociais que se reduzem a um cálculo de perdas e danos. A vantagem é que a culpa pode então ser solucionada: por indenizações e compensações. O meu hambúrger priva o menino do Biafra, mas posso e devo lhe mandar farinha ou então dar preferência aos biafrenses em minha empresa.
Resta que um verdadeiro expoente da razão subjetiva, com seu bem-vindo cinismo, poderia ainda perguntar, segundo a indicação de Horkheimer: este abandono dos valores simbólicos da comunidade e triunfo dos interesses imediatos e reais, esta desistência do pensamento político ao proveito de reivindicações particulares, servem ao interesse de quem?
30 janeiro 1994
16 janeiro 1994
Crônicas americanas 2
Recentemente, um jovem brasileiro conseguiu asilo político nos Estados Unidos. Sua escolha sexual homoerótica justificou o pedido, que foi aceito por um juiz de San Francisco. (A decisão, aliás, cria um precedente que pode acarretar consequências surpreendentes. Visto o anseio migratório atual, o estado de Minas Gerais, por exemplo, poderia assistir a um inexplicável aumento do homoerotismo declarado e assumido de suas mais jovens gerações. O futuro estudioso dos costumes que se cuide na interpretação dos dados).
Há sem dúvida uma discriminação (não instituída, mas efeito de prejuízo) contra o homoerotismo no Brasil. Imaginemos que ela seja matéria suficiente para invocar um direito de asilo. Tal pedido só poderia ser recebido se for endereçado a uma nação isenta de prejuízo, segura de seu indiscutível respeito por esta escolha erótica. Para entender: faria sentido que o Iraque aceite o pedido de asilo político de um independentista curdo de nacionalidade turca?
Ora, menos de dois anos atrás, a "Newsweek International" publicava uma sondagem de opinião. A pergunta: "Será que os direitos dos gays constituem uma ameaça à família americana e seus valores?", 45% dos entrevistados respondia "Sim". A resposta, apenas minoritária, sugere um clima nada paradisíaco para um jovem gay nos EUA.
Que nosso juiz fosse de San Francisco, onde mora a maior comunidade gay dos EUA, tampouco explica sua decisão, a qual tem valor federal. Ao contrário, um juiz californiano, por sua proximidade da comunidade gay, dificilmente seria desinformado a ponto de pensar que os brasileiros sejam mais homófobos do que os norte-americanos. Resta assim supor que ele não concedeu o asilo político nem por causa de duvidosas perseguições brasileiras, nem por causa de duvidosas seguranças norte-americanas.
A escolha do juiz não se funda na verdade dos fatos; ela parece querer resgatar a culpa desses fatos. Em outras palavras, a razão da escolha do juiz não é o eventual desconhecimento da tolerância brasileira e da homofobia americana. A razão de sua escolha são as próprias manifestações homófobas nos EUA, como no Brasil. A culpa destas mesmas manifestações é que parece produzir uma necessidade de compensação. Desta decisão é o juiz que espera sair inocentado; é ele que entra culpado na câmara e decide não segundo sua consciência, mas segundo sua culpa, ou –ainda– assimilando sua consciência à culpa social.
Do mesmo jeito, Mike Tyson está ainda na prisão. Ele não está pagando um crime duvidoso, ele está resgatando uma culpa social relativa às mulheres. Se a pretensa vítima de Tyson fosse branca, a coisa complicaria, pois a culpa para com os negros teria produzido um conflito de culpas jurídicas. Entenda-se de novo: culpas dos jurados e dos juízes e não do réu.
O poder judiciário não tem o monopólio da culpa, longe disso. Sua "alma mater" seria antes a universidade, tradicional caldeirão da sensibilidade progressista. Lembremos a história de Leonard Jeffrey (veja-se o excelente artigo de J. Traub, "The New Yorker", 7/6/93). Jeffrey tornou-se professor e chefe do Departamento de Black Studies da City University of New York desde o embalo de sua criação. Era o fim dos anos 60, após o assassinato de Martin Luther King, e a chantagem devia funcionar: "Os programas separados de Black Studies ou o caos".
Que se tenha cedido a essa exigência de uma comunidade discriminada e ferida é normal. Mas por que isso implica que uma universidade desista de sua vocação própria e permita a deriva de tais departamentos em oficinas de ideologias racistas e separatistas sem mesmo o pudor de um semblante de dignidade acadêmica? Essa desnecessária desistência só parece se explicar pelo sentimento de culpa. (Note-se que isto não é sempre o caso; vários departamentos de Black Studies produziram e produzem contribuições essenciais, por exemplo, à historiografia americana).
Assim, Jeffrey, sem qualquer qualificação acadêmica significativa, ocupou durante anos uma cadeira de onde propagou doutrinas falsas, teorias semitas, incitação ao ódio racial etc. O silêncio da Cuny não foi covardia, mas culpa. O caso acabou explodindo a partir de uma palestra pública em 91. De toda parte sua exclusão foi pedida e a Cuny foi bem feliz em ceder à pressão cultural e política. Mas eis que, em maio de 93, um júri federal, colega do juiz de San Francisco, considerou que a decisão da Cuny era lesiva aos direitos constitucionais de Jeffrey e condenou a Cuny a indenizar em US$ 400 mil e a reinstalar em seu ofício esta tragicômica figura.
A culpa, em suma, parece reinar soberana. Os incrédulos poderão ler o excelente livro de Robert Hughes ("A Cultura da Reclamação", Companhia das Letras, 1993) e verificar que ela pode destituir a verdade, comprometer a memória, erigir-se em critério moral e mesmo decidir do juizo estético (pois a arte se torna prerrogativa da vítima). Mas será que invocar a verdade, a memória, a moral ou mesmo o gosto é uma resposta possível?
Jeffrey contava e conta bobagens (por exemplo, uma cosmogonia que atribui ao judaísmo a origem da escravatura e nega sua existência na Africa islâmica e negra bem antes que o comércio ocidental se interesse em explorá-la). Seria fácil fazermo-nos aqui de paladinos da "verdade" contra uma ideologia barata. Mas, se tomássemos a defesa dos "fatos", todos –o juiz de San Francisco e os Jeffreys da vida– nos diriam provavelmente que qualquer verdade serve sempre a interesses escusos. Em outras palavras, eles nos diriam que a "justiça" deve estar acima da verdade e não o contrário.
Desse ponto de vista, os fatos ou a história como nós os contamos, de qualquer forma, sempre seriam a epopéia da qual necessitamos para dar um sentido ao nosso presente e ao nosso futuro. Entre os "Jeffreys" e nós, então, não haveria nenhuma diferença de fundo. Só se oporiam aqui diferentes versões da história americana: uma (aquela da qual seríamos acusados de ser os defensores) que alvejaria os progressos da nação, outra (a de Jeffrey) que alvejaria a separação dos negros norte-americanos, outra ainda (a do juiz de San Francisco) que alvejaria a separação social segundo as escolhas sexuais etc.
No final das contas, cada versão valeria tanto quanto as outras. E deveríamos pensar que talvez estejamos só assistindo a uma transformação do tecido social, onde decai a comunidade de destino, que é tradicionalmente uma nação –ou que quis ser, por exemplo, o proletariado– e surgem novos destinos coletivos para os quais se constróem novas histórias e novos mitos: as mulheres, os gays, os negros etc.
Se assim fosse, nossa aparente insatisfação com a desagregação social que esta transformação parece impor, não seria nada mais do que uma nostalgia babaca. Mas é legítimo se perguntar que mundo promete esta nova sensibilidade progressiva. Ou ainda se os grupos de "vítimas", que parecem se substituir, por exemplo, à classe ou à nação, anunciam, como pretendem, uma nova política, ou então testemunhem, quer se queira quer não, uma época, a nossa, onde a ação propriamente política parece cada vez mais difícil.
Há sem dúvida uma discriminação (não instituída, mas efeito de prejuízo) contra o homoerotismo no Brasil. Imaginemos que ela seja matéria suficiente para invocar um direito de asilo. Tal pedido só poderia ser recebido se for endereçado a uma nação isenta de prejuízo, segura de seu indiscutível respeito por esta escolha erótica. Para entender: faria sentido que o Iraque aceite o pedido de asilo político de um independentista curdo de nacionalidade turca?
Ora, menos de dois anos atrás, a "Newsweek International" publicava uma sondagem de opinião. A pergunta: "Será que os direitos dos gays constituem uma ameaça à família americana e seus valores?", 45% dos entrevistados respondia "Sim". A resposta, apenas minoritária, sugere um clima nada paradisíaco para um jovem gay nos EUA.
Que nosso juiz fosse de San Francisco, onde mora a maior comunidade gay dos EUA, tampouco explica sua decisão, a qual tem valor federal. Ao contrário, um juiz californiano, por sua proximidade da comunidade gay, dificilmente seria desinformado a ponto de pensar que os brasileiros sejam mais homófobos do que os norte-americanos. Resta assim supor que ele não concedeu o asilo político nem por causa de duvidosas perseguições brasileiras, nem por causa de duvidosas seguranças norte-americanas.
A escolha do juiz não se funda na verdade dos fatos; ela parece querer resgatar a culpa desses fatos. Em outras palavras, a razão da escolha do juiz não é o eventual desconhecimento da tolerância brasileira e da homofobia americana. A razão de sua escolha são as próprias manifestações homófobas nos EUA, como no Brasil. A culpa destas mesmas manifestações é que parece produzir uma necessidade de compensação. Desta decisão é o juiz que espera sair inocentado; é ele que entra culpado na câmara e decide não segundo sua consciência, mas segundo sua culpa, ou –ainda– assimilando sua consciência à culpa social.
Do mesmo jeito, Mike Tyson está ainda na prisão. Ele não está pagando um crime duvidoso, ele está resgatando uma culpa social relativa às mulheres. Se a pretensa vítima de Tyson fosse branca, a coisa complicaria, pois a culpa para com os negros teria produzido um conflito de culpas jurídicas. Entenda-se de novo: culpas dos jurados e dos juízes e não do réu.
O poder judiciário não tem o monopólio da culpa, longe disso. Sua "alma mater" seria antes a universidade, tradicional caldeirão da sensibilidade progressista. Lembremos a história de Leonard Jeffrey (veja-se o excelente artigo de J. Traub, "The New Yorker", 7/6/93). Jeffrey tornou-se professor e chefe do Departamento de Black Studies da City University of New York desde o embalo de sua criação. Era o fim dos anos 60, após o assassinato de Martin Luther King, e a chantagem devia funcionar: "Os programas separados de Black Studies ou o caos".
Que se tenha cedido a essa exigência de uma comunidade discriminada e ferida é normal. Mas por que isso implica que uma universidade desista de sua vocação própria e permita a deriva de tais departamentos em oficinas de ideologias racistas e separatistas sem mesmo o pudor de um semblante de dignidade acadêmica? Essa desnecessária desistência só parece se explicar pelo sentimento de culpa. (Note-se que isto não é sempre o caso; vários departamentos de Black Studies produziram e produzem contribuições essenciais, por exemplo, à historiografia americana).
Assim, Jeffrey, sem qualquer qualificação acadêmica significativa, ocupou durante anos uma cadeira de onde propagou doutrinas falsas, teorias semitas, incitação ao ódio racial etc. O silêncio da Cuny não foi covardia, mas culpa. O caso acabou explodindo a partir de uma palestra pública em 91. De toda parte sua exclusão foi pedida e a Cuny foi bem feliz em ceder à pressão cultural e política. Mas eis que, em maio de 93, um júri federal, colega do juiz de San Francisco, considerou que a decisão da Cuny era lesiva aos direitos constitucionais de Jeffrey e condenou a Cuny a indenizar em US$ 400 mil e a reinstalar em seu ofício esta tragicômica figura.
A culpa, em suma, parece reinar soberana. Os incrédulos poderão ler o excelente livro de Robert Hughes ("A Cultura da Reclamação", Companhia das Letras, 1993) e verificar que ela pode destituir a verdade, comprometer a memória, erigir-se em critério moral e mesmo decidir do juizo estético (pois a arte se torna prerrogativa da vítima). Mas será que invocar a verdade, a memória, a moral ou mesmo o gosto é uma resposta possível?
Jeffrey contava e conta bobagens (por exemplo, uma cosmogonia que atribui ao judaísmo a origem da escravatura e nega sua existência na Africa islâmica e negra bem antes que o comércio ocidental se interesse em explorá-la). Seria fácil fazermo-nos aqui de paladinos da "verdade" contra uma ideologia barata. Mas, se tomássemos a defesa dos "fatos", todos –o juiz de San Francisco e os Jeffreys da vida– nos diriam provavelmente que qualquer verdade serve sempre a interesses escusos. Em outras palavras, eles nos diriam que a "justiça" deve estar acima da verdade e não o contrário.
Desse ponto de vista, os fatos ou a história como nós os contamos, de qualquer forma, sempre seriam a epopéia da qual necessitamos para dar um sentido ao nosso presente e ao nosso futuro. Entre os "Jeffreys" e nós, então, não haveria nenhuma diferença de fundo. Só se oporiam aqui diferentes versões da história americana: uma (aquela da qual seríamos acusados de ser os defensores) que alvejaria os progressos da nação, outra (a de Jeffrey) que alvejaria a separação dos negros norte-americanos, outra ainda (a do juiz de San Francisco) que alvejaria a separação social segundo as escolhas sexuais etc.
No final das contas, cada versão valeria tanto quanto as outras. E deveríamos pensar que talvez estejamos só assistindo a uma transformação do tecido social, onde decai a comunidade de destino, que é tradicionalmente uma nação –ou que quis ser, por exemplo, o proletariado– e surgem novos destinos coletivos para os quais se constróem novas histórias e novos mitos: as mulheres, os gays, os negros etc.
Se assim fosse, nossa aparente insatisfação com a desagregação social que esta transformação parece impor, não seria nada mais do que uma nostalgia babaca. Mas é legítimo se perguntar que mundo promete esta nova sensibilidade progressiva. Ou ainda se os grupos de "vítimas", que parecem se substituir, por exemplo, à classe ou à nação, anunciam, como pretendem, uma nova política, ou então testemunhem, quer se queira quer não, uma época, a nossa, onde a ação propriamente política parece cada vez mais difícil.
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