29 março 2013

Papa vai, papa vem

Não é muito importante que a igreja se modernize, pois seus fieis já estão se modernizando há tempo

Quando eu era criança, meu pai deixava que minha avó cuidasse de minha formação religiosa. Ela comungava todos os domingos. Querendo seguir seu ritmo, eu me preparava confessando-me no sábado, no fim da tarde. Mas eis que, na noite de sábado para domingo, um pensamento ou um sonho vagamente impuros, uma irritação, um palavrão me convenciam: eu já tinha perdido a pureza garantida pela absolvição de poucas horas antes.

Conclusão: eu precisava de uma nova confissão antes da missa de domingo. Às vezes, não tinha mais como, e eu renunciava a comungar.

Enquanto isso, eu constatava que minha avó não se confessava nunca -e olhe que, naquela época, ninguém falava em "absolvição geral" ou em "confissão uns aos outros": a única confissão que valia era a pessoal, com um sacerdote.

Tudo bem, minha avó era (ou parecia) idosa e bem-comportada. Mas, mesmo assim, eu não entendia: para mim, sem confissão (recente e por um sacerdote) não havia como acreditar no perdão divino. Criei coragem e perguntei. Ela disse que pecava pouco e, de qualquer forma, tratava do assunto diretamente com Deus. Rezo para que esse deslize herético tenha sido tratado com indulgência quando ela se apresentou no céu.


Seja como for, foi graças a essa avó muito católica que descobri precocemente o charme e alcance profundo da Reforma protestante. Ou seja, apesar da reação do Concílio de Trento com seus decretos disciplinares, seu índice dos livros proibidos e sua reorganização da Inquisição (hoje Congregação para a Doutrina da Fé, da qual, aliás, Bento 16 foi prefeito antes de ser papa), apesar de tudo isso, o espírito da Reforma protestante ganhou corações e mentes dos católicos -se não de todos, de muitos, a começar por minha avó.

Consequência: tornou-se cada vez mais possível e frequente que alguém se considere católico praticante e decida por si o que é pecado e o que não é, num diálogo privado com Deus, sem desprezar nem a igreja nem o papa, mas sem depender deles.

Conheço numerosos católicos devotos que se casaram, se divorciaram, casaram-se novamente (no civil), não confessam a sacerdote algum o "adultério" no qual eles vivem (segundo a igreja), não se arrependem e comungam, a cada missa, alegremente, considerando-se absolvidos diretamente por Deus.

Às vezes, um pároco conhecido lhes recusa a comunhão; pois bem, mudam de igreja ou, então, esperam para comungar quando viajam e encontram, no exterior ou num lugar remoto do país, uma igreja onde ninguém saiba de sua vida no "pecado".

É fácil encontrar católicos dando provas da mesma liberdade de pensamento em matéria de camisinha e de anticoncepcionais, de homossexualidade e mesmo de aborto.

Por causa desses "novos" católicos (nem tão novos assim, se minha avó estava entre eles), contemplo com um pouco de tédio as especulações mais ou menos esperançosas sobre o rumo que o novo papa imprimirá à igreja. Será que isso ou aquilo vai ser reconhecido ou permitido? E os padres, eles poderão se casar?

Como se já não houvesse padres que, em segredo (de polichinelo) e sem a autorização romana, casam e seguem administrando os sacramentos para sua comunidade, a qual os aceita, satisfeita.

Em suma, para uma parte dos católicos (que é difícil medir, mas que é, no mínimo, uma boa minoria), a pauta dos comentários destes dias é irrelevante. Para esses católicos (que, sem se dar conta, foram conquistados pela modernidade da Reforma), o diálogo íntimo e livre com Deus está acima da opinião do papa, do pároco e da Congregação para a Doutrina da Fé.

Alguns deles acabam se tornando anticlericais: acham que o que importa é a mensagem cristã e o resto (a igreja) não passa de folclore, pompa, glose e vida institucional. Outros continuam gostando do ritual e de "seus" padres, embora considerem que a igreja militante é uma assembleia, não uma falange a mando de seus oficiais.

Se esses católicos forem o futuro do catolicismo (um futuro que já começou), a igreja de amanhã será variada e plural. Haverá católicos condenando o aborto em qualquer situação e haverá outros admitindo o aborto nas situações em que lhes parece justificado aos olhos de Deus. E eles conviverão na mesma igreja.

Ou seja, não é muito importante que a Igreja Católica se modernize. Pois seus fieis já estão se modernizando há tempo, optando pela liberdade de sua consciência, sem deixarem de ser católicos.

21 março 2013

Fugir de casa



Hoje, depois de 50 anos, vendo "A Busca", senti o que foi a dor de meus pais quando eu fugi de casa

ANTES DE mencionar "A Busca", de Luciano Moura, eu devo me declarar impedido: por razões anteriores e exteriores ao filme, serei parcial.

Primeiro. Tenho uma tremenda admiração pela roteirista do filme, Elena Soarez -ela criou, com Cao Hamburger, o seriado "Filhos do Carnaval" (HBO), que ainda me força a ficar acordado quando esbarro numa reprise noturna.

Segundo. Desde "Central do Brasil", de Walter Salles, sou especialmente sensível às corridas território brasileiro adentro, atrás de um pai de verdade (eventualmente, marceneiro).

Terceiro e mais importante. Como o jovem Pedro no filme de Moura e com a mesma idade dele, eu fugi de casa.

Por que Pedro foge? Difícil dizer. Talvez seja por causa da recente separação dos pais. Talvez seja porque o pai (Wagner Moura) não enxerga mais o filho, que está crescendo e tem paixões próprias. Ou talvez seja porque fugir de casa, algum dia, é necessário para todos -e tanto faz que isso aconteça realmente ou de maneira figurada.

Por que eu fugi? Mesma perplexidade: uma namorada distante, a vontade de cruzar fronteiras por minha conta, a ambição de provar que podia sobreviver sem a ajuda de ninguém... As razões que eu enumeraria naquela época e que poderia enumerar hoje não me bastam. Quanto mais me esforço para encontrar uma resposta, menos entendo: eu gostava dos meus pais e do lar no qual crescia com eles.

Ou seja, Pedro não me explicou minha fuga. Em compensação, pela primeira vez depois de 50 anos, num cinema da Gávea, eu senti o que deve ter sido a dor de meus pais, quando eu sumi. No desespero do pai de Pedro correndo atrás do filho, Brasil afora, vi o drama do meu pai. A comoção foi um arrependimento?

Não pelo que fiz e que faria de novo, mas, sim, pela dor que causei, embora talvez fosse inevitável.
Lembrei-me claramente de uma manhã muito cedo, em Londres, quando meu pai, cansado, bateu na porta do apartamento que eu dividia com um amigo e do qual ele tinha conseguido o endereço numa penosa investigação entre meus conhecidos, em Milão.

Não houve nenhum abraço especial. Ele pediu que eu voltasse, porque, disse, minha mãe não aguentava minha ausência e a falta de notícias. Ele nem mencionou seu próprio sofrimento. E não perguntou por que eu tinha fugido de casa.

Aceitei voltar para tranquilizar minha mãe. Mas prometi que eu fugiria de novo, assim que pudesse. E foi o que aconteceu: fui para casa e fugi de novo.

 Muitos meses depois, quando voltei de vez, tampouco conseguimos falar das razões do que tinha acontecido -talvez porque, no fundo, não houvesse razões, além da banalidade do processo de crescer, de destacar-se dos pais, de encontrar uma voz própria, fora do coro.

Nesse processo, aliás, surgem motivações genéricas suficientemente poderosas para que mal seja necessário procurar "causas" na singularidade dos pais ou dos filhos. Dois exemplos.

1) Os pais nunca nos dão tudo (nem quando são loucos a ponto de querer nos fartar). Mesmo assim, durante um tempo absurdamente longo, o que temos e esperamos vem só deles. Na adolescência, começamos a desejar coisas que eles não conseguiriam nos dar nem se quisessem nos ver eternamente satisfeitos. No entanto, como eles sempre foram responsáveis por nossas satisfações, agora eles nos parecem ser responsáveis por nossas frustrações.

 2) Stanley Cavell, um grande filósofo norte-americano, num ensaio de 1987, observou que todos nós sempre resistimos a deixar que os outros nos transformem, e isso acontece, ele propôs, porque temos uma memória viva (e talvez ressentida) de quanto fomos transformados por alguns outros no começo de nossa vida.

Essa intuição de Cavell pressupõe uma mágoa para com os pais pelo próprio peso que eles tiveram na nossa infância -uma mágoa fundamental, só por eles terem criado e moldado a gente.

Obviamente, essa mágoa, que animaria a rebeldia adolescente, é, de fato, mais uma marca dos pais. Pois mesmo os pais mais invasivos nunca deixam de sonhar com a autonomia dos filhos. Hostilizamos os pais e fugimos deles porque ELES mesmos querem nos ver livres e não gostam que se prolongue a influência que eles tiveram e têm sobre nós.

Ironia: quem deseja que fujamos de casa são nossos pais. E fugindo, realizamos um desejo deles.
Claro, o outro desejo deles seria que ficássemos em casa para sempre.

13 março 2013

O uso reto do corpo


E, para Feliciano, será que a boca foi feita para ser invadida pela língua do outro, no beijo?

Em tese, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) luta para que cada cidadão e cada grupo de cidadãos possam exercer plenamente sua diferença (claro, à condição de que essa diferença não atrapalhe a liberdade dos outros).

Parece lógico que a comissão seja presidida por um espírito libertário. Isso não exclui pastores, padres, imames e moralistas rigorosos, à condição de que, por cultura, experiência de vida e qualidades morais excepcionais, eles saibam colocar a liberdade dos outros antes de suas próprias convicções.

Esse não parece ser o caso do deputado Marco Feliciano (PSC-SP), pastor evangélico, que acaba de ser eleito presidente da CDHM. Na notável série de suas declarações boçais citadas nestes dias, minhas preferidas são: 1) "Os africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato."; e 2) "O reto não foi feito para ser penetrado -não sou contra o homossexual, sou contra o ato homossexual."

1) No texto bíblico que eu li, Cam zombou do pai Noé, o qual condenou Cam e sua descendência à servidão. Mais tarde, os defensores da escravatura decidiram que Cam era o antepassado dos africanos e se serviram dessa história para justificar a posse e o comércio de escravos.

Terminar a evocação de um relato bíblico com um "isso é fato" já é ingênuo. Terminar da mesma forma a revisão do relato bíblico proposta pelos defensores da escravatura é para além de ridículo.

Feliciano, formado em teologia, talvez leia a Bíblia no grego da Septuaginta e no hebraico do texto massorético. Eu me viro em grego antigo, mas, por hábito, leio a Bíblia no latim de São Jerônimo ou no inglês do rei James. Será que ele tem acesso a fontes que eu ignoro?

2) Cada deputado recebe uma verba considerável para que possa opinar com conhecimento de causa. Mas Feliciano parece não saber que uma porcentagem substancial de homossexuais não gosta de sexo anal, enquanto, inversamente, o sexo anal faz parte das fantasias e das práticas sexuais de muitos homens e mulheres heterossexuais. Isso, sem entrar no vasto capítulo das penetrações (fantasiadas ou reais, solitárias ou não) com objetos inanimados ou outras partes do corpo.
O deputado Feliciano poderia se corrigir, generalizando: "hétero ou homo, tanto faz: o reto não foi feito para ser penetrado". Eu entenderia melhor.

Mesmo assim, fico curioso. Será que, para o deputado Feliciano, as mãos foram feitas para carícias, solitárias ou não, recíprocas ou não? E como fica a boca? Sem pensar muito longe, será que ela foi feita para ser invadida pela língua do parceiro ou da parceira?

O deputado Feliciano poderia se entrincheirar atrás da ideia de que tudo o que não serve para a reprodução deveria ser banido do sexo. É uma opinião difícil de ser sustentada, pois, justamente, somos os únicos mamíferos cujo desejo sexual não depende nem um pouco da fertilidade da fêmea e, portanto, da reprodução. Mas é uma opinião respeitável e não incompatível com a presidência da CDHM, à condição de ser, para o próprio Feliciano, apenas uma opinião.

 Em outras palavras, o deputado Feliciano tem o direito de ser impenetrável, para maior glória divina. Que diga, então, que SEU reto não foi feito para ser penetrado, e ninguém protestará.

Imaginemos que eu faça parte de um culto satânico que só permite atos sexuais que desprezem a finalidade reprodutiva, e isso justamente para contrariar um eventual plano divino. Ou imaginemos que eu pense, simplesmente, que o melhor uso do meu corpo é o prazer e o gozo.

Será que Marco Feliciano, presidente da CDHM, vai defender meus direitos? Se a resposta não for um sim retumbante, a CDHM deve trocar de presidente.

Agora, quem colocou o deputado Feliciano na presidência da CDHM? Seis deputados se retiraram assim que Feliciano foi eleito; entre eles, Domingos Dutra (PT), Luiza Erundina (PSB) e Jean Wyllys (PSOL). Mas, apesar do gesto dos seis, quem entregou a comissão ao PSC e a Feliciano foi a base aliada do governo.

A presidente Dilma disse que, nas eleições, "a gente faz o diabo" -ou seja, qualquer aliança vale para ganhar. De fato, nas eleições, a maioria de nossos políticos supostamente laicos e progressistas não fazem o diabo, fazem o santinho. Para conquistar votos fundamentalistas, beijam anéis e frequentam cultos; no fim, eles recompensam, de alguma forma. Por exemplo, com comissões.

07 março 2013

Dilemas e cartilhas


Nada mais pueril do que a certeza moral. A maturidade deveria ser o tempo da incerteza

Na coluna da semana retrasada, "Para que serve a tortura?" (www.migre.me/dwB4Y), propus um dilema moral. Uma criança sequestrada está num lugar onde ela tem ar para pouco tempo. O sequestrador não diz onde está a criança. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?

Entre os muitos leitores que me escreveram, menos de 10% entenderam que eu estaria promovendo o uso da tortura; mesmo esses, em sua maioria, usaram o dilema para pensar (com seus botões) no que eles fariam.

Na semana passada, na Folha, Vladimir Safatle e Marcelo Coelho entenderam que meu dilema favorecia a tortura. No domingo, Hélio Schwartsman tentou colocar alguma ordem nessa cacofonia.

Pena que nem Safatle nem Coelho fizeram o único exercício que um dilema moral pede: o de pensar nos termos que ele propõe. Muito pior: ambos declararam que não gostam de dilemas. Caramba!
Tentando não ser chato para quem não seguiu a controvérsia, aqui vai:

1) Dizer que você é contra a tortura porque ela não funciona é como dizer que a gente não deve assaltar o vizinho porque ele não tem dinheiro no bolso.

2) Duvidar que a tortura funcione é um pouco covarde para com os milhares de sujeitos, mundo afora, que foram forçados a entregar um nome ou a assinar uma confissão e carregam, por isso, cicatrizes mais profundas das que ficaram em seu corpo -sobre isso, leia-se "Exílio e Tortura", de Marcelo e Maren Viñar (ed. Escuta).

3) Para nos induzir a pensar, um dilema moral deve nos empurrar para uma posição diferente da de nossos princípios. Exemplo: o primeiro dilema de Kohlberg é sobre alguém que precisa de remédios para o filho e só pode consegui-los assaltando a farmácia. Esse dilema vale apenas para quem considere que assaltar é errado.

4) Nota: Lawrence Kohlberg é o piagetiano que pesquisou a formação e as estruturas do pensamento moral. Ele inventou e experimentou uma educação moral pela prática dos dilemas (que eu saiba, é o único projeto de educação moral que não se pareça com uma doutrinação). Sugestão: antes de falar de dilemas, ler as obras principais de Lawrence Kohlberg -no mínimo, os "Essays on Moral Development".

5) Um dilema nunca é um modelo para situações parecidas, pois a vida real é sempre mais complexa. Mas o dilema é o formato padrão da experiência moral moderna, na qual o que é justo é decidido não por conformidade a uma regra, mas por nós, incertamente.

6) A infância é a idade tentada pelas cartilhas e pelos catequismos, até porque é a época em que os representantes das certezas mais tentam arregimentar as crianças -nos Balilla, na Hitler-Jugend, na Unión de Jóvenes Comunistas etc. Não tem nada mais pueril do que uma certeza moral. A maturidade é (ou deveria ser) a época da incerteza e dos dilemas.

7) O dilema estimula a moralidade porque nos encoraja a não escolher por respeito a supostos princípios ou por medo de uma punição. Para Kohlberg (e para mim), seja qual for a escolha, escolher pelo foro íntimo é sempre mais moral do que escolher por obediência a uma cartilha.

8) A modernidade se pergunta quem é o homúnculo que pilota nosso foro íntimo. Alguns, de Kant a John Rawls, apostam num homúnculo formal, parecido em todos nós, de maneira que seja garantida a existência de uma cartilha moral universal.

Outros (com os quais me dou melhor) acham que quem escolhe são os indivíduos concretos, em toda sua miséria. Há, aliás, uma certa grandeza humana na desproporção entre o caráter "indigno" do que nos motiva e o caráter eventualmente grandioso e generoso de nossos atos.

Explico: um sujeito concreto não tem os direitos humanos cravados no peito pelo dedo divino; se ele for contra a tortura, será porque seu pai foi torturado ou porque seu pai foi um torturador, porque seu colega do primário arrancava as asas das moscas ou porque ele mesmo fazia isso, porque os pais lhe disseram que não é para torturar, ou porque ele foi torturado pelos pais. Etc. Etc.

10) Safatle chamou sua coluna "Questão de Método". Li "Questões de Método", de Sartre, 47 anos atrás. E ainda me lembro da lição: o recurso aos princípios esconde as particularidades concretas.

11) Em qualquer momento histórico, entre os homens de bem, que resistem ao totalitarismo do momento, pode haver homens atormentados por dilemas e também portadores de cartilhas opostas às dos opressores.
Mas, em qualquer momento histórico, entre os opressores e os torturadores, só há portadores de cartilhas.