20 setembro 2007

A história de Querô



Não é a denúncia, mas a qualidade da história que pode nos revelar uma realidade injusta

CONSTATAÇÃO DE bilheteria: os espectadores brasileiros se interessam cada vez menos pelos filmes nacionais que tratam da miséria social.

A leitura, na imprensa, de comentários sobre essa mudança do gosto dá a impressão de que estaríamos lidando com uma espécie de "Cansei" cultural: quem tem R$ 10 para gastar no cinema procuraria, naquelas duas horas, o sossego de pensar em realidades diferentes das que assolam sua vida cotidiana e a do país.

Depois de cercas elétricas e seguranças armados na porta de casa, eis que a última defesa seria a simples negação: não me falem mais disso.

Pois é, não acredito nessa tese. Em compensação, constato o seguinte: com as devidas exceções, o cinema de denúncia é chato. E não é o caso de pensar que o sentimento de chatice seja uma defesa psicológica do espectador. É mais provável que, freqüentemente, a intenção de denunciar produza filmes chatos. Como assim "chatos"?

O cinema, como qualquer ficção, pode nos fazer descobrir realidades que desconhecíamos ou preferíamos ignorar. Ele pode nos deixar indignados, apavorados e, como se diz, mais "conscientes" do drama social ao redor de nós. Mas isso acontece quando, primeiro, o filme nos conquista, ou seja, banalmente, quando ele nos conta uma história em cujos conflitos, dramas e alegrias reconhecemos os percalços de nossa própria vida.

Ora, na sexta passada, estreou "Querô", de Carlos Cortez. O filme está em poucas salas, talvez porque se presuma que os espectadores resistam a mais um filme de denúncia da miséria social brasileira.

É uma pena, porque "Querô" não é um filme sobre a miséria social brasileira: é um filme tocante que conta a história de Querô, um adolescente da Baixada Santista que ganhou esse apelido por ter sido abandonado pela mãe, uma prostituta que se matou ingerindo querosene.

Obviamente, ao longo do filme, visitamos os antros do porto de Santos e os porões da Febem. Nesse passeio, talvez enxerguemos algo que preferiríamos não saber, mas isso acontece graças à complexidade e à intensidade da história que nos é contada. Em suma, acontece porque Querô, tão diferente, parece tão próximo a nós.

Raramente acordamos de uma noite dormida em cima das cordas de um barco abandonado, mas todos sabemos sonhar com a liberdade absoluta que é "prêmio" (envenenado) da marginalidade. Raramente devemos escolher entre o amor e o assassinato, mas não é raro que, um dia, tenhamos desistido de um amor que nos transformaria para seguir um dever iníquo ou pela simples força do que parece ser o destino. Poucos foram abandonados quando bebês, mas muitos sofrem do sentimento radical de um desamor, no mínimo, imaginário. Poucos foram abusados brutalmente, mas o ódio e a vontade de matar nos são mais familiares do que gostamos de admitir.

A qualidade humana da experiência narrada e a maestria de quem narra fazem com que uma história nos prenda, por ela se tornar, por assim dizer, universal (ou quase). Nesse caso, pode acontecer, "de brinde", que seu pano social de fundo nos deixe indignados.

Carlos Cortez se vale da extraordinária atuação do estreante Maxwell Nascimento como Querô. Ele poderia, aliás, ter confiado mais em Nascimento, cujo rosto fala alto e dispensa a esporádica evocação cinematográfica dos pensamentos do protagonista.

A origem do roteiro do filme é o romance de Plínio Marcos, "Querô: Uma Reportagem Maldita", de 1976.
Em 2002, a adaptação cinematográfica de uma peça de Plínio Marcos permitiu um filme memorável, "Dois Perdidos Numa Noite Suja", de José Joffily. No passado, houve várias outras adaptações cinematográficas de obras de Plínio Marcos, inclusive uma do próprio "Querô".

Não as conheço, mas, no caso dessas duas adaptações, aposto que ambas devem uma boa parte de sua qualidade ao carinho de Plínio Marcos pelo mundo e submundo que ele descrevia.

Um censor da época da ditadura disse um dia a Plínio Marcos que sua obra era subversiva porque continha palavrões. Plínio Marcos achou estranho, pois ele usava palavrões não para subverter, mas porque escrevia o diálogo de quem trabalha no mercado e de quem conversa nas cadeias e nos puteiros. E não fazia isso para denunciar nem para chocar, mas porque esses eram os protagonistas das histórias que ele conhecia, que lhe pareciam valer a pena e que ele gostava de contar.

06 setembro 2007

Tristeza e dignidade do suicídio


O ato suicida guarda sua dignidade porque é imprevisível como qualquer ato humano

QUANDO EU tinha 12 anos, um tio meu se suicidou. Era um tio de quem eu gostava e que gostava de mim. Ele enfiou a cabeça no forno e abriu a torneira do gás. Deixou uma nota, sucinta, que dizia: "Suicídio por razões profissionais e amorosas".

Meus pais não esconderam de mim as circunstâncias da morte do tio e me mostraram seu bilhete. Mesmo assim, imaginei perceber, em meus pais, uma certa vergonha. Isso, porque, no fundo, eu os culpava.

Foi a grande crise na minha idealização dos meus pais e, por conseqüência, na tranqüilidade de meu mundo: aparentemente, a amizade e o amor que eles ofereciam não tinham sido suficientes para dar a meu tio a vontade de continuar vivendo.

Nada me garantia, portanto, que eles saberiam fazer o necessário para que eu estivesse a fim de viver.

Foi assim que o luto pelo suicídio do meu tio foi também o fim de minha infância. Mas, em regra, quando se suicida um próximo de quem gostamos e que gostava de nós, não atribuímos vergonha e culpa a terceiros: esses sentimentos surgem em nós, ao descobrir que nossa presença e nosso amor não bastaram para que o outro quisesse viver. Em alguns casos, essa ferida nunca cicatriza.

Quando o suicida é nosso pai ou nossa mãe, o sentimento de não termos sido a razão suficiente para ele ou ela viverem fica conosco para sempre, como um fundo melancólico, como a sensação de uma insuficiência essencial ou de uma impossibilidade de sermos amados.

Quando o suicida é um filho ou uma filha, a perda (irreparável, pois o luto pelos nossos descendentes é contra a ordem das gerações) é acompanhada pelo sentimento de um fracasso, como se não tivéssemos conseguido transmitir o básico: a vontade de viver. Deve ser por isso que os monoteísmos consideram o suicídio como um pecado contra o criador: o suicida demonstraria o malogro de Deus. Assisti ao filme "A Ponte", de Eric Steele, e espero que continue em cartaz. Em São Paulo, já passa em apenas uma sala, duas vezes por dia.

Alguns anos atrás, Ted Friend publicou, na "New Yorker" (13/10/ 2003), um artigo sobre a estranha freqüência com que a famosa ponte Golden Gate de San Francisco é escolhida pelos suicidas. Aparentemente inspirado pelo artigo, Steele, durante um ano inteiro, filmou a ponte, sem parar. Houve 24 suicídios e várias tentativas que foram sustadas também graças à equipe de Steele (eles informavam a polícia quando detectavam, de longe, comportamentos "suspeitos").

Além disso, Steele entrevistou parentes e amigos próximos dos suicidas. O tom é justo, comovedor e tocante. O filme evita o caminho mais fácil, que consistiria em nos acusar sub-repticiamente, como se, quando alguém decide morrer, fôssemos todos, de uma maneira ou de outra, responsáveis. A maior qualidade do filme é, ao contrário, a sobriedade. O ato suicida guarda sua dignidade porque, apesar das explicações dos próximos, ele permanece misterioso e radicalmente imprevisível, como qualquer ato humano.

No dia 29 de agosto, o UOL publicou a notícia seguinte: na Áustria, dois homens viviam junto, em um apartamento-albergue dos serviços sociais. Brigaram. Um deles, Robert, psicótico em remissão, matou o outro; depois disso, ele abriu o corpo e o crânio do companheiro e comeu órgãos internos e cérebro. Quando a faxineira chegou, Robert, com a boca ensangüentada, comentou: "Veja só o que aconteceu". A porta-voz do Fundo Social de Viena declarou: "Se tivéssemos a menor idéia de que este tipo de coisa pudesse acontecer, teríamos transferido Robert para outro local e exercido um acompanhamento mais adequado". Alguém, na Áustria, deve estar criticando severamente o psiquiatra, o psicólogo ou a assistente social que, algum dia, afirmaram que Robert podia ser devolvido à sociedade.

Pensei nas poucas vezes em que, num tribunal, tive de dizer, em nome de minha "ciência", se alguém, a partir de então, seria ou não um bom pai ou uma boa mãe.

A verdade é que, uma vez os fatos acontecidos, somos capazes de interpretar, de encontrar explicações e mesmo de assumir responsabilidades e culpas que temos ou não temos. Mas tudo isso apenas retroativamente.

Em matéria de comportamento humano, somos quase sempre incapazes de prever. Não sei se é um mal: talvez essa ignorância seja a condição de nossa liberdade.