01 fevereiro 1998

Crise mostra descompasso entre mídia e público


A sexo-crise da Casa Branca entra em sua segunda semana. Seja qual for sua conclusão, ela poderá passar para a história como um extraordinário descompasso entre a mídia e seu público.
A mídia norte-americana continua pressupondo uma reação de indignação que seus ouvintes e leitores manifestamente lhe negam.


Jornalistas de todas as orientações ostentam um tom fustigador, mas -nas pesquisas quantitativas como nas conversas de esquina- o público responde que, para essa história, não dá a menor bola: o uso do membro presidencial concerne ao presidente, a sua mulher e, eventualmente, a paixões paralelas, se existirem.


Até os adversários políticos tradicionais preferem se abster a pedir uma indignação que não é o sentimento popular.


Só reagem os raivosos profissionais, que desde sempre alimentam alguns talk-shows de rádio num constante e paranóico descontentamento ou colocam bombas nas clínicas de aborto (e que mal representam 10% dos americanos).


Em breve, tudo indica que, se o presidente for culpado de uma aventura com uma estagiária, ninguém se importa. Agora, se for provado que ele tentou obstaculizar a Justiça, induzindo Monica Lewinsky a mentir, poderemos nos indignar, mas o risco é quase nulo, pois nas próprias gravações das conversas telefônicas de Monica com Linda Tripp, ela afirma que não foi aconselhada a mentir.


A mídia internacional globalmente caiu na armadilha de tomar o evento montado pela mídia americana como expressão de uma voz popular que, de fato, está ausente.
Conclusão (viva as banalidades!): denuncia-se ou ironiza-se o pretenso "puritanismo" americano. Não podia dar mais errado, pois a história indica, ao contrário, que a mídia americana presumiu um puritanismo do público, que desta vez faltou à chamada.


Procura-se então uma explicação simples e alternativa. Mais um lugar comum: o americano, além de puritano, se presume que seja pragmático, ou seja, cínico. Conclusão: as pessoas não se indignam porque com Clinton a economia está dando certo, e o bolso fala mais alto do que a moral. Será? Ou será que algo mudou enfim -e radicalmente- na maneira americana (e não só americana) de pensar e viver a política?


A situação atual é um bom teste para verificar essa hipótese. Na terça, o presidente Clinton proferiu o tradicional discurso sobre o Estado e a União. Logo após o discurso, sua popularidade disparou para perto dos 70% (sondagem da CNN). Por quê?


Foi um discurso de política pós-moderna: nenhuma proposta radical, nenhuma grande oposição ideológica, nem mesmo a procura de zonas de conflito com a oposição republicana. Ao contrário, na enumeração dos sucessos de seu governo, o presidente sublinhou os resultados que foram efeito de acordos e esforços bipartidários.


Nas propostas, ele planejou gastar (democraticamente), mas respeitou a oposição se engajando a não se endividar (republicanamente). Evitou ventos ideológicos e avançou esparadrapos sociais pontuais, possíveis e concretos.


Se houve um apelo ideal, foi à esperança genérica de construir uma comunidade mais apaziguada e justa, de reinventar uma idéia de bem comum no respeito das diferenças da sociedade americana e global.


Este ideário básico pode parecer piegas e talvez seja. Mas o que importa é que ele está em perfeita consonância com o clima do momento. É este o ideário da geração que hoje lidera a opinião pública: os baby-boomers, influenciados pelos anos 70, revoltados ou revolucionários arrependidos, tolerantes, multiculturalistas, vagamente libertários, cuidadosos de seu conforto, mas bem intencionados socialmente, nostálgicos e sedentos de vida comunitária, anti-racistas, desconfiadíssimos de oposições ideológicas abstratas e partidárias (nas quais acreditaram no passado) e geralmente menos hipócritas do que seu predecessores.


O pano de fundo atual é uma mudança da política como disciplina e exercício, pela qual hoje a moda não é o conflito, mas a convivência. O novo urbanismo americano propõe a fuga dos subúrbios e a volta aos centros urbanos, mais diversos. Ou então, negros -homens e mulheres- marcham sobre Washington não para pedir algo do governo, mas para proclamar seu engajamento em produzir uma vida melhor para todos. Ou ainda: assiste-se a um vasto "revival" do serviço comunitário e dos esforços caritativos.


No discurso, Clinton apresentou os sucessos da redução dos subsídios a pobres e desempregados como sendo antes de mais nada o efeito do heroísmo dos próprios desfavorecidos que conseguiram passar do cheque-subvenção ao cheque do salário.


Ele levou o Congresso inteiro a aplaudir de pé uma mulher do povo: heroína da nova comunidade americana. É isso que os baby-boomers esperam de seus políticos: que coordenem nossos esforços para criar uma vida melhor e que não nos azucrinem com princípios ou com estatuários exemplos de virtude.


Os feiosos de repente são os acusadores de Clinton, por parecerem (e provavelmente serem mesmo) perigosamente partidários. Kenneth Starr, o promotor nem tão independente assim, pertence a um escritório que defende os interesses das companhias de tabaco, é republicano militante e, antes de ser escolhido para sua função atual, se ofereceu espontaneamente para ser advogado de Paula Jones. O mesmo ou quase vale para Linda Tripp ou para sua agente literária. Eles aparecem vulgares, fora de moda, intolerantes.


Clinton, ao contrário, se beneficia da própria política que ele representa e promove. Em um clima onde a esperança é respeitar a diversidade sem perder a comunidade, onde portanto se promove a tolerância das diferenças de orientação sexual, como poderíamos contestar seu direito à Presidência por um presumido adultério oral?


O discurso de Clinton constituiu assim um exato a-propósito. Seu governo parece feita para os nossos tempos. Ele é um baby-boomer comum. Suas forças (poucos "a prioris" básicos humanitários, diálogo e conciliação) são nossas forças. Suas fraquezas (da carne) também são. Por isso é fácil atingi-lo, mas por isso mesmo não vai ser fácil afundá-lo, pois ele é o homem político de uma geração.


Retomando a questão levantada por Otavio Frias Filho em sua coluna de quinta passada -para descobrir quem quer a pele de Clinton, vale perguntar: além do interesse da mídia por qualquer história que levante poeira, quem quer hoje voltar a um clima interno e externo de Guerra Fria? Quem tem interesse em uma sociedade de oposições adamantinas?


Não sei, mas talvez a resposta seja só cultural: a geração de Woodstock chegou a sua maturidade e sabemos que, de regra, a passagem do poder de uma geração para outra nunca é pacífica.