27 outubro 2011

Teorias conspiratórias (e histéricas)




Uma conspiração, mesmo hostil, supõe um plano, uma ordem do mundo -e isso é sempre consolador



O protagonista do novo (e ótimo) romance de Umberto Eco, "O Cemitério de Praga" (Record), é um falsário do fim do século 19.
Você, emissário de sei lá qual governo ou grupo, quer fomentar o antissemitismo, provando que os judeus conceberam um plano diabólico de domínio do mundo? Devidamente contratado, o falsário criará "Os Protocolos dos Sábios de Sião", prova cabal de um complô judaico. O texto, uma vez "descoberto", alimentará o antissemitismo mundo afora, durante décadas.
Hoje, a tecnologia digital facilita o trabalho dos falsários, e, graças à internet, um boato se transforma rapidamente numa certeza coletiva. 
Mas, de qualquer forma, nunca foi muito árduo inventar conspirações ocultas e espalhar desconfiança e delírios segundo os quais os misteriosos "eles" estariam tramando na sombra. O fato é que o público adora uma teoria conspiratória. 
Ou melhor, sejamos sinceros: em regra, adoramos entender o mundo como fruto de conspirações que tentam nos enganar. Por que será?
Uma resposta está no livro (já clássico) de Elaine Showalter, "Histórias Histéricas" (Rocco, esgotado -tente www.estantevirtual.com.br).
Showalter lembra que, para negar a existência e o surgimento de desejos sexuais em seus corpos e almas, as histéricas começam por atribuir esses desejos aos outros ou, como se diz, por projetá-los nos outros. Logo, elas fogem dos ditos outros (que se tornaram zumbis portadores dos desejos delas) ou os acusam de seduções e estupros. 
Moral da história, a histérica pode dizer: 1) eu não desejo nada, sou e me mantenho pura, pois o sexo não vem de mim, mas dos outros, que querem me sujar e 2) eu sei quem o outro "realmente" é, sei quais desejos vergonhosos ele esconde atrás de sua aparência bem-comportada. Em suma, 3) posso negar que tenho desejos, não preciso me responsabilizar nem me envergonhar por eles e, além disso, pretendo saber desvendar o lado obscuro de qualquer um.
Desvantagem: assim fazendo, eu me afasto irremediavelmente de meu próprio desejo. 
E os homens, nessa história? Segundo Showalter, sobretudo hoje, a histeria dos homens aparece, justamente, na crença em teorias conspiratórias: as meninas acham que os outros querem seduzi-las e violentá-las, e os meninos acham que os outros querem enganá-los e manipulá-los.
(Antes de continuar, uma nota: pode ser que imaginar teorias conspiratórias e acreditar nelas seja uma forma de histeria masculina, mas isso não significa que as conspirações não existam. Ao contrário, como mostra o romance de Eco, sempre existe, no mínimo, a conspiração dos que constroem e espalham teorias conspiratórias.)
Mas voltemos à histeria dos homens segundo Showalter. Eis quatro vantagens para os que gostam de conspirações escusas.
1) Quem entende o mundo à força de "desvendar" conspirações só pode se perceber como uma exceção: ele acredita ser o único, ou quase, que enxerga as tramas nefastas dos outros -o único ou um dos poucos que "eles" não estão conseguindo enganar.
2) Com a ideia de que sempre há outros que tentam nos manipular e controlar, a gente se oferece uma volta à infância e à relação com os pais. Há um prazer nostálgico na suposição de que haja adultos os quais, num conluio entre si, decidem nosso destino, sem nos explicar nem de longe o que realmente acontece. 
Há um prazer nostálgico na ideia (infantil e pré-adolescente) de estarmos nas mãos de outros todo- poderosos e de sermos os únicos que, heroicamente, resistem à sua sedução e desvendam suas mentiras.
3) Uma hipotética conspiração, por mais hostil que ela nos seja, permite-nos confiar numa ordem do mundo -boa ou ruim. Se há intenções escondidas, nada ou pouco acontece por acaso, o mundo obedece a um plano -da divina providência, do demônio ou dos conspiradores, tanto faz: de qualquer forma, a existência de um plano é consoladora.
4) Para as histéricas, atribuir o desejo sexual ao outro é um jeito de negar sua própria sexualidade. 
Para os homens não é muito diferente: a invenção de uma conspiração maléfica lhes permite ignorar seus próprios desejos "políticos" sombrios, os que eles preferem esconder de si mesmos.
Afinal, o conspirador, ao qual atribuo a vontade de me enganar e manipular, é quase sempre uma projeção, ou seja, é minha própria criação, à imagem e semelhança de mim. 

20 outubro 2011

Fundamentos da moral




Você quer uma moral laica, inspirada pela razão? Pois bem, seus fundamentos serão frágeis (e engraçados)


Num belo dia de 1760 ou por aí, Denis Diderot recebe a notícia de que Jean-Jacques Rousseau desistiu de escrever o verbete "Moral" da grande Enciclopédia, da qual Diderot é um dos editores-chefes. A impressão do décimo volume da obra está parada na espera do texto. A solução é Diderot escrevê-lo, na hora, ao longo de uma tarde durante a qual várias circunstâncias colocam à prova, justamente, a moralidade do filósofo.
Essa é a situação apresentada na peça "O Libertino", de Eric-Emmanuel Schmitt, em cartaz até 27 de novembro no teatro Cultura Artística Itaim, em São Paulo. A peça foi adaptada e é dirigida por Jô Soares, com o brio alegre de uma farsa de Feydeau ou de uma comédia de Goldoni, e com um elenco particularmente feliz (a começar por Cassio Scapin, que é Diderot). Um provérbio latim diz que, rindo, a comédia critica os costumes. "O Libertino" nos leva não só a criticar nossos costumes, mas a examinar os frágeis fundamentos de nossas normas morais. Vamos com calma.
O evento apresentado na peça é uma ficção. O verbete "Moral", como quase um terço da Enciclopédia de Diderot e D'Alembert, foi escrito pelo cavalheiro Jaucourt, que redigiu sozinho mais de 17.000 verbetes, até merecer o apelido de "escravo da Enciclopédia". O cavalheiro era culto e sem brilho: o verbete "Moral" é um texto chato, com uma ou outra afirmação ousada -por exemplo, Jaucourt escreve que a moral é um investimento mais seguro do que a fé, porque um ateu virtuoso pode se salvar, enquanto não há salvação para um crente vicioso. Mas o que é virtuoso e o que é vicioso?
É fácil responder, se acreditarmos numa revelação divina. Mais complicado é fundar uma moral laica, inspirada pela razão. Jaucourt sugere apostar no número, notando que os povos civilizados concordam quanto aos pontos essenciais da moral, ao passo que podem discordar totalmente em matéria de fé religiosa. Talvez o aprimoramento mais recente do argumento de Jaucourt seja o de John Rawls. Em "Justiça como Equidade" (Martins Ed.), Rawls propõe que a gente aceite como normas sociais morais aquelas que aprovaríamos por unanimidade, caso todos nos esquecêssemos completamente de nossa etnia, de nosso status, de nosso gênero e de nossa concepção do bem. Essa amnésia fundaria nossa moral, pois, graças a ela, seriam aprovadas só as normas que servissem ao bem de todos. Laborioso, hein? Seja como for, as sugestões de Jaucourt e de Rawls valem sobretudo para a moral pública. Mas como se fundamenta a moral privada, que nos orienta na escolha do bem e do mal no dia a dia? Essa é a questão com a qual "O Libertino" nos faz rir e pensar. Na peça, Diderot está hospedado na casa do barão d'Holbach, por cuja filha (ótima Luiza Lemmertz) ele é seriamente tentado. D'Holbach era ele mesmo um contribuidor da Enciclopédia.
No seu "Sistema da Natureza", o barão avançava a ideia de que a virtude moral deveria estar ao serviço de nossa felicidade. Na peça, Diderot, escrevendo seu verbete, tenta adotar esse argumento, que d'Holbach desenvolvera até ao paradoxo: se um homem for feliz no vício (e não na virtude), de repente, o vício seria legitimamente sua moral. Problema.
O barão d'Holbach era ateu e materialista. Questão: se o homem é uma máquina sem alma, ele não tem liberdade de escolha, e, se ele não é livre, a própria ideia de moral perde seu sentido. Mais um problema.
Enfim, se você puder, assista à peça e se divirta. Se não puder, divirta-se imaginando como você escreveria o verbete "Moral" de sua enciclopédia pessoal -e lembre-se: você não tem o conforto de acreditar numa revelação divina e nem está convencido de que saibamos resistir livremente a nossos impulsos e desejos. 
Lembre-se também de escrever seu verbete numa tarde em que, como Diderot, 1) você é tentado pelo adultério, embora ame sua mulher, 2) você gostaria de seduzir a filha de um amigo, a qual tem a idade de sua filha, 3) você professa opiniões "avançadas", mas não quer que elas valham no caso de sua filha, 4) você é seduzido pelo charme de uma criminosa, a ponto de se perguntar se, no fundo, os valores estéticos não deveriam ser mais importantes que os valores morais (não se escandalize: há românticos e modernos para pensar exatamente isso). 
Mais uma coisa: se você for mulher ou tiver preferências diferentes das de Diderot, apenas mude o gênero no parágrafo acima.

17 outubro 2011

As fãs de Justin Bieber




Bieber é o "date" ideal para a idade em que "frisson" do sexo é tentar descobrir quem já beijou e quem não


Percorri autobiografia e biografia de Justin Bieber. Também brinquei com dois livros de jogos para as fãs do cantor testarem seus conhecimentos.
Continuo não fazendo a menor ideia de quem seja realmente Justin Bieber, mas constato que sua imagem é uma caricatura bom-mocista: o "date" com o qual os pais sonham para as primeiras saídas de suas filhas. Por isso mesmo, aliás, é curioso que ele suscite paixões avassaladoras entre as meninas.
Uma amiga, com quem comentei a febre Bieber, observou que, quando éramos adolescentes, os pais nunca gostavam de nossos ídolos do rock e do pop: aos olhos deles, eram influências que nos levariam à perdição.
Como eles aprovariam Elvis, com aquele rebolado que já era um ato sexual? E todos os que eram drogados, rebeldes, andarilhos do amor livre? E os Stones, juntando a lascívia de Elvis, a rebeldia e as drogas? 
E o figurino de Gene Simmons, do Kiss, hein? Entre os Beatles, os pais desconfiavam de John, George e Ringo, enquanto Paul era mais palatável. Engraçado, Paul era justamente aquele que encantava as meninas mais jovens -as que hoje adoram Justin Bieber. Ao longo dos anos, os pais não mudaram: eles continuam preferindo que as filhas gostem mais do modelo Justin que do Elvis. Tampouco mudaram os adolescentes propriamente ditos, que, hoje, acham Justin Bieber insosso, exatamente como nós o teríamos achado, quando adolescentes. Mas algo mudou, sim: chegou uma nova onda de consumidores (e sobretudo de consumidoras) de pop, mais jovens do que no passado.
A base dos fãs de Justin Bieber é composta de meninas entre 10 e 13 anos (cronológicos ou mentais), ou seja, meninas na fase na qual, aos olhos dos outros e delas mesmas, o corpo adquire novas formas e significações, que elas reconhecem como eróticas sem saber direito o que isso quer dizer (e ainda menos o que dá para fazer com isso). 
As meninas dessa idade são invadidas por sensações, fantasias e pensamentos que são enigmáticos para elas mesmas, mas cuja premência as leva a imaginar que elas (e só elas) conhecem na pele os frêmitos do amor e do desejo.
As meninas de nove anos podem achar Justin um pouco bobo. As de 14-15, também. Mas, para as que estão entre esses dois extremos, Justin é milagroso: ele responde ao confuso despertar de sentimentos de suas fãs, permitindo-lhes acreditar em sua maturidade amorosa sem que elas sejam ameaçadas pela brutalidade inquietante do amor e do erotismo adultos. Ele é o namorado ideal para a idade em que o "frisson" do sexo é discutir no MSN quem é ainda BV e quem não é mais (para quem não sabe: BV é boca virgem, que nunca beijou). Como Bieber consegue essa façanha?
Justin Bieber é para crianças. José Simão, na sua coluna na Folha, aproximou o cantor do Toddynho e do chocalho (ambos, em geral, apaziguam as crianças). O mercado confirma: os livros sobre Bieber estão na seção infantil das livrarias.
Agora, ele não pode ser completamente criança: sua imagem deve acarretar uma ponta de transgressão, em dose mínima, sem assustar, mas suficiente para cada menina acreditar que, por amar Justin Bieber, ela está, ousadamente, além dos adultos. 
No Google, procure fotografias de Justin Bieber e de Elvis de óculos de sol. O olhar escondido de Elvis dá arrepios, enquanto, digamos assim, os óculos de Bieber são parecidos com as novas sensações de suas fãs, mais obscuros do que escuros.
Enfim, graças a seu rosto infantil (redondo e bochechudo) e graças a uma produção cuidadosa (o incrível corte de seu cabelo), Justin é quase assexuado. As meninas podem sonhar com ele sem que nada as leve a fazer a preocupante descoberta de que elas não sabem quase nada do amor -e do sexo, menos ainda.
Só para sacanear, declarei a uma fã de Justin Bieber que eu acabava de ler, numa biografia do cantor, que, de fato, ele se chama Justino ou Giustino Biberoni e nasceu em Pindamonhangaba. Ela não achou graça. É que o ídolo deve ser familiar o suficiente para não assustar, mas deve também ser outro, bem estrangeiro. 
Afinal, é a ele que a menina pede para ser levada embora, longe daqui, longe deste lugar ao qual ela não pertence e onde ela é circundada por adultos que não entendem nada, porque, diferentes dela, eles não sabem nada do sexo, do amor e da paixão. 

06 outubro 2011

O sentido faz falta?




A gente procura um sentido para a vida somente quando o cotidiano perde sua graça e seu encanto



É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido -muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. Nas famílias, às vezes, essa queixa produz uma espécie de pingue-pongue. Os pais acham que os filhos adolescentes vivem por inércia, sem rumo e projeto: "Eles não estão a fim de nada que preste, não têm uma causa, uma visão de futuro".
Os filhos, confrontados com essa preocupação dos pais, declaram que, se precisassem mesmo de um sentido para viver, certamente não é com os pais que eles o aprenderiam: "Mas qual sentido gostariam que eu escolhesse para minha vida, se a vida deles não tem nenhum?". Nesse diálogo, o sentido parece ser sempre o que falta na vida dos outros que criticamos.
Também existem indivíduos (adolescentes e adultos) que se queixam da falta de sentido em sua própria vida: "Viver para quê? Todo o mundo vai morrer de qualquer jeito; que sentido tem?".
Geralmente, ao procurar responder a essas constatações desconsoladas, amigos, parentes e terapeutas agem como os pais que mencionei antes: querem injetar uma causa, uma visão de futuro na vida de quem lhes parece ter perdido o rumo "necessário" para viver.
Agora, eu não estou convencido de que, para viver, seja necessário que a vida tenha um sentido. Quando alguém se queixa de que sua vida é sem sentido, não tento interessá-lo em grandes razões para viver. Prefiro perguntar (para ele e para mim mesmo) de onde surge tamanha necessidade de um sentido. É curioso que, para alguns, a existência precise de uma justificação, de uma razão, de uma causa, de uma visão de futuro.
Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. Ou seja, é quando os gestos cotidianos perdem sua graça que surge a obrigação de fundamentar a vida por outra coisa do que ela mesma.
Nota clínica: a depressão não é o mal de quem teria perdido (ou nunca achado) uma grande razão para viver. Depressão é ter perdido (ou nunca encontrado) o encanto do cotidiano. Por consequência, tentar "curar" a depressão de um adolescente propondo-lhe militância política ou fé religiosa é nocivo: se a gente conseguir capturá-lo num grande projeto, esse mesmo projeto o afastará ainda mais da trivialidade do dia a dia, cujo encanto ele perdeu.
Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido.
A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (que não coincidem com as tradicionais divisões de esquerda vs. direita etc.): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc.), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).
Alguém dirá que, com o declínio das utopias políticas e algum avanço (talvez) do pensamento laico, o sentido da vida está em baixa. Em suma, eu estaria chutando um cachorro morto.
Não concordo: talvez a própria crise das utopias e de algumas religiões instituídas esteja reavivando uma espiritualidade que tenta sacralizar o mundo, prometendo, no mínimo, sentidos ocultos.
O esoterismo "new age" nos garante que a vida tem um sentido misterioso, que a gente nem precisa saber qual é. Melhor assim, não é? Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada -Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério".

O sentido faz falta?




A gente procura um sentido para a vida somente quando o cotidiano perde sua graça e seu encanto



É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido -muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. Nas famílias, às vezes, essa queixa produz uma espécie de pingue-pongue. Os pais acham que os filhos adolescentes vivem por inércia, sem rumo e projeto: "Eles não estão a fim de nada que preste, não têm uma causa, uma visão de futuro".
Os filhos, confrontados com essa preocupação dos pais, declaram que, se precisassem mesmo de um sentido para viver, certamente não é com os pais que eles o aprenderiam: "Mas qual sentido gostariam que eu escolhesse para minha vida, se a vida deles não tem nenhum?". Nesse diálogo, o sentido parece ser sempre o que falta na vida dos outros que criticamos.
Também existem indivíduos (adolescentes e adultos) que se queixam da falta de sentido em sua própria vida: "Viver para quê? Todo o mundo vai morrer de qualquer jeito; que sentido tem?".
Geralmente, ao procurar responder a essas constatações desconsoladas, amigos, parentes e terapeutas agem como os pais que mencionei antes: querem injetar uma causa, uma visão de futuro na vida de quem lhes parece ter perdido o rumo "necessário" para viver.
Agora, eu não estou convencido de que, para viver, seja necessário que a vida tenha um sentido. Quando alguém se queixa de que sua vida é sem sentido, não tento interessá-lo em grandes razões para viver. Prefiro perguntar (para ele e para mim mesmo) de onde surge tamanha necessidade de um sentido. É curioso que, para alguns, a existência precise de uma justificação, de uma razão, de uma causa, de uma visão de futuro.
Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. Ou seja, é quando os gestos cotidianos perdem sua graça que surge a obrigação de fundamentar a vida por outra coisa do que ela mesma.
Nota clínica: a depressão não é o mal de quem teria perdido (ou nunca achado) uma grande razão para viver. Depressão é ter perdido (ou nunca encontrado) o encanto do cotidiano. Por consequência, tentar "curar" a depressão de um adolescente propondo-lhe militância política ou fé religiosa é nocivo: se a gente conseguir capturá-lo num grande projeto, esse mesmo projeto o afastará ainda mais da trivialidade do dia a dia, cujo encanto ele perdeu.
Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido.
A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (que não coincidem com as tradicionais divisões de esquerda vs. direita etc.): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc.), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).
Alguém dirá que, com o declínio das utopias políticas e algum avanço (talvez) do pensamento laico, o sentido da vida está em baixa. Em suma, eu estaria chutando um cachorro morto.
Não concordo: talvez a própria crise das utopias e de algumas religiões instituídas esteja reavivando uma espiritualidade que tenta sacralizar o mundo, prometendo, no mínimo, sentidos ocultos.
O esoterismo "new age" nos garante que a vida tem um sentido misterioso, que a gente nem precisa saber qual é. Melhor assim, não é? Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada -Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério".