30 abril 2009

Crimes e pedras



Um crime de 1938 se transforma numa janela aberta sobre nosso mundo


DOMINGO, FUI até a rua Venceslau Brás, no centro de São Paulo, e procurei o número cívico 13. Sem sucesso: do lado ímpar, a rua começa no número 67, com o imponente prédio da Caixa Econômica Federal, completado em 1939. Talvez, no passado, houvesse um primeiro trecho onde hoje se prolonga a praça da Sé, do lado norte. Ou, então, a numeração mudou.

Fui lá porque passei um sábado especialmente feliz lendo o novo livro de Boris Fausto, "O Crime do Restaurante Chinês" (Companhia das Letras); aprendi assim que, em 1938, o restaurante chinês do número 13 da Venceslau Brás (ou Wenceslau Braz) foi o teatro de um crime que ocupou bastante a mente e a fantasia dos paulistanos. Na calada da noite, os donos (um casal de origem chinesa, que vivia nos fundos) e dois garçons (um lituano e um brasileiro, que dormiam em cima das mesas do restaurante) foram assassinados a golpes de mão de pilão.
Das narrativas que relatam crimes verdadeiros, espera-se que nos prendam irresistivelmente, como romances policiais, e que sejam fiéis aos fatos e aos documentos que os atestam: artigos de imprensa, arquivos da investigação policial, da instrução criminal e dos processos etc.

Para mim, até agora, o modelo dessas narrativas era "A Sangue Frio", de Truman Capote. Capote dialogou longamente com um dos assassinos de sua história e, à força de empatia (talvez involuntária), ele nos levou para uma viagem ao coração das trevas (as do criminoso e as do autor).

Boris Fausto, por ser um grande historiador, escolheu um caminho diferente, mas não menos empolgante: o crime, para ele, não é a ocasião para uma descida aos ínferos, mas uma janela que se abre sobre o mundo. 1938 é ano de Copa. É o tempo em que São Paulo se torna uma metrópole, com a variedade da imigração e seu corolário, o racismo. O Carnaval de rua já é pretexto para abandonar o trabalho. Numa aliança paradoxal entre o positivismo de Lombroso e a psicologia analítica, a psiquiatria tenta se fazer valer como ciência, a ponto de querer transformar suas perícias em provas jurídicas, como se testes e medições pudessem dizer quem matou e quem é inocente. E por aí vai.

Mas o que mais me tocou é que, ao me levar para um momento específico da história do Brasil, Boris Fausto me aproximou da sociedade e do lugar nos quais vivo.

Na tarde de domingo, como não achava o número 13 da rua Venceslau Brás, caminhei da rua do Carmo até à praça do Patriarca, pela rua Direita. Ao lado de um boteco, um homem me perguntou, sem mais nem menos, se eu não teria trabalho para lhe oferecer -como caseiro ou zelador, ele especificou. Ele era singularmente parecido com o acusado do "Crime do Restaurante Chinês".

Em suma, além do prazer da leitura, devo a Fausto um passeio pelo centro da cidade durante o qual, apesar da calmaria do domingo, ruas e prédios pareciam contar os encontros e os desencontros de inúmeras existências, passadas e presentes.

Não é para estranhar. Assim como a história não é só a de reinantes, generais e políticos, os monumentos de nossas cidades não são apenas os museus e os palácios, mas também os mocambos e os sobrados -esses, aliás, são o verdadeiro palco da festa e da miséria de viver.

Poucos meses atrás, estive de férias na Itália com dois adolescentes. Tarefa árdua, eu queria lhes ensinar a amar (teria dito John Ruskin) as pedras de Veneza. Os guias tradicionais não me ajudavam: por mais que tentasse, eu não conseguia juntar os preâmbulos históricos sobre doges, guerras e lutas intestinas com a descrição tediosa de igrejas, museus e monumentos.

Não pretendia instrui-los na história de Veneza e da arte veneziana. Queria apenas que eles topassem bater pernas o dia inteiro, e não por obediência resignada, mas por eles enxergarem e ouvirem, milagrosamente, a vida daquelas pedras.

No fim, encontrei dois guias peculiares (ed. Elzeviro), que existem em várias línguas, mas, aparentemente, só se vendem nas livrarias de Veneza. Um, "Leggende Veneziane", de Alberto Tosi, conta lendas urbanas e aparições de fantasmas, levando o leitor por itinerários sobrenaturais. O outro, "Nero Veneziano", de Claudio dell'Orso, conta 21 crimes brutais, antigos ou recentes, acontecidos em alguma casa ou palácio da cidade.

Ganhei a parada. As pedras de Veneza começaram a falar, e meus jovens amigos a escutar. Um dia destes, vou levá-los para a rua Venceslau Brás.

23 abril 2009

I love Susan Boyle

O vídeo tem a qualidade de um exemplo moral: sonhar pede coragem, resistência e seriedade


NA TERÇA-FEIRA, eu estava com minha coluna pronta (escrevo entre domingo e segunda) e, ao abrir o jornal, descobri que João Pereira Coutinho, neste mesmo espaço, também tinha-se apaixonado por Susan Boyle.

Tudo bem, não sou ciumento. Mesmo assim, por um momento, pensei escrever, na última hora, outra coluna. Mas, lendo Coutinho, percebi que a gente pode se apaixonar pela mesma pessoa por razões diferentes. Aqui vai.

Em poucos dias, dezenas de milhões de pessoas, pelo mundo afora, assistiram ao vídeo de Susan Boyle cantando "I Dreamed a Dream" (eu sonhei um sonho). Assistiram e choraram lágrimas comovidas.

Acesse a internet e veja uma das versões (por exemplo, www.youtube.com/watch?v=8OcQ9A-5noM). Se quiser mais, assista à entrevista de Susan Boyle à rede americana CBS, durante a qual Boyle canta um trecho da música a capela (watching-tv.ew.com/2009/04/susan-boyle-cbs.html).

Provavelmente, Susan Boyle gravará um CD, e o comprarei. Talvez, um dia, ela venha ao Brasil, e estarei no show, mesmo a preço de cambista. Mas nada disso se comparará com o momento extraordinário registrado no vídeo que está hoje no YouTube. Por quê?

Vamos com calma. Susan Boyle se qualificou nas preliminares para participar de "Britain's Got Talent" (a Grã-Bretanha tem talento), que é mais uma versão (inglesa) de "American Idol", o programa de televisão que começou nos EUA e foi repetido em vários países -no Brasil, "Ídolos", na TV Record. Trata-se, a cada ano, de premiar um cantor ou uma cantora, descobrindo novos talentos.

Na verdade, a seleção para chegar até à final talvez seja o que mais diverte as plateias, nos teatros de gravação ou em casa: o vexame da maioria dos concorrentes funciona como um bálsamo para todas as covardias que nos impedem de correr atrás de nossos sonhos. Algo assim: "Olhe o que aconteceu com quem ousou. Ainda bem que eu não fui!".

Susan Boyle entrou no palco como uma espécie de anticlímax; ela era tudo o que não se espera de uma aspirante a estrela: quase 48 anos, solteirona, desempregada, vestida (disse um amigo estilista) como a rainha Elizabeth se ela fosse pobre, "gordinha" e "feinha". Os diminutivos indicam que sua aparência não era extraordinária nem negativamente, mas a tornava transparente: aquela figura papel de parede, de quem ninguém se lembra se ela estava na festa ou não. Para completar, respondendo às perguntas de Simon Cowell (que preside o júri), ela pareceu quase tola e um tanto vulgar, balançando os quadris para dar mostra de sua juventude de espírito.

Quando Susan Boyle anunciou que seu sonho era ser cantora como Elaine Page (a inesquecível Grizabella de "Cats", em Londres, em 1981), o júri e a plateia não esconderam seu desdém.

Aí Susan Boyle começou a cantar. A performance foi propriamente incrível; por um instante, pensei que Boyle estivesse apenas mexendo os lábios enquanto tocava uma gravação: uma voz forte, limpa, segura e expressiva, fiel às emoções que se alternam ao longo das letras.

Também a música que Susan Boyle escolheu (letras de Alain Boublil) contribuiu para transformar sua performance numa espécie de exemplo moral: fala de um sonho antigo, sonhado quando "a esperança falava alto e a vida valia a pena", na época em que "os sonhos são criados, usados e desperdiçados"; mas há "tempestades" que "transformam nossos sonhos em vergonha", e, no fim, em regra, a vida massacra os sonhos que sonhamos. Então, qual é a moral da performance?

Para Coutinho, a moral é que, na vida, não basta se esforçar: é preciso ter sorte. Entendo assim: Susan, até aqui, não teve sorte, a gente se comove porque é tarde demais ou porque, enfim, o destino a encontrou em sua aldeia perdida.

Para mim, a moral é outra. Não sei se Susan teve sorte ou não. Cuidar longamente da mãe doente e cantar com os amigos no karaokê da vila é uma vida que pode valer a pena, talvez mais do que uma vida nas luzes da ribalta. O que me comoveu tem mais a ver com a coragem e a resistência de seu sonho.

Os entrevistadores da CBS perguntaram a Susan Boyle como ela conseguiu se concentrar e cantar, embora percebesse que o júri e a plateia não a levavam a sério e já estavam antecipando a zombaria. Ela respondeu, com simplicidade: "É a gente que tem de se levar à sério".

16 abril 2009

Lembranças traumáticas



Trauma não é uma lembrança muito forte; é um evento lembrado de forma insuficiente


O "NEW York Times" de 6 de abril passado publicou um artigo de capa sobre pesquisas recentes graças às quais, um dia, será possível "editar memórias indesejáveis" (por exemplo, Heida, Englot, Sacktor e outros, "Neuroscience Letters", vol. 453, nº 5).

Apesar dos progressos da neurociência, estamos longe de entender exatamente o que é a memória. Simplificando, uma lembrança parece depender de substâncias que constroem pontes entre células do cérebro, pontes silenciosas, mas que podem ser imediatamente solicitadas caso um evento venha a ativar uma das células. Por exemplo, se você for Proust, quando der uma dentada numa madeleine, você não vai apenas saber que já comeu uma madeleine no passado: o gosto do docinho vai circular por inúmeras pontes e despertar todas as células relacionadas com as experiências de sua infância em Combray.

Até aqui, pensava-se que uma centena de moléculas estivesse envolvida na construção dessas pontes entre células.

A nova pesquisa encontrou uma substância, a proteína PMKzeta, cujas moléculas, mais do que outras, constituem e fortalecem as ditas pontes que, uma vez ativadas, produziriam uma lembrança. A pesquisa operou assim: escolheu ratos que tinham aprendido (de maneira permanente) a evitar pequenos choques elétricos no chão. Logo, injetou, no próprio lugar da dita memória, uma droga, chamada ZIP, que inibe a PMKzeta. E eis que os ratos voltaram à estaca zero: agiam como se não conhecessem o terreno.

Em tese, se a coisa funcionar nos humanos, deveria ser possível consolidar as lembranças injetando no cérebro PMKzeta (ou estimulando sua produção). Imagine as aplicações possíveis na demência senil ou, simplesmente, no envelhecimento (sem contar que todos começariam a querer injeções de PMKzeta para melhorar a memória deles e a de seus filhos). Até aqui, tudo bem.

O problema está na outra aplicação possível da pesquisa. O articulista do "Times" se entusiasmava com a ideia de que, um dia, com injeções cerebrais de ZIP, poderíamos produzir o esquecimento das lembranças desagradáveis ou traumáticas -claro, se a gente dominar o processo com precisão (para esquecer uma briga de casal, você não quer, ao mesmo tempo, perder a lembrança de seu primeiro beijo). Essa atitude do articulista talvez seja (perigosamente) compartilhada por parte da comunidade científica; ela se funda na ideia de que um trauma seria uma lembrança que nos estorva por ser, ao mesmo tempo, excessiva e desnecessária. Vistas do consultório de um psicoterapeuta, as coisas não estão bem assim.

Primeiro, a ideia de que a lembrança do trauma seria desnecessária e descartável é problemática. Se você foi estuprado na infância, é provável que você tenha construído sua vida inteira ao redor da lembrança dessa violência sofrida. Imaginemos, por exemplo, que, desde então, a figura que dá sentido à sua vida seja a da vítima: suprimir essa lembrança com uma injeção significaria suprimir um dos alicerces de sua personalidade e de sua existência. O que sobrará de você sem aquela lembrança traumática?

Outro problema. Tudo indica que um trauma não é uma lembrança nociva por ser forte demais; ao contrário, em geral, ele é um evento mal lembrado ou lembrado de maneira insuficiente. Mesmo caso: você foi estuprada quando criança; em muitos casos, essa experiência é traumática porque é lembrada SÓ como uma violência penosa que você sofreu. Você não memorizou, por exemplo, sua satisfação em se sentir objeto da atenção de um adulto ou mesmo sua descoberta culpada de emoções e sensações que lhe eram, até então, desconhecidas. O fato de reativar essas lembranças não desculpa o adulto estuprador, mas, para você que sofreu a violência, o sentido da experiência passada muda bastante; talvez não lhe seja mais necessário se conceber para sempre como vítima da vida.

Em suma, a solução do trauma não consiste em apagá-lo, mas, ao contrário, em lembrá-lo melhor. Se quiséssemos usar a técnica da pesquisa citada, eu sugeriria, no lugar onde o trauma está registrado, injeções de PMKzeta para ajudar a memória, não de ZIP para apagá-la.

O tempo das injeções cerebrais nos prontos-socorros ainda está longe. Mas não é cedo para notar que a cura das experiências penosas de nossa vida não está no esquecimento, mas no esforço para se lembrar delas em toda sua incômoda complexidade.

ccalligari@uol.com.br

09 abril 2009

Chávez com nhoque



Para o "discurso de nhoque", nada de bom pode acontecer sem uma renúncia penosa


NUM DOMINGO ITALIANO do fim dos anos 50, minha família estava reunida para o almoço. Minha avó materna servia nhoque feito em casa. Detalhe: nos anos 30 e sobretudo durante a guerra, meu avô materno não tinha sido fascista militante, mas tampouco ele tinha resistido. Ele fora passivo e um tanto gregário, enquanto meu pai, liberal e social-democrata, tinha encarado o inimigo.

Essa diferença, em geral, não produzia faíscas, mas, naquela ocasião, meu avô, descontente com o governo da época, esboçou uma pequena lista dos "benefícios" do fascismo: vantagens trabalhistas, sindicatos corporativos, grandes obras, saneamento da planície do sul do Lazio (a região de Roma). Pena, ele acrescentou, que isso tivesse nos levado à guerra e à aliança com a Alemanha nazista. Houve um silêncio consternado dos meus pais, que forçou meu avô a continuar a enumeração dos custos de tamanhos "benefícios".

Mastigando nhoque, ele resmungou alguma coisa sobre a aventura africana, a censura, a prisão e o confinamento dos opositores, as leis raciais etc.. Meu pai perguntou: "E, para sanear pântanos e instituir sindicatos, era preciso tudo isso?". A pergunta pairou no ar, sem resposta. O nhoque, ao se desfazer em nossa boca, ficou pastoso e chocho. Desde então, em meu vocabulário íntimo, a expressão "discurso de nhoque" designa toda conversa que salienta os benefícios de um regime e silencia ou minimiza seu lado sinistro, com o pressuposto de que o lado sinistro seja um custo "necessário".

Nos anos 60, pratiquei bastante o discurso de nhoque. Militante de esquerda, assolado pelas notícias sobre a falta de liberdade do outro lado da "Cortina de Ferro", eu geralmente respondia: "Liberdade de quê? De morrer de fome?" -como se a liberdade fosse o preço que se paga normalmente para poder comer. À força de viajar pelos países do bloco socialista, percebi que, quase sempre, o discurso de nhoque é a fala do turista, que vai voltar sem problemas para seu país. Quem paga seu pão com a renúncia a poder viajar, expressar-se, reunir-se etc., em geral, perde a fome. Gostei cada vez menos do discurso de nhoque.

Chego a um almoço de alguns dias atrás. Por fatalidade, um amigo trouxera uma iguaria: nhoque recheado. Nhoque vai nhoque vem, dois comensais começaram a falar de Hugo Chávez e dos "benefícios" de seu regime. Como era de esperar (considerando o que estava na mesa), foi em tom de nhoque: claro que há o que dizer sobre a truculência de Chávez, mas olhem para os benefícios! Mais uma vez, como se fosse "normal" que os benefícios se pagassem pela truculência.
Ora, vivemos dias interessantes: pelo mundo afora, discute-se sobre a sociedade que queremos. E talvez, à força de errar, a gente tenha aprendido a pensar além da alternativa simplista entre, de um lado, a liberdade absoluta dos agentes econômicos e, do outro lado, o "Estado forte". Hoje, em tese, sabemos que, para evitar a maracutaia financeira, não é necessário que os agricultores sejam impedidos de vender livremente suas batatas no mercado da vila (estou exagerando? Pergunte aos pequenos produtores cubanos). Reciprocamente, para evitar a opressão do Estado e dos "partidos únicos", não é necessário recusar assistências e garantias coletivas (estou exagerando? Pergunte aos milhões de norte-americanos sem seguro médico).

Mas continua grande a tentação do discurso de nhoque, pelo qual nada do que queremos pode acontecer sem a contrapartida de uma renúncia penosa. Daqui a pouco, um economista da Goldman Sachs nos explicará que, para sair da crise, precisamos aceitar um partido único de tipo chinês. De onde vem a força do discurso de nhoque? Freud observou que, quando se trata de reprimir nosso próprio querer, sempre tendemos a reprimir muito mais do que é preciso.

Por exemplo, estou a fim de transar com todo o mundo, mas também quero ser um marido ou uma esposa fiel? Pois é, desisto do sexo de vez, entrando num convento. Ou, então, estou cansado da insegurança nas nossas ruas; para facilitar e garantir o policiamento, topo que todos sejamos presos e vivamos numa prisão. O que fazer contra o discurso de nhoque? A receita é dos anos 60.

Não acredite nas alternativas excludentes (pão OU liberdade) e peça alegremente o "impossível": pão COM liberdade. Não se preocupe: na maioria dos casos, entre os dois, não há contradição alguma.

02 abril 2009

Cinema na escola



A primeira tarefa do crítico é a de permitir que a obra entre na vida do leitor e a transforme


TEMPOS ATRÁS , neste espaço, eu estranhei que o cinema não fosse matéria escolar: os alunos, pelo mundo afora, devem aprender a ler e a apreciar as artes e a literatura (incluindo o teatro -reduzido ao texto), mas não o cinema.

Talvez seja por alguma sisudez dos pedagogos que escolhem programas e objetos de estudo: "O cinema diverte? Então, divirtam-se; a escola não tem nada a ver com isso", como se o prazer das massas implicasse o escasso valor cultural dos "produtos".

As próprias artes e a literatura parecem estar no "panteão" das matérias escolares à condição que os alunos renunciem ao "barato" de ler e de olhar. Por sorte, sempre há professores que contaminam os alunos com seu próprio prazer na fruição de literatura e arte. Mas eles são exceção: em geral, o prazer é esmagado pelo peso da história literária (frequentemente transmitida sem uma relação viva com a história das ideias e dos homens) e de uma análise, dita "crítica", que teima em excluir o essencial da experiência do leitor, ou seja, o fato de que, lendo, ele transforma sua experiência de si mesmo, dos outros e do mundo. Por exemplo, durante o secundário, meu professor de literatura conseguiu me tornar quase impossível a leitura (obrigatória) de "Os Noivos", de Manzoni, que é (descobri depois) um grande romance. Em compensação, meu professor de grego, embora tivesse de nos ensinar a língua junto com sua literatura, transformou a "Odisseia" em parte do nosso mito pessoal. Com ele, a gente se apropriou de um patrimônio de experiências que mal poderíamos viver numa vida inteira. Quem nunca viajou soube o que é a nostalgia de Ítaca, e quem viajou viveu aquela nostalgia mil vezes mais intensamente.
Foi publicado recentemente, aliás, um pequeno livro de Tzvetan Todorov, "A Literatura em Perigo" (Difel), que recomendo a todos os que ensinam. Todorov, que foi um dos pregoeiros do formalismo na análise literária francesa, constata o fracasso do ensino da literatura e propõe que, antes de formar críticos, a gente forme leitores.

Mas voltemos ao cinema. Uma boa notícia não faz mal: no Estado de São Paulo, começa agora o programa "O Cinema Vai a Escola" para o ensino médio. Os educadores já receberam uma primeira caixa com 20 filmes em DVD (outra virá) e dois volumes do "Caderno de Cinema do Professor" (um terceiro também chegará mais tarde). O primeiro lote inclui o DVD "Luz, Câmera... Educação", que mostra um pouco os artifícios e recursos do cinema, mas o projeto do programa aparece sobretudo no primeiro caderno dos professores. Trata-se de um guia para conversas possíveis com os alunos, depois de cada filme. Sem esquecer completamente a análise da linguagem cinematográfica e a história do cinema, o acento é sobre a relação de cada filme com questões que podem surgir em outras disciplinas ou, simplesmente, na vida dos alunos: problemas, dramas e dilemas que são, no fundo, cotidianos.

Ou seja, a intenção é a de enriquecer a experiência cinematográfica dos alunos, não para que jubilem ao reconhecer, em cada cena, planos abertos e planos fechados, mas para que possam, graças aos filmes aos quais eles assistem, tornar sua existência mais complexa e mais intensa. Talvez alguém se queixe de que não há, no novo ensino, teoria e história suficientes ou que ele não transforma os alunos em críticos. Respondo assim.

Na faculdade, fui aluno de alguns grandes professores de literatura (J. Starobinski, J. Rousset, G. Steiner, R. Dragonetti, R. Barthes). Cada um de seu jeito, eles me ensinaram a analisar um texto, mas a razão de minha gratidão por eles é outra: todos confirmaram meu amor pela ficção, porque todos entendiam que a primeira tarefa do crítico é a de se deixar seduzir pela obra e, com isso, ajudar o leitor a permitir que a obra entre na sua vida e a transforme. Havia, na faculdade, uma exceção: um professor (de novo, de literatura italiana) que parecia medíocre, e talvez fosse mesmo. Ele sabia pouco ou nada de teoria crítica, não analisava os textos, apenas declamava longos trechos das obras e, emocionando-se, contava casos de sua vida nos quais a leitura daquela obra o tinha ajudado a viver.

Ruim? Pode ser. Mas o fato é que ele também nos dava uma vontade danada de ler os livros que trazia para a aula. Desejo que o mesmo aconteça com o cinema nas escolas de São Paulo e, quem sabe, do resto do Brasil.

ccalligari@uol.com.br