19 maio 2011

Considerações sobre novos desejos


Causa da depressão pode não ser perda e frustração, mas a chegada de novo desejo, que é silenciado


UM JOVEM não sabe o que ele está a fim de fazer da vida, e os pais pedem que eu descubra qual é o desejo do filho, de modo que ele possa escolher o vestibular e a profissão que ele "realmente" gostaria.

Na mesma semana, encontro um adulto que acha que, de fato, nunca fez nada por desejo. Embora bem-sucedido, queixa-se de que suas escolhas (profissionais e amorosas) sempre teriam sido circunstanciais, efeitos de oportunidades encontradas ao longo do caminho. Ele pede, antes que seja tarde, que eu o ajude a descobrir qual é "realmente" o seu desejo.

Nos dois casos, o pressuposto é o mesmo: quem viver segundo seu desejo será, no mínimo, mais alegre. Esta é mesmo uma boa definição da alegria: a sensação de que nosso desejo está engajado no que estamos fazendo, ou seja, de que nossa vida não acontece por inércia e obrigação. Inversa e logicamente, muitos estimam dever sua (grande ou pequena) infelicidade ao fato de terem dirigido a vida por caminhos que - eles declaram - não eram exatamente os que eles queriam.

Pois bem, esse pressuposto e os pedidos que recebi se chocam com esta constatação: o "nosso desejo" nunca é UM desejo definido por UM objeto ou por UM projeto. Não existe, nem escrito lá no fundo escondido de nossa mente, UM querer definido, que poderíamos descobrir e, logo, praticar com afinco e satisfação porque estaríamos fazendo aquela coisa ou caçando aquele objeto aos quais éramos, por assim dizer, destinados. Nada disso: de uma certa forma, todos os objetos e os projetos se valem, e nenhum é "nosso" objeto ou projeto específico. Ou seja, nós desejamos sempre segundo as circunstâncias, os encontros, as oportunidades - segundo as tentações, se você preferir.

Somos volúveis? Nem tanto, pois cada objeto e projeto não substitui necessariamente o anterior. O que acontece é que desejar é uma atividade inventiva a jato contínuo.

Por consequência, mesmo quando estamos alegremente convencidos de estar fazendo o que queremos com nossa vida, nunca estamos ao abrigo do surgimento de desejos novos.

Claro, podemos aceitar esses desejos novos. Por exemplo, em "As Confissões de Schmidt" (que não é um grande filme), de A. Payne, com Jack Nicholson, o protagonista acorda de noite, olha para sua mulher de sei lá quantos anos e se pergunta estupefato: "Quem é esta mulher que dorme na minha cama?". Logo, ele dá um rumo novo à sua vida, colocando o pé na estrada. Mas a expressão de seus novos desejos é fortemente facilitada por duas circunstâncias: providencialmente, o protagonista se aposenta e fica viúvo. Nessas condições, escutar novos desejos fica fácil, não é?

Agora, imaginemos alguém que esteja no meio de sua vida profissional e num bom momento de sua vida amorosa. Nesse caso, provavelmente, o novo desejo será silenciado, reprimido, menosprezado ("deixe para lá, é besteira"). Resultado: o indivíduo continuará declarando que está vivendo a vida que ele queria (e, em parte, será verdade); só que, de repente, sem entender por quê, ele perderá sua alegria.

Por que razão nosso indivíduo negligenciaria seus novos desejos? Simples: por serem novos, eles acarretam a ameaça de uma ruptura no presente: afetos e laços que poderiam ser perdidos, medo da solidão e preguiça dos esforços necessários para reinventar a vida.

Infelizmente, essa negligência tem um custo alto. Sempre entendi assim a "Metamorfose", de Kafka: alguém acorda, e o que até então era uma vida normal e legal, de repente, aos seus olhos, é uma vida de barata.

Nota útil para a clínica da depressão. Às vezes, procuramos em vão as causas de uma depressão; será que houve lutos ou perdas? Nada disso; está tudo bem, trabalho, família, filhos e tal, mas o indivíduo entristece, volta a fumar e a beber como se quisesse encurtar a vida, engorda como se estivesse num mar de frustração e precisasse de gratificações alternativas.

Em muitas dessas vezes, a origem da depressão não é uma perda, nem propriamente uma frustração, mas a aparição de um desejo novo que não foi reconhecido. E os novos desejos, sobretudo quando são silenciados, desvalorizam a vida que estamos vivendo.

Moral da fábula: 1) Não existem vidas definitivamente resolvidas, pois novos desejos surgem sempre; 2) É bom reconhecer os novos desejos, mesmo que deixemos de realizá-los.

12 maio 2011

Bye bye, Bin Laden


Bin Laden foi apenas o parasita de um conflito psíquico moderno, que ele se dedicou a exacerbar


ESSE TÍTULO vai me valer alguns e-mails indignados pela falta de respeito por Bin Laden. Mas por que eu o respeitaria? Porque ele pôde decidir a hora da morte de milhares de vítimas casuais e de dezenas de coitados que ele mandou se explodir?

A modernidade ocidental é uma cultura que despreza a si mesma: onde deveríamos festejar nossa extrema liberdade e nossa leveza, lamentamos a ausência de normas absolutas e fustigamos nossa "leviandade". Cegos diante do fato de que a ausência de valores absolutos é um valor positivo de nossa cultura, idealizamos os extremistas, que matam por suas "ideias". Os assassinos podem fascinar alguns incautos: eles sim, levariam a vida a sério! De fato, levam a sério só a morte.

Enfim, alguém dirá que, seja como for, eu deveria respeitar Bin Laden pelas ideias que ele representa. Acontece que, para mim, ele nunca representou ideia alguma (religiosa ou não); apenas tirou sangue de um dos grandes dramas íntimos do homem contemporâneo. Como assim? Vou resumir ao essencial.

Muitos se lembram do artigo que Samuel Huntington publicou em 1993, na revista "Foreign Affairs", e que virou livro, "O Choque de Civilizações" (Ponto de Leitura).

Huntington anunciava que, no mundo de amanhã, a fonte principal de conflito não seria nem econômica nem ideológica, mas cultural: "Os conflitos principais da política global acontecerão entre nações e grupos de civilizações diferentes. O choque de civilizações dominará a política global". Depois do 11 de setembro de 2001, suas palavras pareceram proféticas: o conflito do novo século seria entre o fundamentalismo islâmico e o Ocidente.

Muitos criticaram Huntington afirmando que o divisor de água entre culturas não é suficientemente rigoroso para justificar os conflitos que ele previa. Por exemplo, as identidades, mesmo nas sociedades tradicionais, são complexas e conflitivas: uma mulher afegã de burca pode pertencer ao Taleban e, mesmo assim, desenvolver uma consciência feminina (se não feminista) que a aproxima das mulheres ocidentais. Além disso, as ideologias atravessam as fronteiras culturais, criando oposições mais complexas do que a oposição entre civilizações.

De fato, sempre houve conflitos entre culturas opostas, com vontade de se invadir mutuamente e de converter os outros ou, se eles não aceitarem, de exterminá-los. Mas, justamente, a simples oposição entre culturas leva às bombas - não aos homens-bomba. E é o homem-bomba que explica o terrorismo moderno.

O homem-bomba (diferente do kamikaze japonês em 1944) não é um subterfúgio estratégico (tipo: é só com um sacrifício humano que a gente conseguiria colocar o explosivo na hora e no lugar certos). Homem-bomba é quem PRECISA se explodir junto com seus inimigos. Mas por quê?

Pois é, o homem-bomba não é um fanático que tenta matar inimigos de uma "civilização" diferente. Ao contrário, o homem-bomba é filho da abertura moderna do mundo e das fronteiras, com seu corolário: a competição das culturas pelos corações e pelas mentes de todos e especialmente dos que viajam e migram.

Quem migra de uma cultura tradicional para a modernidade ocidental fica quase sempre dramaticamente dividido entre a sedução do Ocidente e a culpa de estar traindo sua cultura de origem.

Dois pilotos do 11 de Setembro, na noite do dia 10, despediram-se da vida bebendo e brincando num "night club"; aparentemente, eles imaginavam o paraíso dos mártires, com sei lá quantas virgens, nos moldes de um "night club" da Nova Inglaterra. Quase certamente, eles se odiavam e nos odiavam por isso.

Explodindo os inimigos, o homem-bomba tenta silenciar um mundo que o tenta e ao qual ele não sabe resistir. Explodindo-se, ele resolve o conflito do qual ele mais sofre: seu conflito interno.

Bin Laden não foi representante de nenhuma ideia ou cultura; foi apenas parasita de um conflito psíquico.

Enquanto terapeuta, tenho por ele um desprezo particular. Afinal, bem ou mal, eu passo meu dia tentando ajudar as pessoas a negociar e tolerar seus conflitos internos. Bin Laden dedicou sua vida à tarefa de tornar intolerável o conflito interno de migrantes e viajantes, para convencê-los a vestir um cinto de explosivos. Bye bye.

05 maio 2011

Aristocracias e celebridades




Os indivíduos que sofrem de transtornos narcisistas estão dispostos a tudo para se tornarem "famosos"


1) NO VERÃO de 1962, passei um fim de semana na ilha de Wight, no barco de John Wheeler, um cabinado de 24 pés, fabricado em 1908, com um motor tossegoso.
John, 62, livreiro em Londres, contou que, em 1940, com aquele barco, ele atravessara o canal da Mancha para salvar soldados do Exército inglês, que estava sendo decimado pelos bombardeios alemães, na praia francesa de Dunkerque.

Ao ser informado da situação pelo rádio, ele tinha saído mar adentro, na noite. No canal, outros marinheiros do domingo navegavam no escuro, como ele, rumo à costa francesa. Nem todos voltaram.

John contara a história para elogiar o barco, que dera conta do recado. Quando louvei sua coragem, ele minimizou: "Se o rei (George 6º, o mesmo de "O Discurso do Rei') e a rainha ficavam no palácio de Buckingham durante os bombardeios, bem que eu podia encarar umas bombas para trazer nossos moleques para casa".

Lembrei-me disso na semana passada, quando me perguntaram: para quê serve um rei que nem governa? Pois é, a realeza (e a aristocracia, em geral) poderiam servir para lembrar que, às vezes, é melhor perder a vida do que perder a compostura e a dignidade.

2) Nos anos 70, fui convidado a uma caça à raposa na Normandia (França). Em tese, aceito caçar só animais comestíveis, mas sou bom cavaleiro e quis fazer a experiência. Depois de duas horas, eu e outro cavaleiro estávamos atravessando um bosque (desconhecido) num bom galope, quando ouvimos, pela direita, os trombeteiros anunciando "la vue" (ou seja, eles estavam enxergando a raposa).

Fomos com tudo e, na corrida, pulamos um muro de pedra de menos de um metro. Meu cavalo enrijeceu: do outro lado do muro, escondido, abria-se um barranco. Levantei nos estribos, fechei as pernas e puxei as rédeas para que o cavalo se apoiasse na boca. Tive sorte: meu cavalo caiu de joelhos, mas se levantou na hora, comigo em cima. O outro deu uma cambalhota e deixou seu cavaleiro imóvel, no chão.

No fim do dia, havia quatro traumatizados graves, e alguém perdera um olho, arrancado por um galho.


Perguntei ao amigo que me convidara se ele não achava preocupante essa percentagem de feridos. Ele me respondeu, sério, que era inferior à dos mortos franceses na batalha de Agincourt (na qual, em 1415, combatera um antepassado ilustre de sua família).

Entendi assim: o que importava ao meu amigo não era a raposa, e o que importava ao seu antepassado não era a batalha de Agincourt. Para ambos, o que importava era dar prova (ao mundo e a si mesmos) de seu desprendimento da vida.

3) Na "Fenomenologia do Espírito" (1806), Hegel explicava que o mestre é aquele que não hesita em encarar a morte, e o servo é sobretudo escravo de seu próprio desejo de sobreviver. À primeira vista, isso valeria para o mundo antigo, em que bandidos e cavaleiros destemidos erravam pelas terras de camponeses aterrorizados. Mas a definição era também profética: hoje, somos todos servos da vontade de viver mais. Tentamos brilhar por riqueza, competência ou boa saúde -ou seja, pelo sucesso em nosso apego à vida. O que nos deixa uma certa nostalgia do mestre antigo, que desafiava a morte.

4) O dr. Drew Pinsky anima "Celebrity Rehab", uma espécie de "BBB" da TV americana, no qual pessoas famosas, para se curar de suas graves adições, internam-se numa clínica repleta de câmeras e microfones. O programa é duvidoso, mas, em 2009, Pinsky publicou "The Mirror Effect" (o efeito espelho, HarperCollins), cuja tese central diz que a fama não torna ninguém doente, o que acontece é o inverso: muitos se tornam celebridades graças à sua doença. É assim: os indivíduos que sofrem de transtornos narcisistas são inseguros, vazios e dispostos a qualquer coisa para serem conhecidos e reconhecidos. "Qualquer coisa" inclui adições pesadas e condutas de alto risco.

Essas celebridades constituem um novo tipo de aristocracia: uma aristocracia ao avesso. A antiga era feita, em tese, de homens tão fortes que não se importavam em morrer. A nova parece ser feita de homens tão fracos que eles estão dispostos a morrer para mendigar um pouco de atenção.

5) A nostalgia do mestre antigo e de seu desprendimento da vida pode idealizar uma outra figura, além da "celebrity" drogada e suicida: o homem-bomba. Mas me despedirei de Bin Laden na quinta que vem.