Conclusão: eu precisava de uma nova confissão antes da missa de domingo. Às vezes, não tinha mais como, e eu renunciava a comungar.
Enquanto isso, eu constatava que minha avó não se confessava nunca -e olhe que, naquela época, ninguém falava em "absolvição geral" ou em "confissão uns aos outros": a única confissão que valia era a pessoal, com um sacerdote.
Tudo bem, minha avó era (ou parecia) idosa e bem-comportada. Mas, mesmo assim, eu não entendia: para mim, sem confissão (recente e por um sacerdote) não havia como acreditar no perdão divino. Criei coragem e perguntei. Ela disse que pecava pouco e, de qualquer forma, tratava do assunto diretamente com Deus. Rezo para que esse deslize herético tenha sido tratado com indulgência quando ela se apresentou no céu.
Seja como for, foi graças a essa avó muito católica que descobri precocemente o charme e alcance profundo da Reforma protestante. Ou seja, apesar da reação do Concílio de Trento com seus decretos disciplinares, seu índice dos livros proibidos e sua reorganização da Inquisição (hoje Congregação para a Doutrina da Fé, da qual, aliás, Bento 16 foi prefeito antes de ser papa), apesar de tudo isso, o espírito da Reforma protestante ganhou corações e mentes dos católicos -se não de todos, de muitos, a começar por minha avó.
Consequência: tornou-se cada vez mais possível e frequente que alguém se considere católico praticante e decida por si o que é pecado e o que não é, num diálogo privado com Deus, sem desprezar nem a igreja nem o papa, mas sem depender deles.
Conheço numerosos católicos devotos que se casaram, se divorciaram, casaram-se novamente (no civil), não confessam a sacerdote algum o "adultério" no qual eles vivem (segundo a igreja), não se arrependem e comungam, a cada missa, alegremente, considerando-se absolvidos diretamente por Deus.
Às vezes, um pároco conhecido lhes recusa a comunhão; pois bem, mudam de igreja ou, então, esperam para comungar quando viajam e encontram, no exterior ou num lugar remoto do país, uma igreja onde ninguém saiba de sua vida no "pecado".
É fácil encontrar católicos dando provas da mesma liberdade de pensamento em matéria de camisinha e de anticoncepcionais, de homossexualidade e mesmo de aborto.
Por causa desses "novos" católicos (nem tão novos assim, se minha avó estava entre eles), contemplo com um pouco de tédio as especulações mais ou menos esperançosas sobre o rumo que o novo papa imprimirá à igreja. Será que isso ou aquilo vai ser reconhecido ou permitido? E os padres, eles poderão se casar?
Como se já não houvesse padres que, em segredo (de polichinelo) e sem a autorização romana, casam e seguem administrando os sacramentos para sua comunidade, a qual os aceita, satisfeita.
Em suma, para uma parte dos católicos (que é difícil medir, mas que é, no mínimo, uma boa minoria), a pauta dos comentários destes dias é irrelevante. Para esses católicos (que, sem se dar conta, foram conquistados pela modernidade da Reforma), o diálogo íntimo e livre com Deus está acima da opinião do papa, do pároco e da Congregação para a Doutrina da Fé.
Alguns deles acabam se tornando anticlericais: acham que o que importa é a mensagem cristã e o resto (a igreja) não passa de folclore, pompa, glose e vida institucional. Outros continuam gostando do ritual e de "seus" padres, embora considerem que a igreja militante é uma assembleia, não uma falange a mando de seus oficiais.
Se esses católicos forem o futuro do catolicismo (um futuro que já começou), a igreja de amanhã será variada e plural. Haverá católicos condenando o aborto em qualquer situação e haverá outros admitindo o aborto nas situações em que lhes parece justificado aos olhos de Deus. E eles conviverão na mesma igreja.
Ou seja, não é muito importante que a Igreja Católica se modernize. Pois seus fieis já estão se modernizando há tempo, optando pela liberdade de sua consciência, sem deixarem de ser católicos.
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