28 fevereiro 2008

Será que era só isso?

Nos últimos anos, subiu o índice de suicídio na população entre 40 e 64 anos. Por quê?

O "NEW YORK Times" de 19 de fevereiro publicou os resultados de uma pesquisa dos Centers for Disease Control and Prevention dos EUA (centros para controle e prevenção das doenças).
A pesquisa mostra que, de 1999 a 2004, na população entre 45 e 54 anos de idade, o índice de suicídios aumentou, em média, 20% (31% entre as mulheres).

No mesmo período, os suicídios de adolescentes aumentaram 2% e os de pessoas idosas diminuíram.

Em 2004, nos EUA, 32 mil mortes foram oficialmente atribuídas a suicídio. Ampliando a faixa da meia-idade, constata-se que, dessas mortes, mais de 14 mil são de pessoas entre 40 e 64 anos. Segundo o "New York Times", o fenômeno não seria apenas americano: um estudo recente aponta que, em 80 países, as pessoas de meia-idade são as menos "felizes". As explicações são hipotéticas.

Por exemplo, no que concerne às mulheres, desde 2002, diminuiu fortemente o uso da reposição hormonal na menopausa. Talvez o déficit de estrógeno tenha efeitos depressivos diretos ou indiretos.

Também observa-se que pessoas de meia-idade são grandes consumidoras de antidepressivos. Talvez um uso vacilante dessa medicação (com interrupções brutais sem acompanhamento psiquiátrico) seja responsável por momentos de aflição irresistível. Mas é mais provável que, no caso, o consumo de antidepressivos seja apenas prova suplementar de que as pessoas dessa idade são especialmente "vulneráveis".

Em suma, resta a pergunta: o que acontece, entre os 40 e os 64, que levaria ao suicídio mais indivíduos do que em outras faixas etárias?

Sabemos que as adversidades desesperam os adolescentes porque eles têm dificuldade em enxergar um futuro possivelmente diferente.

E imaginamos com facilidade que as enfermidades e o sentimento do fim que se aproxima possam levar alguns idosos a precipitar o desfecho. Mas adultos na plena força da vida?

É claro, a meia-idade é a época em que os executivos que perdem seu emprego ficam no limbo -demasiado qualificados e já "velhos" para retomar sua carreira. Mas, nos exemplos trazidos pelo "New York Times", os suicidas de meia-idade não parecem ser vítimas de crises profissionais.
Algumas observações:

1) Nas últimas décadas, mesmo nas fileiras de quem acredita em Deus ou na revolução futura, vem se impondo a vontade (ou a necessidade) de justificar a vida "por ela mesma". As aspas servem aqui para lembrar que ninguém sabe o que isso significa. Alguns pensam nos prazeres que eles se permitem, outros na satisfação de serem úteis ao próximo, outros ainda avaliam a qualidade estética de sua história ou valorizam a variedade e a intensidade de suas experiências. Seja como for, a vida deveria valer a pena pelo que a gente faz, pela própria experiência de viver.

2) Acrescente-se que, a partir dos anos 60, os adultos de nossa cultura começaram a se preocupar com a adolescência -ou seja, entre outras coisas, passaram a querer furiosamente que suas crianças se preparassem para elas serem "felizes" um dia (em todos os sentidos: sucesso amoroso e financeiro, êxtase, bom humor permanente).

3) Chegam hoje à meia-idade as gerações que cresceram esperando uma "felicidade" que daria sentido à longa "preparação" de sua adolescência e convencidas de que a vida deve se justificar por ela mesma. Os que fracassaram têm sorte: eles podem se dizer que a coisa não deu certo. Os que se acham bem-sucedidos esbarram, inevitavelmente, numa questão inquietante: "Então, é isso? Era só isso?".

Estreou na sexta passada "Antes de Partir", de Rob Reiner, com Jack Nicholson e Morgan Freeman. É a história de dois homens que aprendem que eles têm seis meses de vida, escrevem uma lista das coisas que gostariam de fazer antes de morrer e saem pelo mundo afora. Alguns críticos adoraram, outros acharam que os atores não salvam um roteiro em que as últimas vontades dos protagonistas parecem oscilar entre a obviedade (beijar a moça mais linda, pular de pára-quedas, fazer um safári) e a pieguice (reencontrar os que a gente ama de verdade, causar alegria na vida dos outros etc.).

Para mim, é a própria trivialidade da lista dos dois amigos que faz o charme do filme. Na hora de bater as botas, diante da pergunta "Que mais poderia ter sido minha vida?", é tocante constatar que, no fundo, gostaríamos que tivesse sido mais do mesmo.


21 fevereiro 2008

"Me Larga!" (e me abraça!)


As separações são decididas por dinâmica que pouco tem a ver com os defeitos do outro

ÀS VEZES , milagrosamente, um psicanalista consegue transmitir os resultados de sua experiência clínica do jeito certo: sem simplificar, mas sendo mais cuidadoso com o leitor leigo do que preocupado em impressionar a turma dos colegas.

É o caso do livro de Marcel Rufo, "Me Larga! Separar-se para Crescer", recentemente traduzido em português pela Martins Fontes.

Rufo, 62, francês, terapeuta de crianças e adolescentes, segue passo a passo as peregrinações pelas quais o indivíduo conquista sua autonomia, ou seja, o difícil caminho que leva da fusão inicial com a mãe à independência rebelde do adolescente.

Ao longo do percurso, ele apresenta inúmeras vinhetas clínicas: crianças agressivas, infelizes na escola, com enuresia, pré-adolescentes adotados ou que se imaginam sê-lo, outros que fogem sem parar, jovens que se drogam ou querem acabar com sua vida, assim como pais que largam os filhos cedo demais e outros que não os largam nunca.
Mas "Me Larga!" não é apenas um livro para pais e filhos sobre as dores do crescimento. A leitura é, para qualquer um, uma ocasião imperdível para refletir um pouco sobre o conflito (que nunca pára de nos assolar) entre nossos sonhos de sossego e nossos anseios de independência -conflito especialmente complicado, aliás, porque ele se repete dentro de cada um dos campos que nele se enfrentam: o amparo da dependência é também o porto seguro que (mesmo remoto e fantasiado) nos dá a força de continuar navegando para o largo, e não há liberdade sem a nostalgia de um lar que nos prenderia.

Como escreve Rufo: "Prender-se, desprender-se, voltar, sair novamente, encontrar, abandonar... Toda a nossa vida segue esse movimento permanente". E relacionar-se significa encontrar um mágico equilíbrio nesse movimento: "Cada qual precisa do outro para se construir e se conquistar, para se tranqüilizar às vezes, e para compartilhar momentos, idéias e desejos. O outro é precioso na medida em que representa uma abertura para o mundo".

Ou seja: a solução do conflito entre dependência e autonomia nunca é definitiva e é um paradoxo. Como é possível encontrar amarras que nos libertem?

Em suma, o conflito entre nossa necessidade de amparo e apego e, do outro lado, nossa sede de separação e independência é central na constituição de nossa subjetividade e continua crucial durante a vida toda. Sugiro um exemplo.

Em geral, atribuímos tanto os apaixonamentos quantos as separações de nossa vida amorosa ao outro, que se revela, segundo os casos, sublime, incompetente ou sacana. Ou então, às circunstâncias, facilitadoras ou infelizes. Mas talvez os percalços de nossa vida amorosa sejam decididos por uma luta que se trava dentro de nós e que pouco tem a ver com as qualidades e os defeitos do outro ou com as adversidades do mundo.

Talvez a gente se apaixone e se separe sobretudo conforme o ritmo do antigo e inesgotável conflito interno entre nossas aspirações de navegador solitário (a imagem é de Rufo) e nossa nostalgia de uma fusão na qual, enfim, poderíamos descansar de vez. Prova disso?

Primeiro, obviamente, pense nas separações, por assim dizer, "abstratas": aquelas que acontecem em razão de um surto irresistível de independência num dos dois ou em ambos e, inversamente, naquelas que são maneiras de manter o conforto de outro apego: "Gosto de você, mas me largue, porque você me leva para liberdade demais; prefiro ficar aqui no quentinho".

Logo, lendo o livro de Rufo, é fácil reencontrar as modalidades da ruptura amorosa na lista dos percalços das separações pelas quais a criança conquista sua autonomia: separar-se para não ser abandonado, separar-se para crescer e medir o alcance de nossa liberdade, separar-se para testar o outro, para verificar que ele não nos deixará por isso, e por aí vai.

É como se os altos e baixos de nossa vida amorosa fossem, antes de mais nada, a expressão de um conflito entre liberdade e apego que está em nosso âmago e nunca se resolve.

À primeira vista, muitos acharão essa idéia incongruente com sua experiência. Mas, antes de descartá-la, façam o seguinte. Depois de uma separação, quando os "erros" e as "falhas" do outro se afastaram um pouco na memória e começam a parecer irrelevantes, pergunte-se, por exemplo: "Mas, afinal, por que nós nos separamos?" Na maioria dos casos, a gente não sabe responder.

15 fevereiro 2008

Bigode de madame salva africano morrendo de sono

Na sexta-feira passada, o "The New York Times" publicou uma notícia tragicômica. A reportagem explicava como os bigodes das mulheres de classe média salvarão 300 mil negros africanos por ano. Explico.

A doença do sono é produzida por um parasita introduzido no sangue pela picada da mosca tsé-tsé: quando o bicho chega ao cérebro, o sujeito entra em coma. A doença voltou a ser endêmica na África Central, onde a mosca prospera entre guerras, fome, Aids etc. Segundo os Médicos Sem-Fronteiras, há 300 mil contaminados por ano.

Por sorte, no fim dos anos 70, foi descoberta a eflornitina, que cura até os pacientes já comatosos. Mas os negros africanos, com sua baixa expectativa de vida, suas doenças sexualmente transmissíveis e suas carteiras vazias, não são os clientes ideais da indústria farmacêutica. Acabou a esperança de que a eflornitina funcionasse também contra algum tipo de câncer -o que tornaria sua preparação rentável. A produtora decidiu parar a fabricação.

E os africanos? Pois é, problema deles. Não vale a pena produzir para um mercado pequeno e pobre. Nessa altura, um milagre: Gillette e Bristol-Myers Squibb lançam um novo produto para a remoção dos pêlos faciais: o creme Vaniqa, a base de eflornitina. A produção continuará.
Um encarte da "Cosmopolitan" de janeiro anuncia que, se algum bigode tiver que se intrometer entre duas bocas (de sexo diferente) que se beijam, melhor que seja o do homem. Graças aos milhões de mulheres que pagarão R$ 100 por um tubo de creme que dura um mês, 300 mil africanos a cada ano voltarão para a vida.

Não é uma prova da sabedoria da economia globalizada? Deve ser. Mas é penoso pensar que, se os bigodes femininos não fossem sensíveis à eflornitina, os africanos já estariam adormecendo para sempre.

Fiquei indignado, querendo a nacionalização das indústrias farmacêuticas: como podemos deixar que a saúde pública seja subordinada a lucros particulares?

Mas, se um gesto de vareta mágica abolisse a globalização e voltássemos para um mundo de indústrias nacionais, os africanos não teriam a menor chance -pois seus países não dispõem dos recursos necessários para descobrir ou produzir remédio nenhum. Mais desconcertante ainda: para os sujeitos da cultura ocidental moderna (ou seja, para nós), o maior incentivo é o interesse particular. O triunfo dos interesses privados sobre a solidariedade social é um corolário de nossa cultura que nunca conseguimos mudar por decreto. Por exemplo, se você estivesse doente à espera de que inventassem uma cura salvadora, gostaria que a pesquisa estivesse só nas mãos de agências públicas? Certo que não. Sonhamos com a solidariedade, mas, para obtermos resultados, contamos com a motivação do apetite de ganho.

Acalma-se um pouco a indignação. Não nacionalizaremos a indústria farmacêutica. Esperando uma mudança de cultura, fazer o quê? Console-se: o cinismo deste mundo organizado pelo jogo dos interesses particulares tem uma falha pela qual se insinuam sentimentos solidários. Veja só: não é um acidente que logo um creme contra os bigodes das madames salve 300 mil africanos. Entre os remédios mais vendidos e rentáveis há o Viagra, o Propécia, contra a careca, a coorte dos antidepressivos etc. Os fármacos que cuidam de nossa performance social são os mesmos que sustentam a indústria farmacêutica. Estamos sempre dispostos a gastar para o sorriso, a cabeleira, a ereção poderosa e agora o lábio glabro. Não é por vaidade. Cultuamos as aparências porque são cruciais: elas decidem nossa posição no mundo, nosso sucesso ou fracasso: triste e peluda para baixo, sociável e depilada para cima.

Mas esse culto das aparências nos torna vulneráveis: nosso cinismo não resiste à aparência da dor. É suficiente lembrar o espectro das vítimas da tsé-tsé para que produzir eflornitina se torne uma exigência moral. As madames exibirão seus lábios glabros em campanhas para angariar fundos contra a mosca e seu parasita.

Somos constituídos pelas aparências, por isso as aparências nos afetam. Nosso cinismo redime-se por ser hipersensível às primeiras páginas. É por isso que a ajuda às vítimas é a grande especialidade ética de nossa cultura. Não sabemos decidir o que é justo e o que é errado. Perseguimos sempre nossos interesses particulares, mas reagimos à visão de feridas abertas. Dito de maneira mais incômoda e mais próxima: só queremos arrasar, mas somos voluntários para ajudar as crianças de rua e abrigar os mendigos. Nosso senso moral é como nossas vidas: cosmético. Bom, melhor do que nada.

PS: O novo presidente americano, apresentando-se como um "conservador compassivo", talvez tenha definido um traço dominante da personalidade ocidental moderna. Talvez tenha achado também uma maneira aceitável de confessar que somos, geralmente, cínicos e mídia-sensíveis.

14 fevereiro 2008

Eleições americanas

No fundo, as eleições nos Estados Unidos são o melhor seriado do momento

Volto das férias com um caderno de notas sobre as eleições presidenciais norte-americanas. Escolho algumas.

1) Provavelmente, em novembro, o republicano John McCain enfrentará um dos democratas -Hillary Clinton ou Barack Obama. Segundo as pesquisas atuais, McCain/Clinton seria quase um empate, e Obama ganharia de McCain.

Torço pelos democratas, mas modero meu otimismo. O racismo, o machismo e o medo do que é diferente e novo são forças que trabalham na sombra.

Muitos eleitores declaram que votarão em uma mulher ou em um negro sem problema. Mas outra coisa é o que acontece no segredo da cabine eleitoral. O discurso conservador sabe instilar temor na massa da pequena classe média branca: "Mas você quer mesmo eleger uma mulher ou um negro como presidente?

Vamos deixar para outra vez?"

Funciona assim: você não tem quase nada a perder, não tem privilégio algum que valha a pena ser defendido, nada que justifique manter as coisas como estão. Mas, justamente, ao votar contra a mudança, você afirma que seu status merece ser protegido, ou seja, você se convence de que conquistou algo na vida que você não pode se arriscar a perder. O que é isso? Nada, apenas essa falsa convicção.

2) Hillary Clinton não é a candidata das mulheres. E Barack Obama não é o candidato dos negros (como foi Jesse Jackson em 1984 e 1988).

Quarenta anos após o movimento pelos direitos civis, uma mulher e um negro são candidatos à presidência sem que cor ou gênero sejam estandartes -ou seja, como cidadãos numa sociedade em que cor e gênero seriam "acidentes" que não implicam uma agenda específica.
Se isso é verdade, os anos 60 foram a verdadeira revolução bem-sucedida do século passado.

3) Obama, 46, é o único candidato que pertence a uma geração cuja visão do mundo não é o fruto direto nem da Guerra Fria, nem da Guerra do Vietnã, nem da contracultura. É lógico que ele tenha a simpatia da maioria dos jovens. Talvez seja por isso também que sua popularidade atravesse as fronteiras partidárias: Obama não enxerga o mundo como uma luta entre "eles" e "nós".

4) A viabilidade da candidatura de Obama prova a boa saúde do "experimento americano" (que é, entre outras coisas, o projeto de uma sociedade de imigração em que os cidadãos valem pelo que fazem, e não pelo que devem a seus antepassados). Obama é filho de um imigrante africano muçulmano e foi criado inicialmente na religião islâmica; seu segundo nome é Hussein. Alguns, pelos bares e pelas ondas de rádio do país, acham isso um disparate. Mas, para a metade dos americanos, no meio de uma guerra que é, no mínimo, apresentada como cultural, isso não constitui um empecilho. Você imagina, sei lá, os franceses elegendo como presidente, em 1939, um sujeito chamado Adolf, filho de imigrante alemão?

5) Não adianta zapear: as eleições norte-americanas são como a Copa do Mundo. Salvo que mesmo um jogo das eliminatórias, como o "caucus" de um Estado só, ganha a primeira página.
É óbvio que, pelo peso geopolítico dos EUA, as eleições norte-americanas acarretam conseqüências mundiais. Mas não é só isso que desperta o interesse da torcida internacional.
Faz um século que a realidade americana parece ser matéria privilegiada de romance ou de filme (aqui está, aliás, o fundamento da dita hegemonia hollywoodiana).

A razão é cultural e simples: o mito fundador do "experimento americano" é também a idéia do indivíduo que, ao tentar "fazer a América", é o único artífice de seu destino -bom ou ruim. E esse mito é uma matriz narrativa básica e inesgotável de nossa cultura.

Há os que podem contar suas vidas e os que não conseguem. Mas, de uma certa forma, o americano ideal, homem político ou mendigo perdido nas vinhas da ira, sempre vive sua vida e a conta para si mesmo como romance ou roteiro de aventuras.

As memórias de guerra de McCain serviram de roteiro para um telefilme, de 2005, que concorreu ao Emmy. Obama ganhou o Grammy de melhor álbum falado por seu livro de memórias, em 2005, e acaba de ganhar outro por seu segundo livro (neste ano, ele competia com os ex-presidentes Bill Clinton e Jimmy Carter). Hillary, verdadeira heroína do caso Lewinski, é autora de uma autobiografia de sucesso.

No fundo, as eleições americanas são o melhor seriado do momento.