25 janeiro 2007

Você quer mesmo ser feliz?

O imperativo de felicidade é enganoso, mas rege nossa organização social

CIRCULA, NOS meios acadêmicos ingleses e americanos, a expressão "happiness studies" (estudos da felicidade), calcada, por exemplo, em "women's studies" (estudos das mulheres). Talvez apareçam, em breve, departamentos universitários multidisciplinares de "estudos da felicidade".

Pois bem, no campo dos "estudos da felicidade", acabam de sair dois livros notáveis.

O primeiro, ainda não traduzido para o português, é "Happiness: A History" (felicidade, uma história), de Darrin McMahon (Atlantic Monthly). McMahon reconstrói as mudanças pelas quais passou nossa concepção de vida feliz: uma vida virtuosa, para os gregos antigos; prazerosa, para os romanos; merecedora do paraíso, para os cristãos etc.

Aliás, é sobretudo com os cristãos que a felicidade começa a se confundir com a promessa de uma vida melhor no futuro, após a morte.

Na modernidade, a definição do que nos faz felizes fica bastante incerta, mas, paradoxalmente, a exigência de sermos felizes (sem saber direito o que isso significa) torna-se irrenunciável. Esse imperativo enigmático é uma peça essencial de nossa organização social. Explico.
A felicidade é, hoje, uma aspiração obrigatória que, por sua indefinição, não pode ser satisfeita. Portanto, ela alimenta uma sede insaciável de objetos e prazeres. Essa sede sustenta nosso modo de produzir e consumir e nos leva a organizar nossas diferenças sociais segundo os "sonhos" que cada um conseguiu realizar (ou seja, pela inveja).

O outro livro é "Stumbling on Happiness" (tropeçando na felicidade), de Daniel Gilbert. Apesar da tradução portuguesa do título ("O que nos Faz Felizes", Campus), não se trata de um livro de receitas para sermos felizes, mas de uma explicação da dificuldade desse projeto.

Gilbert, evocando brilhantemente uma quantidade de pesquisas, mostra o seguinte: uma propriedade de nossa espécie é a capacidade de imaginar o futuro, mas, nessa tarefa, somos péssimos. Por isso, a felicidade desejada e alcançada nunca é bem o que a gente queria.

Para Gilbert, o problema é cognitivo: o futuro com o qual sonhamos não nos outorga a felicidade esperada porque não sabemos prevê-lo corretamente.

Aparte: de fato, há outras razões para que o futuro nunca chegue ou, ao chegar, seja decepcionante. Por exemplo, como lembra o título de um livro de Jorge Forbes ("Você Quer o que Deseja?"), nem sempre queremos efetivamente o que desejamos e planejamos.
Num capítulo de seu livro, Gilbert recorre a uma metáfora genética.

Um "super-replicador" é um gene que se replica com sucesso porque ele leva seu portador a transmitir ativamente seus genes. Exemplo: imaginemos que exista um gene do prazer no orgasmo. Mesmo que esse gene não seja necessário para a reprodução (que pode acontecer sem prazer) e mesmo que ele seja associado com uma série de traços ruins (doenças ameaçadoras), ele se replicará porque leva seus portadores a praticar mais sexo do que os outros (aumentando as chances de transmissão).

Gilbert aplica esse princípio às crenças: há crenças falsas que se propagam e se transmitem porque sustentam sociedades estáveis, e uma sociedade estável é o ambiente ideal para a propagação de crenças (falsas ou verdadeiras). No caso, nossa concepção da felicidade se parece muito com uma crença falsa super-replicada, ou seja, uma crença que se propaga porque, apesar de ser falsa, ela é uma condição de nossa coesão social (e a coesão social facilita a propagação das crenças). Em suma, o imperativo de felicidade é enganoso, mas rege nossa sociedade; portanto, ele só pode se reproduzir.

Uma nota. Gilbert parte do pressuposto que faz funcionar nossa sociedade: a felicidade depende da realização de um futuro que desejamos e imaginamos.

Uma outra concepção da felicidade (a minha preferida) diz que ela depende da qualidade da experiência presente, e não da realização de nossos projetos. Talvez essa seja uma concepção nostálgica de um momento qualquer na história reconstruída por McMahon.

Ou talvez seja uma concepção nova, que vem se afirmando devagar, de Nietzsche até a contracultura dos anos 60 e 70 (o próprio Gilbert se lembra do livro, meio delirante, de Ram Dass, que se intitulava "Be Here Now" -esteja aqui agora). Seja como for, neste começo de 2007, fico com aquele ditado chinês: que todos possamos viver um ano não "feliz", mas interessante.

18 janeiro 2007

Para que servem as ficções?

A ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a descobrir o que há de humano em mim

ESTÁ EM cartaz "Mais Estranho que a Ficção", de Marc Forster (com um extraordinário roteiro de Zach Helm). Se você lê romances e contos, se freqüenta cinemas e teatros, se, em suma, a ficção tem alguma relevância na sua vida, não perca o filme.

É a história (engraçada e terna) de um auditor de impostos que, de repente, começa a ouvir a voz misteriosa de uma narradora: sua vida, aparentemente insignificante, é o tema de um romance, do qual ele é, obviamente, o protagonista.

Saí do cinema pensando no lugar que as ficções ocuparam e ocupam na minha vida.

Cresci numa família em que ler romances e assistir a filmes, ou seja, mergulhar em ficções, não era considerado uma perda de tempo. Podia atrasar os deveres ou sacrificar o sono para acabar um capítulo, e não era preciso me trancar no banheiro nem ler à luz de uma lanterna.

Meus pais, eventualmente, pediam que organizasse melhor meu horário, mas deixavam claro que meu interesse pelas ficções era uma parte crucial (e aprovada) de minha "formação". Eles sequer exigiam que as ditas ficções fossem edificantes ou tivessem um valor cultural estabelecido. Um policial e um Dostoiévski eram tratados com a mesma deferência.

Quando foi minha vez de ser pai, agi da mesma forma. Por quê?

Existe a idéia (comum) segundo a qual a ficção é uma "escola de vida": ela nos apresenta a diversidade do mundo e constitui um repertório do possível. Alguém dirá: o mesmo não aconteceria com uma série de bons documentários ou ensaios etnográficos? Certo, documentários e ensaios ampliam nosso horizonte. Mas a ficção opera uma mágica suplementar.

Tome, por exemplo, "O Caçador de Pipas", de Khaled Hosseini. A leitura nos faz conhecer a particularidade do Afeganistão, mas o que torna o romance irresistível é a história singular de Amir, o protagonista. Amir, afastado de nós pelas particularidades de seu grupo, revela-se igual a nós pela singularidade de sua experiência. A vida dos afegãos pode ser objeto de um documentário, que, sem dúvida, será instrutivo. Mas a história fictícia "daquele" afegão o torna meu semelhante e meu irmão.

Esta é a mágica da ficção: no meio das diferenças particulares entre grupos, ela inventa experiências singulares que revelam a humanidade que é comum a todos, protagonistas e leitores. A ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a descobrir o que há de humano em mim.

Há uma outra idéia, menos comum, segundo a qual a vida da gente pode (e talvez deva) ser vivida como uma narração. Não tanto para que ela se transforme num roteiro mirabolante, mas para que nosso cotidiano (por humilde e banal que seja) assuma uma relevância e uma intensidade que o tornem digno de ser vivido. Não fica claro? Faça a experiência: passe três horas de seu dia acompanhando suas ações de sempre, seus pensamentos, seus encontros e suas rotinas com uma narração mental detalhada, como se você fosse o protagonista de um romance que está sendo escrito enquanto você age. Que o resultado seja um atormentado monólogo interior ou uma seca descrição, de qualquer forma, seu mundo (externo e interno) será transformado.

Se você prolongar a experiência (redigindo um diário, em forma de blog ou num caderno, pouco importa), a narração passará a comandar sua vida: aos poucos, suas escolhas serão decididas em função do texto que você está escrevendo. Critérios estéticos ("como fica isso na história?") acabarão se misturando com os critérios éticos pelos quais, até então, você se norteava.

"Viva sua vida como se ela fosse o objeto de um romance" é um imperativo moral estranho e eficiente, embora nem sempre seguro (e às vezes, aliás, francamente perigoso). Num momento do filme de Marc Forster, o protagonista aceita que a narradora escreva sua morte (e o condene, portanto, a morrer), pois esse parece ser, naquela altura, o desfecho adequado da história. Essa atitude do protagonista leva a escritora a observar que, na verdade, a gente deveria preservar a vida de um homem que é capaz de aceitar a morte para que sua história possa ser contada da melhor maneira possível. É um pequeno paradoxo (ético ou estético, difícil dizer) que merece reflexão.

Enfim, se perpetuei e transmiti o respeito de meus pais pelas ficções é porque elas me parecem ser a maior e melhor fonte não de nossas normas morais, mas de nosso pensamento moral.

11 janeiro 2007

Os sonhos dos adolescentes

Por que os adolescentes sonham com um futuro acomodado e razoável, que nem a nossa vida?

NA FOLHA de domingo passado, uma reportagem de Antônio Gois e Luciana Constantino trouxe os dados de uma pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais: em 2005, 16% dos adolescentes entre 15 e 17 anos de idade não freqüentaram a escola. Trata-se de 1,7 milhão de jovens. Alguns desistiram por falta de meios, de vaga ou de transporte escolar, outros adoeceram, mas, em sua maioria (40,4%), eles abandonaram os estudos por falta de interesse. Como disse uma entrevistada, "os professores eram muito chatos".
Os comentadores, na própria reportagem, acusam a pouca qualificação ou motivação de muitos professores e um sistema de avaliação que produz repetências. Concordo, mas talvez haja mais.
Ao longo de 30 anos de clínica, encontrei várias gerações de adolescentes (a maioria, mas não todos, de classe média) e, se tivesse que comparar os jovens de hoje com os de dez ou 20 anos atrás, resumiria assim: eles sonham pequeno.

É curioso, pois, pelo exemplo de pais, parentes e vizinhos, os jovens de hoje sabem que sua origem não fecha seu destino: sua vida não tem que acontecer necessariamente no lugar onde nasceram, sua profissão não tem que ser a continuação da de seus pais. Pelo acesso a uma proliferação extraordinária de ficções e informações, eles conhecem uma pluralidade inédita de vidas possíveis.

Apesar disso, em regra, os adolescentes e os pré-adolescentes de hoje têm devaneios sobre seu futuro muito parecidos com a vida da gente: eles sonham com um dia-a-dia que, para nós, adultos, não é sonho algum, mas o resultado (mais ou menos resignado) de compromissos e frustrações.

Um exemplo. Todos os jovens sabem que Greenpeace é uma ONG que pratica ações duras e aventurosas em defesa do meio ambiente. Alguns acham muito legal assistir, no noticiário, à intrépida abordagem de um baleeiro por um barco inflável de ativistas. Mas, entre eles, não encontro ninguém (nem de 12 ou 13 anos) que sonhe em ser militante do Greenpeace. Os mais entusiastas se propõem a estudar oceanografia ou veterinária, mas é para ser professor, funcionário ou profissional liberal. Eles são "razoáveis": seu sonho é um ajuste entre suas aspirações heróico-ecológicas e as "necessidades" concretas (segurança do emprego, plano de saúde e aposentadoria).

Alguém dirá: melhor lidar com adolescentes tranqüilos do que com rebeldes sem causa, não é? Pode ser, mas, seja qual for a qualidade dos professores, a escola desperta interesse quando carrega consigo uma promessa de futuro: estudem para ter uma vida mais próxima de seus sonhos.

Aparte: por isso, aliás, é bom que a escola não responda apenas à "dura realidade" do mercado de trabalho, mas também (talvez, sobretudo) aos devaneios de seus estudantes; sem isso, qual seria sua promessa? "Estude para se conformar"?

Conseqüência: a escola é sempre desinteressante para quem pára de sonhar.

Em princípio, os jovens interpretam o desejo (inconsciente) dos pais e herdam os sonhos reprimidos atrás das vidas (fracassadas ou bem-sucedidas, tanto faz) dos adultos. Aquela fala chata dos pais, que evocam as renúncias que foram necessárias para conseguir criar os filhos, aponta o caminho de aventuras menos sacrificadas. Há uma guitarra empoeirada no sótão do comerciante ou do profissional cujo filho quer ser roqueiro. O que mudou? Duas hipóteses.

É possível que, por sua própria presença maciça em nossas telas, as ficções tenham perdido sua função essencial e sejam contempladas não como um repertório arrebatador de vidas possíveis, mas como um caleidoscópio para alegrar os olhos, um simples entretenimento. Os heróis percorrem o mundo matando dragões, defendendo causas e encontrando amores solares, mas eles não nos inspiram: eles nos divertem, enquanto, comportadamente, aspiramos a um churrasco no domingo e a uma cerveja com os amigos.

É também possível (sem contradizer a hipótese anterior) que os adultos não saibam mais sonhar muito além de seu nariz. Ora, a capacidade de os adolescentes inventarem seu futuro depende dos sonhos aos quais nós renunciamos. Pode ser que, quando eles procuram, nas entrelinhas de nossas falas, as aspirações das quais desistimos, eles se deparem apenas com versões melhoradas da mesma vida acomodada que, mal ou bem, conseguimos arrumar. Cada época tem os adolescentes que merece.

04 janeiro 2007

O segredo da vida de um casal



Receita do amor que dura: amar o outro não apesar de sua diferença, mas por ele ser diferente

EM GERAL , na literatura, no cinema e nas nossa fantasias, as histórias de amor acabam quando os amantes se juntam (é o modelo Cinderela) ou, então, quando a união esbarra num obstáculo intransponível (é o modelo Romeu e Julieta).

No modelo Cinderela, o narrador nos deixa sonhando com um "viveram felizes para sempre", que seria a "óbvia" conseqüência da paixão.

No modelo Romeu e Julieta, a felicidade que os amantes teriam conhecido, se tivessem podido se juntar, é uma hipótese indiscutível. O destino adverso que separou os amantes (ou os juntou na morte) perderia seu valor trágico se perguntássemos: será que Romeu e Julieta continuariam se amando com afinco se, um dia, conseguissem deitar-se juntos sem que Romeu tivesse que escalar a casa de Julieta até o famoso balcão? Ou se, em vez de enfrentar a oposição letal de suas ascendências, eles passassem os domingos em espantosos churrascos de família?

Talvez as histórias de amor que acabam mal nos fascinem porque, nelas, a dificuldade do amor se apresenta disfarçada. A luta trágica contra o mundo que se opõe à felicidade dos amantes pode ser uma metáfora gloriosa da dificuldade, tragicômica e inglória, da vida conjugal.

O casal que dura no tempo, em regra, não é tema para uma história de amor, mas para farsa ou vaudeville -às vezes, para conto de terror, à la "Dormindo com o Inimigo".
Durante décadas, Calvin Trillin escreveu uma narrativa de sua vida de casal, na revista "New Yorker" e em alguns livros (por exemplo, "Travels with Alice", viajando com Alice, de 1989, e "Alice, Let's Eat", Alice, vamos para a mesa, de 1978).

Nesses escritos, que são só uma parte de sua produção, Trillin compunha com sua mulher, Alice, uma dobradinha humorística, em que Calvin era o avoado, o feio e o desajeitado, e Alice encarnava, ao mesmo tempo, a beleza, a graça e a sabedoria concreta de vida.

À primeira vista, isso confirma a regra: a vida de casal é um tema cômico. Mas as crônicas de Trillin eram delicadas e tocantes: engraçadas, mas nunca grotescas. Trillin não zombava da dificuldade da vida de casal: ele nos divertia celebrando a alegria do casamento. Qual era seu segredo?

Pois bem, Alice, com quem Trillin se casou em 1965, morreu em 2001.

Trillin escreveu "Sobre Alice", que acaba de ser publicado pela Globo. Esse pequeno e tocante texto de despedida desvenda o segredo de um amor e de uma convivência felizes, que duraram 35 anos.

O segredo é o seguinte: Calvin e Alice, as personagens das crônicas, não eram artifícios literários, eram os próprios. A oposição entre os dois foi, efetivamente, o jeito especial que eles inventaram para conviver e prolongar o amor na convivência.

Considere esta citação de um texto anterior, que aparece no começo de "Sobre Alice": "Minha mulher, Alice, tem a estranha propensão de limitar nossa família a três refeições por dia". A graça está no fato de que a "propensão" de Alice não é extravagante, mas é contemplada por Calvin como se fosse um hábito exótico.

Alice é situada e mantida numa alteridade rigorosa, em que é impossível distinguir qualidades e defeitos: Calvin a ama e admira como a gente contempla, fascinado, uma espécie desconhecida num documentário do Discovery Channel.

Se amo e admiro o outro por ele ser diferente de mim (e não apesar de ele ser diferente de mim), não posso considerar que minha maneira de ser seja a única certa. Se Calvin acha extraordinário que Alice acredite na virtude de três refeições diárias, ele pode continuar petiscando o dia todo, mas seu hábito lhe parecerá, no fundo, tão estranho quanto o de Alice.
Com isso, Calvin e Alice transformaram sua vida de casal numa aventura fascinante: a aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença inesperada nos dá, de brinde, a certeza de que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa neurose não precisam ser uma norma universal, nem mesmo a norma do casal.

Há quem diga que o parceiro ideal é aquele que nos faz rir. Trillin completou a fórmula: Alice era quem conseguia fazê-lo rir dele mesmo. Com isso, ele descobriu a receita do amor que dura.
Nota. Correção da semana passada: o site do Instituto Quatro Estações é www.4estacoes.com (sem br).

"Em Direção ao Sul"

A desigualdade produz, nas elites, a fantasia de estar num harém de corpos escravos

NO FIM de semana passado, São Paulo estava deserta.
Nos faróis, até a turma habitual de pedintes, saltimbancos e vendedores ambulantes era reduzida ao mínimo.

Na sexta à noite, mostrando a cidade a um turista europeu (meu conhecido), parei na esquina da Estados Unidos com a Nove de Julho. Uma moça, muito bonita e habilidosa, fez seus malabarismos só para nós. Dei-lhe alguns reais (merecidos) e lhe desejei feliz Ano Novo.
Meu hóspede fez um comentário que queria ser engraçado: "Poderíamos convidá-la para casa...".

Covardemente, reagi no estilo esperado (o do clube do Bolinha). Resmunguei "pois é...", num tom entre incerto e maroto.

Mais tarde, fui assistir a "Em Direção ao Sul", de Laurent Cantet, que estreava naquele dia. O filme (excelente) é inspirado em uma série de contos do haitiano Dany Laferrière ("Vers le Sud"). O pano de fundo é o Haiti dos anos 70: miséria e poder ilimitado da gangue de papa Doc.
Três mulheres brancas e maduras do hemisfério norte (duas americanas e uma canadense) passam suas férias num hotel na beira da praia; elas procuram o sol e, sobretudo, os garotos negros, que namoram e transam com elas e que elas pagam em dinheiro e presentes.

Numa cena do filme, as mulheres se perguntam por que não gostam tanto dos negros de seus países de origem. A pergunta vale para o turismo sexual em geral: por que ir tão longe? Afinal, nas cidades do primeiro mundo, há uma ampla escolha de amores à venda. A troca é mais barata no Haiti, no Brasil ou nas Filipinas, mas (considerando o custo da viagem) o argumento financeiro não se sustenta sozinho.

Os "tristes trópicos" de quem vive no terceiro mundo são a condição necessária para que existam os trópicos alegres do turista sexual. Mas a razão disso não é só econômica.

Explico. Na vida erótica, funciona uma espécie de proporção: para desejar sexualmente, é como se precisássemos, ao menos por um momento, despojar o outro de sua dignidade subjetiva, considerá-lo apenas como corpo. É por isso que, para alguns, é impossível desejar e amar o mesmo outro. É por isso que a maioria, na hora do sexo, não sussurra palavras de carinho, mas solta "injúrias" que rebaixam a parceira ou o parceiro, ou seja, que o transformam em carne entregue ao desejo. Nada de "meu anjo". Na cama, é "puta" e "cafajeste".

Nos lugares preferidos pelo turismo sexual, essa configuração banal da vida amorosa está, por assim dizer, realizada de antemão: o turista encontra sujeitos que já são reduzidos a seu corpo. Se não bastasse o passado colonial ou escravagista, a desigualdade brutal prepara os corpos tropicais para o festim do turista sexual. Laferrière, num outro livro ("La Chair du Maître", a carne do dono), escreve: "É simples: um pequeno grupo de pessoas possui, neste país, todo o dinheiro disponível.

Como se sabe, com o dinheiro dá para comprar tudo: os seres e as coisas". E os seres, nesse caso, podem se tornar objetos eróticos sem empecilhos: destituídos de cidadania, eles são, se não coisas, carne.

Por exemplo, Legba, o jovem negro que, no filme, é objeto de desejo das senhoras, pode ser uma espécie de felino que elas querem acariciar e mimar porque já foi transformado em bicho pela miséria social e política de seu país.

Com os negros do Norte, não é tão fácil. Certo, eles são descendentes de escravos e ainda assombram os sonhos sexuais das elites brancas do Norte, mas a diminuição da desigualdade e a conquista de direitos políticos efetivos os tornaram cidadãos. Para lidar com seus corpos, é necessário lidar também com suas pessoas.

Saindo do cinema, pensei no comentário de meu conhecido sobre a jovem malabarista de farol. Tanto faz que ele fosse europeu: o Brasil tem dois mundos suficientemente separados para que seja possível praticar turismo sexual sem sair do país. Pela força do passado e pela distribuição de riqueza que o preserva, somos divididos em gente e bichos, sujeitos e vira-latas que talvez seja possível levar para casa, oferecendo um biscoito.

Algo resiste ao fim de uma desigualdade que priva os desfavorecidos de cidadania e os reduz a seu corpo. E não são apenas dificuldades administrativas e econômicas. A desigualdade é também uma fonte, talvez envergonhada, de prazer erótico; ela alimenta, nas elites, a fantasia (apenas e mal reprimida) de estar, o tempo todo, num harém de corpos escravos.