26 junho 2003

Por que a guerra no Iraque?

É provável que os americanos e os ingleses não encontrem no Iraque nenhuma arma de destruição em massa.

Você se lembra dos trailers que foram fotografados, via satélite, perto de fábricas iraquianas de produtos químicos? Eles existem, talvez fossem mesmo laboratórios, mas não contêm nem os restos de atividades suspeitas. Em suma, os serviços de informação americanos acreditaram num paco, e o governo, para justificar a guerra, arredondou para cima.

Possivelmente, o regime iraquiano gostava de deixar pairar a dúvida sobre seus recursos militares escondidos: quem sabe, um blefe para impressionar os vizinhos. O drama é que estava na mesa um jogador que acabava de decidir o seguinte: não deixo para menos, a partir de agora pago para ver, sempre. Esse jogador declarou que o Iraque tinha cartas fortes e foi para cima.
Blefe iraquiano ou não, resta que o governo dos EUA parece ter falhado com a verdade. Roberto Pompeu de Toledo, na "Veja" da semana retrasada, estranhava que os americanos não estivessem mais indignados com seu governo, que lhes teria mentido sobre as razões da guerra. Afinal, na cultura americana, mentir é um pecado capital.

Certamente, a dita mentira dará vitalidade aos que se opunham à guerra. Mas aposto que ela parecerá pouco relevante aos olhos dos outros. Pois a razão da guerra, no espírito dos que apoiaram a intervenção militar, não era a presença de armas de destruição em massa no Iraque.
Para entender o que sustenta, nos EUA, o consenso majoritário a favor da guerra, é preciso voltar no tempo.

Logo após os atentados de 11 de setembro de 2001, um comunicado da Al Qaeda comparou os terroristas, que encararam a morte para cumprir sua missão, com os americanos, amolecidos pelo conforto de suas vidas. Claro, os terroristas sairiam ganhando.

O presidente Bush comentou que os militantes da Al Qaeda passavam tempo demais assistindo à televisão americana, sobretudo durante o dia. Ou seja, eles imaginavam os americanos a partir daqueles programas televisivos que respondem às perguntas: o que fazer se sua filha é gay? E se seu marido decidir mudar de sexo? Quer impressionar seus convidados? Quer fazer geléia igual à da vovó? Quer ter um bumbum firme? Eles deviam concluir pela inanidade desse povo de telespectadores corrompidos pelo egotismo e atormentados por um narcisismo infantil.

Os terroristas tinham outras razões para supor que seu soco bateria num ventre mole ou, pior, fortalecido por abdominais malhados apenas para passear no calçadão de Miami. Afinal, há tempos os EUA não manifestavam a determinação necessária para responder a ataques. Durante mais de uma década, no Líbano, na Somália, no Iêmen, no Quênia etc., soldados e civis dos EUA foram mortos. E os americanos levaram cadáveres e desaforo para casa.

Na mesma linha, a primeira guerra do Iraque, em 91, foi conduzida ao abrigo de uma grande coalizão e, sobretudo, com uma estratégia de risco mínimo para as vidas americanas (bombardeios prolongados antes da invasão).

A resposta de Bush ao comunicado da Al Qaeda afirmava que os EUA não são a caricatura proposta pela TV diurna ou pela série de filmes e livros que vai de "American Psycho" até o último romance de Don DeLillo, "Cosmópolis". Os anos 90, parecia dizer o presidente, foram uma excrescência frívola que afetou marginalmente as costas Leste e Oeste, sem comprometer o país profundo.
Como corroborar essa afirmação com fatos? Como demonstrar que os americanos não estão deslizando numa decadência parecida com a que acabou com o Império Romano?

Uma guerra seria a prova ideal da persistência da valentia americana. Mas uma guerra que não fosse imposta pela simples necessidade de defesa (como foi a invasão do Afeganistão) e em que os americanos arriscassem suas vidas.

Na nova guerra do Iraque, à diferença da de 91, os bombardeios e a invasão começaram simultaneamente, como se os atacantes não quisessem perder a ocasião de um combate cara a cara. Além disso, a demonstração seria ineficiente sem mortos e feridos americanos.

Para os que apoiaram a guerra, a ausência de armas de destruição em massa no Iraque é só uma incongruência na retórica que justificava o conflito diante da comunidade internacional. Para eles, não houve mentira sobre a razão da guerra, pois nunca pensaram que a razão da guerra fosse a ameaça das supostas armas químicas ou nucleares iraquianas. A guerra, para eles, era e é contra a manha dos anos 90; seu propósito é confirmar que os EUA não são a Roma do império tardio, mas Esparta, cujo povo está com garra guerreira, disposto a pagar (com sangue) para ver.

Recentemente, em Nova York, visitei a loja de um tatuador. Um jovem e inusitado cliente, de terno Paul Stuart (uniforme da antiga farra de Wall Street), queria tatuar seu braço. Tinha escolhido a mais antiga bandeira americana: uma serpente erguida, prestes a morder, com a inscrição "Don't tread on me", não me pise.

Podemos apontar razões econômicas e políticas para a guerra. Com isso, denunciamos apenas racionalizações. O motivo da guerra é, propriamente, psicológico.

19 junho 2003

A mídia e as memórias de Hillary Clinton

Na segunda-feira da semana passada, chegou às livrarias "Living History" ("história viva" ou "vivendo a história"), de Hillary Rodham Clinton, ex-primeira-dama dos EUA e senadora pelo Estado de Nova York. No primeiro dia, venderam-se 200 mil exemplares.

Não houve distribuição prévia do livro à imprensa. Apesar disso, no Brasil, alguém escreveu, no meio da semana, que a única coisa interessante nas memórias era a historieta de Bill Clinton e Monica Lewinsky. Felicitações: em três dias, ele conseguiu receber o livro e ler as 500 páginas.
Os profissionais da mídia americana, em sua maioria, não fizeram melhor. No índice analítico, procuraram "Monica Lewinsky" e "Whitewater" (o nome do investimento imobiliário no qual os Clintons perderam suas economias sem cometer ilegalidade nenhuma). Os comentaristas, ao que parece, apostaram que o povo (sempre burro, não é?) gostaria de histórias escabrosas.

Se pensaram assim, erraram. Para ler nos retalhos de tempo, carreguei o livro por todo canto de Nova York. Em seis dias, fui interpelado por dezenas de desconhecidos que planejavam ler o livro ou já estavam lendo: porteiros, caixas de farmácia e de supermercado, garçons, halterofilistas, corredores de esteira, seguranças, bombeiros. Só um deles mencionou o caso Lewinsky, para notar que não entendia que ainda se falasse desse episódio insignificante. Todos perguntavam como foi a juventude de Hillary e, sobretudo, quais eram suas aspirações políticas de hoje: concorreria à Presidência? E seu antigo projeto de assistência médica gratuita?
O dito povo, ao menos em parte, parece estar disposto a acreditar que existam vidas animadas pela paixão cívica do serviço público.

Fora o preconceito segundo o qual o povo gostaria de roupa suja, por que diabo a mídia, em massa, soube apenas associar o nome de Hillary Clinton à escapadela Lewinsky ou a uma pequena maracutaia imobiliária desmentida pela Justiça? Por que comentaram o livro como se a vida de Hillary não fosse uma história política, mas um conto de infidelidades conjugais (do marido) e de interesses escusos?

Será que a urgência e a preguiça de ler produziram o espírito de porco dos comentaristas? Suspeito que haja uma outra razão, como se diz, mais embaixo.

O tratamento reservado ao livro de Hillary é exemplar de uma atitude que conhecemos bem: quando os outros são melhores que nós, tentamos rebaixá-los, por vergonha. Imaginando neles nossos próprios defeitos, afirmamos nossa inocência. Por exemplo, é providencial que muitos políticos sejam corruptos, pois isso nos permite afirmar que todos são. Justificamos, assim, a mediocridade de nossos engajamentos políticos e sociais.

Ora, no livro de Hillary Clinton, há três eixos éticos.

O primeiro orienta seu casamento com Bill Clinton. "Perguntam-me com frequência por que Bill e eu ficamos juntos.(...) O que dizer para explicar um amor que persistiu por décadas e cresceu nas experiências de criar uma filha, de enterrar nossos pais e de nos ocupar de nossos familiares, compartilhando as amizades de uma vida inteira, uma fé comum e uma dedicação persistente ao nosso país? Só sei que ninguém me entende melhor e ninguém me faz rir como Bill. (...) Bill Clinton e eu começamos uma conversa na primavera de 1971; 30 anos depois ainda estamos conversando."

O segundo concerne à vida pública. Hillary nasceu na pequena burguesia, conquistou o acesso às melhores universidades, tornou-se advogada e, em vez de enriquecer tranquila, escolheu o serviço público. Sua vida é uma série de engajamentos políticos: começou aos 12 anos e continuou até o Senado, passando pelo ativismo nas campanhas de Barry Goldwater (na adolescência, ela era republicana como seu pai), de Jimmy Carter e de Clinton. Sem contar a militância feminista e o trabalho incessante em defesa das crianças menos favorecidas.

Terceiro eixo: nesse percurso, Hillary manteve a disponibilidade ao diálogo, ou seja, a capacidade de reconhecer que o adversário político pode discordar quanto aos meios e às prioridades, mas não por isso ele é necessariamente um inimigo da comunidade.

Em suma, a moral de "Living History" diz: vale a pena lutar para as relações que importam numa vida, vale a pena dedicar-se ao bem comum e vale a pena reconhecer que os outros podem discordar de nós sem ser bandidos. É uma moral incômoda.

Em geral, preferimos encarar o casamento não como a construção laboriosa de uma vida juntos, mas como uma rápida contabilidade de prazeres: está chato? Acabe logo.

Também preferimos acreditar que a dedicação ao serviço público seja um conto do vigário ou, melhor, do vigarista: trapaceie sem escrúpulos, pois só há trapaceiros. Quanto a quem discorda de você, mande matar ou, não podendo, impeça suas ações, sobretudo se elas forem certas: pouco importa o bem comum, o essencial é que o adversário se rale.

Para desculpar essa mesquinhez, nada melhor que imaginá-la nos outros. Nossa mediocridade sairá melhor na foto, se puder se confundir com a mediocridade de todos.

12 junho 2003

O trauma está na moda

Claro, existem experiências que causam estresse em qualquer um. A lista é intuitiva: sofrer abuso, ser estuprado, torturado, bombardeado, atropelado, abandonado ou, simplesmente, maltratado.

Acreditamos firmemente que as feridas produzidas em nosso espírito por experiências desse tipo continuem doendo e supurando durante um bom tempo, se não para sempre.

Essa convicção alimenta indulgências e pretextos duvidosos. Vai ver que a mãe de Fernandinho Beira-Mar batia nele três vezes por dia; portanto, pedimos a clemência da corte. Uma moça não consegue dormir e é consumida pela angústia; acontece que, no escritório, ela é constantemente exposta a observações devassas que a traumatizam: será que pode exigir danos materiais e morais? A fé no trauma alimenta uma indústria jurídica e terapêutica.

Excessos à parte, ninguém nega, hoje, que os traumas existam e tenham consequências nefastas. Mas é notável que a categoria clínica de "transtorno de estresse pós-traumático" tenha sido reconhecida oficialmente só em 1980. Acontece que somos cada vez mais modernos: veneramos o futuro e perdemos a capacidade de integrar o passado na narrativa de nossas vidas. Com isso, os eventos marcantes aparecem facilmente como traumas, restos enigmáticos aos quais atribuímos poderes quase mágicos porque não conseguimos incorporá-los à nossa história.

Richard McNally acaba de publicar "Remembering Trauma" (Lembrando-se do Trauma), editora Belknap/Harvard. O livro apresenta de maneira magistral e exaustiva a literatura científica sobre o tema e responde a estas perguntas cruciais: 1) O que constitui um trauma? 2) Por que e como o dito trauma tem consequências nefastas?

1) Nenhum evento é traumático por natureza. Uma violência extrema pode deixar meu espírito incólume, enquanto uma palavrinha inofensiva pode me perturbar para sempre. O valor traumático de um evento não depende de sua brutalidade, mas de como eu integro esse evento no sentido que atribuo à minha existência.

Uma pesquisa demonstra que presos políticos torturados sofrem muito menos de transtornos pós-traumáticos do que presos que foram torturados, digamos assim, "por engano". Ou seja, a violência marca para a vida só aqueles que não dispõem de recursos para lhe atribuir um sentido.
Outras pesquisas mostram que, contrariamente à opinião recebida, a percentagem de militares americanos que sofreram um "colapso nervoso" durante a Guerra do Vietnã é muito menor do que nas outras guerras do século passado. Mas a proporção muda ao levar em conta os soldados que manifestaram transtornos pós-traumáticos depois da volta para casa. Ou seja, os horrores da guerra se tornaram traumas quando os veteranos aprenderam que suas vivências não eram valorizadas pela maioria do povo americano. Eles se depararam, assim, com a impossibilidade de dar sentido às experiências pelas quais tinham passado. O filme que trata dos efeitos traumáticos da Guerra do Vietnã nos soldados americanos não é "Apocalypse Now", mas "Rambo" (o primeiro da série).

2) Sobre a razão pela qual um evento perturbador pode nos afetar duravelmente, temos opiniões contraditórias. Pensamos que ele nos afeta porque não conseguimos esquecê-lo. Ou, ao contrário, que o esquecemos, e agora ele nos atormenta de seu esconderijo nos bastidores da memória. Coerente, a sabedoria popular propõe dois remédios opostos: "Pare de pensar nisso que vai se sentir melhor" ou, então, "Tente se lembrar detalhadamente, pois os pensamentos que a gente evita voltam sob forma de pesadelos". Qual é a atitude certa?

Para McNally, a questão é descabida, pois, de qualquer forma, segundo as pesquisas, os eventos perturbadores são quase sempre vividamente lembrados. E nada prova que exista algum tipo de amnésia seletiva dos acontecimentos desagradáveis. Se você não se lembra de ter sofrido abuso quando criança, você não sofreu. É possível ter calafrios pensando nas fantasias escusas que, por alguma razão, você supôs nos outros e em si mesmo. Mas, quanto aos fatos, fique sossegado: o que você não lembra não aconteceu.

Em suma, o dilema não é entre esquecer e lembrar, mas entre conseguir ou não dar sentido a fatos dos quais, inevitavelmente, nos lembramos.

A vulgarização da psicanálise foi responsável, em parte, pela idéia de que seríamos todos patologicamente amnésicos. "Doutor, sofro de vertigem e não sei por quê; me ajude." "Pois é", responde o doutor, "está dito em seus sonhos (em linguagem misteriosa) que sua mãe, irritada, um dia deixou cair esse nenê que não parava de chorar". Bingo! Lembre-se e cure-se.

O diálogo dá (e deu mesmo) um bom filme. Mas as verdadeiras questões são outras. Não esqueci que a mãe me deixou cair. Agora será que ela quis me jogar no chão? Foi falta de amor? Foi vontade repentina de agarrar o pai? De agarrar o carteiro? Ou o acidente foi o efeito do excesso de Hipoglós, que me tornou escorregadio como um sabonete?

O fato é sempre bem lembrado. Nossos transtornos (e nossa vida) dependem das respostas que encontramos para as perguntas que acabo de evocar e para outras análogas.

05 junho 2003

A dor dos outros

Graças ao fotojornalismo e à televisão, para nós, a dor dos outros não é apenas o acidente na esquina ou a doença de um parente. Contemplamos a cada dia o sofrimento humano pelo mundo afora.

Podemos ignorar onde está a Somália e qual é a razão que a condena à fome, mas as imagens de crianças somalis, esqueléticas e inchadas, estão em nossa memória. Esquecemos os detalhes da catástrofe étnica e política que explodiu a ex-Iugoslávia, mas nos lembramos da cor do sangue nas calçadas de Sarajevo. Não entendemos nada das facções que, no Congo, massacram milhões, mas, uma vez por mês, em algum jornal, encontramos o olhar de uma criança congolesa amputada a golpes de machete.

Nos anos 80, escrevi uma tese que tratava dos campos nazistas de extermínio. Percorri os porões do horror até a náusea, de leitura em leitura. Mas, ainda hoje, "genocídio" evoca imediatamente, em mim, não palavras, mas imagens: as fotografias tiradas na liberação dos campos e aquele menino judeu, de boné, mãos levantadas e estrela-de-davi no peito... Você sabe de que imagem estou falando, pois temos em comum não só o repertório de Hollywood, mas também um arquivo fotográfico da dor.

Para refletir sobre os efeitos desse patrimônio contemporâneo, Susan Sontag acaba de publicar um livro pequeno e admirável: "Regarding the Pain of Others" (contemplando a dor dos outros), editora Farrar, Straus and Giroux.

Muitas vezes, a significação das imagens do arquivo da dor depende de quem olha. Talvez, 60 anos atrás, numa cervejaria de Munique, a fotografia daquele menino de boné tenha suscitado o riso de um bando de SS. Talvez, hoje, a fotografia de um tútsi levantando os braços mutilados inspire alegria numa roda de hutus e vice-versa.

Mesmo assim, o arquivo tem uma relevância moral. De um jeito que as palavras não alcançam, ele lembra os atos dos quais nós, humanos, somos capazes (o que inspira cautela na hora de invocar o bom direito puxando a espada). Além disso, o arquivo estende o alcance de nossa simpatia. Partilho pouco com uma mulher argelina: separam-nos língua, religião, cultura e sonhos. Mas, quando a vejo errando pelos escombros de um terremoto em que ela perdeu os filhos e os objetos que representavam sua história, "reconheço" imediatamente o que ela sente. A dor decreta nossa semelhança.

Ora, desde os anos 80, as imagens do arquivo da dor são objetos de ataques e críticas.

Começou com a idéia de que, à força de contemplar, a gente se acostumaria: o sofrimento dos outros seria como a musiquinha do caminhão do gás, que não nos acorda mais. Logo, os fotógrafos que arriscam (e, às vezes, perdem) a vida para nos trazer imagens abomináveis foram chamados de "turistas de guerra", como se, por eles, a dor se tornasse mais uma atração no circo do mundo.

Sontag escreve sobre essa crítica (que lhe parece ser "uma especialidade francesa", de Guy Debord a Jean Baudrillard): "Segundo uma análise influente, vivemos numa "sociedade do espetáculo". Cada situação deve ser transformada em espetáculo para ser real ou seja, interessante para nós. (...) A realidade abdicou. Só há representações: mídia". Consequência disso: "Os cidadãos da modernidade, consumidores de violência como espetáculo, adeptos da proximidade sem risco" (ou seja, da proximidade com a foto de primeira página, e não com os fatos) seriam assim "instruídos no cinismo".

Mas quem são os cínicos? Os espectadores, os fotógrafos ou os críticos? Sontag, referindo-se aos críticos: "Algumas pessoas fariam qualquer coisa para evitar a comoção". Para esquecer o que as imagens mostram de fato, é cômodo denunciá-las por elas serem imagens. Ganha-se, assim, a suposta superioridade de quem estaria desmascarando um truque em que todos caem.

Mas não é só isso. O que leva a criticar a imagem é a incapacidade de responder ao olhar do menino congolês. Diremos que a imagem é bonita demais (como as fotos de Sebastião Salgado, não é?) ou sensacionalista (o jornal só quer vender, não é?), porque criticar a imagem é preferível a encarar nossa impotência diante dos fatos.

Mais uma nota. As imagens da dor dos outros são acusadas de inspirar curiosidades mórbidas. Procuraríamos jornais encharcados de sangue, assim como diminuímos a velocidade passando por um acidente, na "esperança" de ver sangue. Será que esse interesse não tem um fundo erótico inconfessado?

Tem mesmo. E Sontag tem razão em constatar que os corpos que sofrem rivalizam com os nus na capa das revistas. Mas não há nenhuma vergonha nisso. Na agonia, os outros me aparecem reduzidos aos seus corpos. Descubro assim um segredo de polichinelo: não "temos" um corpo, "somos" nosso corpo. Essa revelação é fonte de angústia: cadê o ego, cadê a valentia narcisista nesta massa de carne que sofre? Mas redescobrir que "somos" um corpo, mesmo na angústia, é também, inevitavelmente, uma experiência erótica. Qualquer criança católica sabe disso, se seus sentidos foram despertados diante das imagens do martírio de santos e santas.

E daí? Para esquecer nosso corpo, deveríamos também esquecer a agonia dos outros?