29 maio 2008

Europa (ou Itália)


Os falsos apetrechos de luxo são o brioche (ruim) que Maria Antonieta propunha ao povo

ESTOU PASSANDO alguns dias de férias na Itália. Domingo passado, de manhã, em Veneza, sentei-me à mesa de um bar ao lado da Ponte della Veneta Marina, na Riva dei Biasi. É um dos meus lugares preferidos, pela vista, que vai de San Giorgio até o campanário de San Marco, com, no meio, a igreja della Salute.

Infelizmente, ao lado do bar, há uma sorveteria que coloca na calçada um imenso cone de sorvete de gesso (1,70 m). Visto da minha mesinha, o falso cone erguia suas bolas coloridas bem no meio, entre San Giorgio e San Marco.

Dois barcos, insensatos e idênticos, atracaram, lado a lado, na Riva dei Biasi. Deviam ser, originalmente, embarcações parecidas com os "vaporettos" que Veneza usa para o transporte público. Mas eles tinham sido camuflados de maneira a se parecer com navios piratas assim como eles seriam construídos às pressas para o carro alegórico de uma escola de samba de segunda divisão.

Ambos levavam, em letras góticas, o mesmo nome americano, "Jolly Roger". Os passageiros desceram, aparentemente felizes por ter dado sua volta por Veneza num navio "de época".
Agora minha visão incluía, entre San Giorgio e San Marco, além do cone de sorvete, dois navios piratas. Ao ver uma fotografia desse panorama, qualquer amigo apostaria que eu tinha passado minhas férias na Disneylândia de Orlando.

Numerosos turistas paravam para se imortalizar diante dos navios piratas. Talvez achassem a cena interessante por ela condensar um traço do espírito pós-moderno: o pior fazer de conta é mais divertido do que qualquer meditação sobre a herança do passado. Ou, talvez, sem achar nada, simplesmente eles participassem desse espírito.

Logo chegou um grupo de imigrantes africanos. Sentaram-se no chão para se dedicar à tarefa de preencher de papel jornal as bolsas falsas de Gucci, Prada, Louis Vuitton, Hermes etc. que eles ofereceriam aos turistas. Do alto da última ponte que os separava da maior concentração de turistas, um trio de "carabinieri" os observava à distância. É um jogo que se repete em todas as cidades italianas: a polícia se aproxima e os imigrantes vendedores se afastam, respeitosamente.

Todos sabem que é proibido (tanto imigrar sem documentos quanto vender bolsas falsas), mas todos se rendem ao inelutável: 1) a África subsaariana, que não se sabe mais se é um continente ou uma balsa à deriva, só pode exportar suas massas de deserdados, 2) numa sociedade que cultua os signos aparentes de status, os falsos são o brioche (industrial e ruim) que Maria Antonieta queria oferecer ao povo que se queixava da falta de pão.

Ao lado dos navios piratas, estava atracado outro barco, vazio, o Moby Dick 2. Seus passageiros chegaram: eram pára-quedistas e veteranos da divisão Folgore, que celebrava, naquele dia, sua festa anual. Os mais jovens vestiam o uniforme, os mais idosos, que não caberiam mais na farda, só a boina vermelha.

A Folgore é um corpo de elite que escreveu suas páginas de glória, como se diz, durante a Segunda Guerra e ainda hoje combate no Afeganistão, além de cumprir missão de paz no Líbano.

Um veterano, no seu segundo aperitivo da manhã, pediu licença para a mulher que me acompanhava e cantarolou para nós uma música da divisão, que traduzo respeitando a rima: "E, se descermos num campo de bicicletas, todas as mulheres nos darão suas....".

Perto da Riva dei Biasi, quase em frente à minha casa de Veneza, há um escritório da Anpi, a associação nacional dos "partigiani" antifascistas italianos, quase sempre meio deserto. Os que tinham 20 anos em 1943 começam a minguar. Mas não é só isso: nas últimas eleições, a chegada de um presidente da Câmara que já foi do MSI (partido herdeiro do fascismo italiano) manifestou que o passado da luta antifascista não é mais o divisor de águas da política italiana ou européia.

Nestes dias, é meu aniversário -época de balanços. E o balanço saiu assim: africanos vendedores de falsos apetrechos do jet-set, Disneylândia de piratas e sorvete, soldados procurando glória e "b...etas" em causas incertas, com, no fundo, o esquecimento progressivo da história que já deu algum sentido coletivo à vida (desde os restos da grandeza veneziana até o escritório hoje vazio da Anpi).

Um americano, que estava sentado ao meu lado no bar, observou meu ar estupefato e me disse, ao levantar-se: "Cheer up", alegre-se. Ele tem razão.

22 maio 2008

Sábado no Sesc


O fotojornalismo nos força a descobrir uma densidade do instante que não queremos ver

NO SÁBADO passado, estive no Sesc Pompéia, em São Paulo, para ver a exposição de fotojornalismo da World Press Photo (até 15 de junho). A cada ano, essa organização atribui prêmios às melhores imagens entre as que são propostas por profissionais do mundo inteiro. Se você está longe de São Paulo, entre no site www.worldpressphoto.nl e clique em "Winners gallery 2008" (óbvio, a tela do computador não vale as imagens impressas).

A foto que ganhou o concurso deste ano é de Tim Hetherington, para "Vanity Fair". Representa um soldado dos Estados Unidos, numa trincheira, no Afeganistão. Ele retirou seu capacete e leva a mão direita para a testa, num gesto mais de exaustão que de desespero. A mão levantada tapa seu olho direito. O soldado não está nem ferido nem morto; não há sangue, apenas desolação. A cena poderia resumir qualquer guerra. Um olho atônito se abre no meio de um fundo monocrômico, em que se misturam a terra, o uniforme e os panos de camuflagem pendurados atrás do soldado: é a cor de uma angústia surda e talvez da morte.

Será que Hetherington, na hora de fotografar, viu o que eu enxergo no resultado? A resposta não é simples. O processo fotográfico (do momento em que alguém enquadra e focaliza até o trabalho de Photoshop) inventa ou aumenta a riqueza narrativa do momento. Mas, antes disso, o olhar do fotógrafo deve ter reconhecido a qualidade especial do instante. Entre os livros que ensinam a fotografar, gosto, por exemplo, do velho "Guia Completo de Fotografia", de J. Hedgecoe (Martins Fontes), e da "Introdução à Fotografia Digital", de Tom Ang (DK Civilização).
Essas obras nos explicam como conferir a máxima densidade ao instante fotografado: resta que, para fotografar, é preciso, primeiro, saber e, sobretudo, querer enxergar a densidade do instante.

Muitos anos atrás, no meio de uma viagem, não consegui fotografar um momento de extrema miséria e dor (em Varanasi, Índia, um mendigo queimava sua própria ferida aberta com um pires de ferro que ele esquentava no fogo). Aquela incapacidade fez com que abandonasse meus planos de ser fotógrafo. Na época, consolei-me pensando que não conseguira fotografar pela vergonha de eu me tornar assim "apenas" um espectador da miséria ou, então, por eu não querer interpor a câmera entre a dor do mendigo e minha compaixão.

Visitando a exposição do Sesc, pensei outra coisa: o fotojornalismo descobre e revela intensidades que nem sempre queremos enxergar. Talvez eu tenha desistido de fotografar não para poder me aproximar e ver melhor, mas, ao contrário, para não ver ou para ver menos.
No mesmo sentido, quando somos chocados pelas imagens nas primeiras páginas dos jornais, é porque nos indignamos contra "o sensacionalismo", mas talvez seja também porque resistimos contra o poder da fotografia, sua capacidade de nos fazer enxergar, no que contemplamos, algo que talvez preferíssemos não ver.

Saído da exposição, sentei ao sol tímido do outono. Logo, visitei outra mostra, "Vida Louca, Vida Intensa, Uma Viagem pela Contracultura" (são cartazes, capas de discos e filmes dos anos 60 ou sobre aquela época), e me diverti com o cardápio de livros (sobre o mesmo tema) que podem ser folheados na mesa do café.

No galpão central do Sesc, havia pessoas lendo revistas, outras jogando xadrez e dois homens "sonecando" numa poltrona. No galpão lateral, o ateliê de gravura estava em plena atividade, assim como o de arte e costura. Circulavam pelo conjunto famílias, crianças e idosos. Uma boa fotografia diria melhor, sem dúvida, a sensação de paz e de civilidade que estava no ar.

Não sei o que será do projeto de lei que planeja retirar uma boa parte da verba do Sesc para usá-la para cursos técnicos profissionalizantes. Claro, receio que o dinheiro suma no triângulo das Bermudas do Planalto Central. E estaria a fim de levantar o estandarte da cultura contra as necessidades da produtividade e do emprego. Mas seria cair numa armadilha. Seria aceitar a possibilidade de uma alternativa entre as exigências da racionalidade e as razões concretas de nossa vida: qualquer troca, nesse caso, é insensata, como se decidíssemos que, para produzir melhor, seria preciso viver pior. Então, produzir para quê?

Ora, aquela tarde de sábado no Sesc foi um pequeno exemplo do que é viver bem. E, certamente, não só para mim.

21 maio 2008

Projeto de felicidade leva à insatisfação, afirma Contardo

Sabatina / Contardo Calligaris

Em sabatina, o psicanalista , escritor e colunista da Folha diferencia "perdedores' e "infelizes' e comenta depressão em jovens

Projeto de felicidade leva à insatisfação, afirma Contardo

O PROJETO DE SERMOS felizes é profundamente errado, concebido para nos manter na insatisfação, requisito da sociedade de consumo. A afirmação é do psicanalista Contardo Calligaris, 59, colunista da Folha, sabatinado ontem pela manhã num Teatro Folha lotado, em SP. Entrevistado pelos jornalistas da Folha Marcos Augusto Gonçalves, Cleusa Turra, Marcos Flamínio Peres e Ivan Finotti, Contardo falou de remédios ("Lexotan acho legal"), relação de pais e filhos ("os adultos deveriam parar de pedir para que jovens sejam felizes") e o valor da solidão ("Não sou gregário. Coletividade grande, tenho alergia").

FELICIDADE
O verdadeiro perdedor é aquele que, na última hora, olhando para trás, vai ter a impressão de que desperdiçou a sua corrida. O que ele acumulou, tudo isso me parece bastante acessório. Para mim, o perdedor é aquele que não conseguiu viver sua vida com toda a intensidade que ela merece. O que não tem nada a ver com felicidade. O projeto de sermos felizes é profundamente errado, concebido para nos manter na insatisfação, o que é absolutamente necessário na sociedade de consumo. O ganhador é quem teve uma alta qualidade de experiência, seja qual for, que tenha sido intensamente. A felicidade, eu sou contra. Sexo não é felicidade, é alegria.

REMÉDIO X ANÁLISE
Lexotan eu acho legal. Primeiro, porque eu não estou nada convencido de que haja qualquer oposição de fundo real entre a psiquiatria, ou a neuroquímica, e a psicanálise, ou as terapias pela palavra de modo geral. As pesquisas que existem dizem não somente isso mas que, enquanto intervenções, elas se fortalecem. Usar antidepressivos ajuda as pessoas diagnosticadas com depressão em 36% dos casos. A psicoterapia pela palavra também ajuda as pessoas em 33%, 34% dos casos. As duas coisas juntas, por uma razão misteriosa, se fortalecem e ajudam 64%, 65% das pessoas. Segundo, existe uma questão de fundo: sou materialista. Acredito que o afeto, a emoção ou o pensamento tenha ou deva ter algum dia uma descrição neuroquímica absolutamente apropriada.

ABUSO DE REMÉDIOS
Não tenho nada contra o uso de medicamentos, mas tenho bastante contra o uso indiscriminado de psicotrópicos, sobretudo no caso da depressão. Acho que os antidepressivos têm de ser prescritos num caso de depressão, e não simplesmente porque o cara não está feliz. Há uma certa tendência nessa direção. E pior ainda no caso da adolescência e da infância, em que o uso de psicotrópicos está se tornando um caso muito sério. Porque os pais não agüentam nem um pouco a infelicidade dos filhos, seja qual for a idade deles. Existe uma intervenção neuroquímica cada vez maior em adolescentes. Na infância e na adolescência, a gente vive momentos alegres e tristes. E uma das razões pelas quais a gente faz filhos é para que eles encenem uma felicidade que não temos. Se o cara não sorri, pílula. Sou contra isso.

ADOLESCENTE
A adolescência de fato, como uma idade separada da vida, é recente, pós-Segunda Guerra, quando os adultos começam a criar uma fase da vida específica à qual atribuem algumas características como rebeldia, insubordinação. O que sobrou de desejo de sair daquele cenário de "american beauty" [beleza americana], de desejo de aventura, foi pendurado nas costas dos adolescentes. Eles é que se encarregariam da nossa rebeldia, nossa vontade de sermos outros, de realizar sonhos que não conseguimos nem confessar a nós mesmos. Os adolescentes se encarregaram disso muito bem, até porque são excelentes intérpretes do desejo dos adultos.

DEPRESSÃO EM JOVENS
A vida deles [crianças e adolescentes] não é engraçada. Não acho uma idade legal: essa é uma visão idealizada dos adultos. A infância e a adolescência são épocas muito problemáticas da vida. Na infância, estamos longe de corresponder fisicamente e simbolicamente ao que a gente deseja; a palavra da gente é atropelada. Na adolescência, é pior ainda. São épocas de extremo conflito interno, definição identitária, descoberta de fantasias e orientação sexuais. Eu acho que os adultos deveriam parar de pedir para que os jovens sejam felizes, porque isso só serve à vontade que eles têm de ver nas crianças um espetáculo de felicidade.

SEXO NA VELHICE
Há um imaginário social de que a pessoa a partir de certa idade deveria estar acima disso, dessas "baixarias". Durante décadas, a idéia era de que a menopausa era fim não da fecundidade, e sim da feminilidade. Eu fui treinado muito bem. Tive uma avó que adorava. E que, aos 70, 75 anos, ainda era cantada na rua. Uma vez, ela estava sentada no cinema comigo, e vi que chegou um cara e sentou ao lado dela. Achei estranho porque tinha outros lugares. De repente, ela levanta xingando o cara, me pega pela mão e troca de fileira. Ele havia colocado a mão na minha avó, o que demonstra que aos 75 anos rola. E que ela era muito bonita.

SÓ OU ACOMPANHADO?
Não me coloquei essa pergunta de forma radical, mas, de alguma forma, é uma questão que está ali o tempo inteiro. A gente tem sempre momentos em que precisa de uma certa solidão, de recolhimento interior. Sempre vivi com alguém, mas não sou gregário. Coletividade grande, tenho uma alergia séria. Situação gregária é qualquer situação em que o grupo me manda fazer coisas que não são exatamente as que quero fazer. Quando o grupo ameaça a minha individualidade.

MAIO DE 68
Eu militava na esquerda italiana. Tinha mais contato com a contracultura norte-americana do que com a cultura política européia, porque estava casado com uma norte-americana e ia ao país com freqüência. O que mais importava era a revolução na maneira de pensar e de se relacionar, era a utopia concreta, que estava na maneira de conviver de quem militava em 68. E essa utopia eu acho que vingou. Foi a única verdadeira revolução do século 20, ou a única de sucesso.

20 ANOS DE BRASIL
Vejo mudanças concretas enormes no Brasil de 1986 até hoje. Cheguei a um país onde aconteciam coisas completamente inéditas para mim. As pessoas, por exemplo, compravam linhas telefônicas para investimento. Era um negócio estranhíssimo. Mas nunca achei o país provinciano. Nem naquela época. Especialmente SP, que é uma das cidades menos provincianas do mundo. Muito menos do que Paris e, num certo sentido, menos provinciana do que Nova York. E certamente menos do que uma cidade italiana.

15 maio 2008

Solidariedade a Ronaldo e Hemingway


É difícil ser homem, sobretudo quando a virilidade é imposta e carregada como bandeira


A ILUSTRAÇÃO da coluna de Ancelmo Gois, no "Globo" da segunda-feira passada, era a fotografia de uma "faixa de solidariedade" a Ronaldo, pendurada perto do túnel Zuzu Angel, no pé da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. A faixa dizia assim: "Ronaldo, a Rocinha acredita na sua inocência, você sempre será nosso Fenômeno".


De que inocência se trata? Afinal, Ronaldo não é acusado de crime nenhum. Segundo a versão inicial dos travestis com quem ele foi para um motel da Barra, ele não teria aceito pagar o combinado e teria encomendado droga para apimentar o encontro. Mas duvido que os autores da faixa pensassem nessas eventuais "culpas" do jogador.


Igual, mesmo se uma parte qualquer da dita versão fosse verídica, por que Ronaldo deixaria de ser o Fenômeno? Isso não deveria depender de sua atuação no campo? O jeito de entender a inscrição do túnel Zuzu Angel parece ser o seguinte: ao levar um travesti para um motel, o jogador teria comprometido sua própria imagem ideal aos olhos dos autores da faixa.


Para eles, o Fenômeno não é só jogador de futebol, ele é também o macho ideal; a fim de continuar acreditando nesse ideal, eles precisam proclamar a "inocência" de Ronaldo, ou seja, por exemplo, acreditar que, se o jogador escolheu um travesti, foi por engano.


Acabo de ler "Strange Tribe" (estranha tribo -uma tradução em português seria bem-vinda), de John Hemingway, neto do escritor Ernest Hemingway. O livro está sendo transformado numa ópera, com libreto do próprio autor e direção de Gerald Thomas (mais informações em www.geraldthomas.blog.uol.com.br).


John Hemingway conta como ele conseguiu se salvar da espécie de maldição que assolou a linhagem dos Hemingway: suicídios (a começar pelo pai de Ernest e pelo próprio Ernest) e psicose maníaco-depressiva. Em Gregory Hemingway, pai de John e filho de Ernest, as oscilações entre depressões profundas e crises maníacas eram complicadas por uma constante incerteza da identidade de gênero.


Gregory se sentia melhor quando se vestia de mulher. Essa fascinação pela identidade feminina não implicava um desejo homossexual. Gregory não parava de se apaixonar por mulheres e de cultuar os traços mais óbvios da masculinidade americana (assim como ela havia sido inventada, aliás, por Ernest, seu pai). Gregory amava caçar búfalos e elefantes na África e viver na natureza selvagem do Estado de Montana (onde, ao mesmo tempo, vestido de mulher, aventurava-se pelos bares).


Já na terceira idade, Gregory quis se tornar mulher. Passou um tempo com o implante de um seio só; aliás, casou-se, pela quarta vez, em 1992, durante essa fase, já transformado parcialmente em mulher (imagem exemplar de uma divisão impossível de ser resolvida).
Em 1995, Gregory completou as cirurgias necessárias para mudar de sexo. Não por isso ele terminou seu casamento.


Ao longo do livro, John Hemingway descobre que a estranha divisão de seu pai já estava em Ernest, o escritor, seu avô. Ernest aparece vestido de menina em fotos de sua infância, e há, na obra do grande escritor, passagens tocantes em que um homem e uma mulher que se amam são tentados por uma inversão de papéis pela qual o homem se tornaria mulher nos braços de sua amada.


Ernest Hemingway fez de sua vida uma espécie de protótipo de hipervirilidade (boxeador, voluntário na Primeira Guerra, correspondente na Guerra da Espanha e na Segunda Guerra Mundial, aficionado por touradas, caçador, bebedor, pescador de alto-mar, sempre apaixonado por mais uma mulher).


Talvez seu show de virilidade fosse uma maneira de conter a fascinação pela feminilidade. Ou talvez sua androginia íntima fosse uma maneira de fugir da mascarada masculina que havia erigido em regra de vida e em ideal literário.


Seja como for, o livro de John Hemingway é uma leitura imperdível para quem queira entender um pouco a complexidade da identidade de gênero. Mas, antes disso, é um extraordinário documento sobre a dificuldade de ser homem, sobretudo quando a identidade masculina se torna uma bandeira ou, como no caso de Gregory, é transmitida e imposta como uma bandeira.
A história dos Hemingway não tem nada a ver com o episódio de Ronaldo. Mas "ser Hemingway" ou ser "um Hemingway" deve ser tão difícil quanto ser "o Fenômeno" da faixa solidária do túnel Zuzu Angel.

08 maio 2008

Guias para aventureiros


Se toda viagem é uma aventura, o melhor guia de viagem deveria ser escrito por nós mesmos


TENHO UMA relação quase erótica com os instrumentos dos quais me sirvo para escrever. Festejo, portanto, a chegada ao Brasil dos cadernos e blocos da legendária marca Moleskine.

A Moleskine começou a publicar também "guias" das principais cidades do mundo. São cadernos quase normais, cujas primeiras páginas apresentam mapas detalhados da cidade e uma lista das ruas. Depois disso, só há espaço em branco para anotações: "Eis o mapa, percorra-o, viva sua aventura e escreva seu próprio guia". Quer um bom restaurante? Nada de Michelin, converse com os nativos.

É minha viagem ideal: a gente lê, bem antes de viajar, guias e livros de história, de arte e de ficção (romances ambientados na cidade que será visitada). Se a viagem for de última hora, resta estudar o guia turístico no hotel, à noite, e marcar no mapa os percursos do dia seguinte. Seja como for, é bom sair pelas ruas levando consigo apenas um caderno, para escrever o que se tornará, depois da viagem, o "nosso" guia.

Minha descoberta de Veneza, por exemplo, aconteceu quase dessa forma. Li, antes de viajar, "The Stones of Venice", de John Ruskin ("As Pedras de Veneza", ed. Martins Fontes, esgotado, infelizmente).

Eu implicava com o amor exclusivo de Ruskin pelo gótico e com sua antipatia pelo estilo clássico, mas a inteligência e a sensibilidade do texto eram contagiantes. Ruskin sugere que se chegue a Veneza pelo mar, vindo de Chioggia, e no fim do dia, para ver a República surgir das águas na luz do pôr-do-sol. Fui de trem (melhor do que de avião, de qualquer forma); quando, mais tarde, consegui repetir a chegada de Ruskin, lamentei não ter escutado sua sugestão.
Naquela primeira estada, apenas errei pela cidade com a lembrança da leitura de Ruskin e um caderno que, de café em café, de encontro em encontro, enchi de notas.

As "pedras" não são a única razão de viajar. Ultimamente, chegaram em massa os guias da revista "Wallpaper" (ed. Phaidon). São livros de bolso, com, no fim, uma dezena de páginas brancas para anotações. O que precede são fotografias com um parágrafo de descrição. A ausência de qualquer mapa supõe um viajante que nem queira se orientar, apenas preocupado em visitar (ou melhor, em ter visitado) os lugares memoráveis ("eu estive lá"). Os ditos "lugares memoráveis" são os hotéis, os restaurantes e as lojas mais luxuosas, spas, bares na moda e alguns marcos que, às vezes, parecem ter sido escolhidos por um arquiteto enlouquecido ou por alguém que nunca colocou os pés na cidade em questão. A sensação é que são guias para não se esquecer dos lugares que vai ser obrigatório mencionar numa conversa entre emergentes na volta das férias.

Fora a antipatia pelas fraquezas narcisistas das classes emergentes, nenhuma censura: uma viagem não tem que ser obrigatoriamente um banho na "alta cultura". Mas o que não entendo é que a gente viaje para bater ponto nos lugares, artísticos ou mundanos, cuja menção futura atestará que estivemos lá. Ou seja, não entendo viagem sem aventura.

Sem chegar à ousada proposta das páginas brancas dos Moleskine, os melhores guias turísticos, hoje, tentam interessar tanto o viajante mundano quanto o viajante "artístico" (que podem ser a mesma pessoa) e, sobretudo, tentam indicar ao leitor lugares fora dos caminhos mais trilhados. Ou seja, os guias se preocupam em nos dar ao menos o sentimento de uma aventura possível. Claro, não basta: a aventura não depende apenas do encontro com o inusitado, ela é, antes de mais nada, uma disposição do espírito.

Uma surpresa: a Louis Vuitton pode ter-se tornado uma marca para quem busca sinais que confirmem seu status, mas, aparentemente, não se esqueceu de sua origem, não se esqueceu do que significa viajar. A marca acaba de publicar uma série de guias de cidades, em inglês e francês (Nova York, mais uma caixa com outras cidades do mundo). O guia de Nova York é o melhor que eu conheça -pela sóbria mistura de "dicas" tradicionais (galerias, museus etc.) e "dicas" mundanas (hotéis, restaurantes, bares, lojas, de luxo e de pechincha), pela menção de lugares nada óbvios (do Old Town Bar aos brechós) e, enfim, pela página dedicada às leituras literárias e de ficção que são a melhor "introdução" à cidade. Só falta uma lista de filmes (ou será que há uma, e eu não vi?).

01 maio 2008

Narcisismo de homens e mulheres


O homem vive um narcisismo valentão; a mulher questiona: "Será que gostam de mim?"

NA COLUNA da quinta retrasada, "O Trauma do Amor", escrevi o seguinte: "Mesmo quando a iniciativa da separação foi da própria mulher (ou compartilhada por ela) e não houve "infidelidade" do lado do homem, as mulheres tendem a viver a separação como uma traição, como uma crueldade que lhes foi feita, uma sacanagem".

Acrescentei que deixaria para outra vez a explicação dessa especificidade feminina. Respondendo aos pedidos de vários leitores e leitoras, aqui vai UMA explicação.

Muitas culturas (não só a nossa) preferem que, no início do jogo amoroso, os homens façam o primeiro passo. Ultimamente, o recato deixou de ser uma qualidade feminina essencial: uma mulher que se arrisque a ser a primeira a mostrar seu interesse não é mais uma atrevida (ou pior). Mas o hábito permanece: "Que os homens se manifestem, e as mulheres aceitem ou rejeitem".

Há, nesse costume antigo, uma certa sabedoria, pois, para os homens, em geral, é mais fácil lidar com uma negativa. Raramente a recusa os leva a uma dúvida radical sobre eles mesmos. Muito antes de perguntar-se "Será que não sou aquela maravilha toda que minha mãe e minhas tias diziam que eu era (e, se não disseram, deveriam ter dito)?", os homens conseguem inculpar detalhes contingentes ("Hoje, excepcionalmente, o desodorante me largou") e, sobretudo, acusam a própria mulher que os recusou: se ela não quis, é porque é "uma puta". Paradoxal, não é?

Pois é, mas o paradoxo é revelador. Para o homem, como era de esperar, a única que não seja "puta" é a mãe, que, supostamente, gostava e gosta só dele.

As outras, que não se extasiam diante de seus vagidos, são "putas" porque podem lhe preferir terceiros quaisquer. Por sorte (de todos nós), essa "segurança" narcisista do homem tem uma pequena falha: a própria mãe, por mais que se extasiasse com ele, fechava-se no quarto com o pai, de vez em quando (para o menino, aliás, não é um bom negócio que a mãe se esqueça de ser mulher).

Seja como for, o narcisismo masculino não se deixa abalar por uma recusa. A convicção de ter sido objeto exclusivo e insubstituível do amor materno é um recurso (quase) seguro: "Pouco importa que as outras não gostem de mim, pois a única que importa gostava e gosta".

Para a maioria das mulheres, acontece o contrário. Uma recusa e uma negativa valem como uma espécie de confirmação do que era suspeitado por elas desde sempre: "Não agrado e nunca fui verdadeiramente amada".

Hoje, depois de décadas de um lento processo de mudança cultural em que o feminino foi valorizado, afirma-se que o amor de mãe é o mesmo para menino ou menina. Mas a "Escolha de Sofia" (o romance, note-se, foi escrito por um homem) seria, provavelmente, a mesma: acuada, tendo que escolher entre o filho e a filha, Sofia ainda salvaria o menino.

O sentimento de que um filho satisfaz a mãe mais do que uma filha continua na cultura, solidamente.

Quer seja pela ilusão de que o filho homem não sumirá pelo mundo afora, mas, por eternizar o sobrenome, ele ficará na tribo (perto da mãe).

Quer seja pela sensação de completude que talvez acompanhe a constatação materna de ter conseguido dar à luz um ser tão diferente dela, um ser do outro sexo.

A conseqüência dessa disparidade do amor materno é a tragicomédia cotidiana, em que uma mulher, mesmo em seu melhor dia, precisa perguntar a seu companheiro se ele a acha bonita. E um homem, deformado por churrascos e cerveja, julga-se irresistível.

Em suma, homens e mulheres, em geral, padecem de narcisismos diferentes: o homem é blindado por uma segurança eficiente e um pouco obtusa, e a mulher é constantemente exposta ao risco de um dúvida radical sobre o amor que ela recebe.

O discurso comum pensa que a mulher, mais cuidadosa com sua aparência, seja "mais narcisista" do que o homem.

Não é nada disso: o homem vive um narcisismo valentão, enquanto a mulher não pára de questionar: "Será que gostam de mim?". Corolário: a mulher, por isso mesmo, é melhor psicóloga do que o homem -mais perspicaz na leitura das palavras e dos gestos dos outros.

Conclusão: a rejeição, para uma mulher, é uma experiência que coloca em perigo sua precária certeza de ser aceita no mundo, é uma experiência que abala seu ser, que a fere além da conta. Inclusive além da conta possível de perdas e danos numa separação.