28 dezembro 2006

Doutrina, lei e consciência



Decidir em nosso foro íntimo é quase sempre melhor do que inventar leis e doutrinas

EM 1870, morreu George Holland, um ator de origem inglesa, que morava em Nova York na pobreza. Naquela época, muitas igrejas se negavam a oferecer ritos religiosos ao corpo dos atores, que eram considerados párias: uma casta de perdidos.

Na hora de enterrar George Holland, portanto, os amigos e os filhos encontraram sérias dificuldades, até que alguém lhes assinalou (com um certo desprezo) uma "igrejinha atrás da esquina, que talvez topasse essas coisas". Era uma igreja anglicana, que ainda existe, em Nova York, na rua 29, entre a Quinta Avenida e a Madison.

Assim, logo antes do Natal de 1870, o reverendo George Hendric Houghton celebrou o funeral de George Holland, e a "igrejinha atrás da esquina" se tornou, desde então, o refúgio preferido dos atores da Broadway -e dos atores em geral.

Depois do Natal (bem nesta época do ano, 136 anos atrás), a imprensa americana levou a questão para a opinião pública, que, em geral, aprovou o ato do reverendo.
Há quem diga que a generosidade de Houghton fosse uma conseqüência de sua paixão pelo teatro. Essa suposição o torna ainda mais simpático, mas tudo indica que sua motivação era mais ampla.

Houghton não era homem de se orientar pela opinião dos demais nem por doutrinas estabelecidas.

Durante a Guerra de Secessão americana, ele tinha abrigado escravos fugitivos. Mais tarde, fundou a primeira escola dominical para negros. Também ele instituiu uma prática (que se popularizou um pouco): na janela de sua paróquia, colocou uma vela que queimava a noite inteira e, na porta, uma campainha, para assinalar que, na necessidade, era sempre possível procurar ajuda na casa de Deus.

Pois bem, para enterrar George Holland, Houghton não pediu a autorização de ninguém. Não se preocupou com a doutrina oficial de sua congregação em matéria de atores.
É verdade que a Igreja Anglicana, em geral, não promove doutrinas de cima para baixo, mas aposto que, mesmo se ele fosse padre católico, Houghton não agiria diferente: decidiria segundo sua consciência.

Seu moto pessoal era uma citação de Terêncio (um autor, que, além de escrever comédias, não podia ser cristão por ter nascido bem antes de Cristo): "homo sum: humani nihil a me alienum puto", sou homem, nada do que é humano me é alheio.

Nestes dias, em Roma, a Igreja Católica recusou o enterro religioso a Piergiorgio Welby, um italiano que sofria de distrofia muscular progressiva, vivia paralisado há dez anos e, quando a doença lhe retirou a própria possibilidade de falar, quis que seu médico desligasse o respirador artificial. Como relatou a reportagem da Folha no dia do Natal, o papa (que não se opôs ao funeral religioso de Pinochet) achou bom se pronunciar nesse caso e declarou que "o nascimento de Cristo nos ajuda a tomar consciência do que vale a vida de todo ser humano, desde seu primeiro instante até seu declínio natural".

É um bom exemplo de como a "autoridade" permite qualquer distorção. É claro que o nascimento de Cristo celebra a vida (como todos os nascimentos), mas é meio capenga escolher o Cristo como exemplo de valorização da vida acima de tudo. Afinal, o Cristo, que eu saiba, não fugiu de Jerusalém para salvar a pele, mas ficou encarando o suplício porque pensava, por exemplo, que sua missão valesse mais do que sua vida.

Fora esse detalhe, não sou "a favor" da eutanásia nem "contra" ela. Assim colocada, a alternativa não me interessa, pois tenho a maior dificuldade em ser "contra" ou "a favor" quando se trata de generalidades. Ou melhor, sou quase sempre contra quem legisla abstratamente: a eutanásia não pode (e o ditador assassino e corrupto pode, porque o caso não está no livro).

Teria preferido que, no caso da morte de Piergiorgio Welby, não houvesse debate, apenas um padre que ouvisse o pedido da mãe, considerasse as circunstâncias da vida de Welby e fizesse seu dever ou, então, se assim ditasse sua consciência, rejeitasse o pedido e encaminhasse os familiares a um outro padre, sem fazer disso um tema de discussão, sem pedir que alguém, de cima, legislasse. Por quê?

Porque nossa capacidade de decidir, em nosso foro íntimo, o que é justo e o que é errado é infinitamente maior que nossa capacidade de inventar leis e doutrinas que respeitem a singularidade das vidas concretas.

Um bom começo de ano a todos.

25 dezembro 2006

É Natal

Os primeiros Natais de minha infância foram momentos encantados. Ou, ao menos, é assim que me lembro deles.

No dia 24, de tarde, cada escrivaninha e console da casa era levado para a sala de jantar e servia para encompridar a mesa, de maneira a acomodar os 20 e tantos familiares e amigos de sempre. Logo começava a preparação do peixe. Meu irmão e eu ajudávamos meu avô na tarefa selvagem de tirar a pele das enguias, que eram o prato tradicional e que nenhum de nós gostava de comer. Antes de ir para a cama, nós, as crianças, preparávamos, perto da árvore, uma mesinha: um copo de vinho branco, um prato com uma fatia de bolo e um pequeno guardanapo. No chão da entrada, colocávamos uma bacia com água e outra com duas ou três cenouras. O bolo e o vinho eram para o menino Jesus. A água e as cenouras eram para a mula que o carregava.

Acordávamos de madrugada, pela ânsia de ver os presentes e de constatar a mágica passagem do menino Jesus. A casa estava deserta, os presentes brilhavam embaixo da árvore, o copo de vinho tinha sido em parte (só em parte) bebido, a fatia de bolo tinha sido mordida, assim como as cenouras. Havia, sempre, em algum lugar do corredor, uma poça: a mula, coitadinha, tinha feito xixi. Da porta de entrada até a árvore, espalhava-se um rasto de folhas e pétalas de flores, que, aparentemente, o menino Jesus deixava atrás de si, por onde passasse.

Não sei por que, na nossa família, era o menino Jesus, e não Papai Noel, que trazia os presentes. A coisa era ainda mais curiosa por meu pai ser declarada e ferozmente ateu. E minha mãe o acompanhava.

Menino Jesus ou não, era bom fazer de conta: o ritual era um segredo de família que celebrava o milagre de estarmos juntos. Também era um alívio constatar que nem todos os presentes vinham de meus pais. E era gostoso acreditar numa certa benevolência do mundo ou de seu criador: havia ao menos um dia no ano em que, indo para a cama cedo e forçando-se a fechar os olhos, alguém, no meio da noite, faria o necessário para que acordássemos felizes.

Houve Natais em que o encanto se perdeu. Num deles, bem perto da meia-noite, morreu de repente o pai de meu melhor amigo. Meu pai saiu correndo com sua bolsa de médico; a festa parou. Nós descobrimos que, às vezes, não só a mula, mas o próprio menino Jesus se esquecia (de alguém, no caso). Os presentes, na manhã seguinte, estavam lá; mas eu não sabia o que fazer com eles. Também estava lá Alessandro, meu amigo do peito, órfão.

E houve outros Natais em que explodiram brigas de família incompreensíveis (para nós). Um tio que saiu batendo a porta porque não gostou do lugar que sua mulher ocupava na mesa ou uma nora que não se dava com a sogra. Esperávamos demais e, à força de querer (e simular) harmonia para a família e o mundo inteiro, vivíamos decepções fellinianas se algum detalhe atrapalhasse o cartão-postal natalino.

Mais tarde, chegaram os anti-Natais da adolescência. Eram proclamações indignadas contra a família. Valia qualquer coisa para contrariar o espírito dos Natais da infância: Natal numa boate? Natal num prostíbulo? Natal jogando pôquer num boteco?

Ou, então, eram proclamações políticas: Natal numa célula de militantes, Natal com amigos e companheiros, sem festa, sem árvore e cheio de conversas sobre as armadilhas "alienantes" do consumo.

Alguns anos atrás, no dia 25, acordei muito cedo, embora soubesse que ninguém viera, no meio da noite, depositar presentes embaixo da árvore. O apartamento estava deserto, todos dormiam ainda. Atravessei a sala assim como costumo dormir, de camiseta, sem pijama. Olhei com carinho para os restos do jantar da noite anterior e liguei a máquina do café. Não sei por que, achei graça enfiar na cabeça um chapéu de Papai Noel que estava em cima da mesa. Logo fui buscar o jornal na porta de casa, caso ele já tivesse chegado.

Por precaução pudica e por preguiça de vestir uma calça ou mesmo uma cueca, tentei inventar um jeito de apanhar o jornal sem impor minha nudez aos (improváveis) vizinhos que estivessem circulando pelo prédio às 6h do dia de Natal. Ajoelhado, abri a porta e estendi o braço; o jornal estava lá, mas longe demais. Insinuei o ombro na abertura, mas não bastou. Avancei mais, sempre ajoelhado, até que, empurrado pela própria porta, que é comandada por uma mola que a fecha automaticamente, estava mais fora do que dentro do apartamento. Por sorte, o batente não fechou atrás de mim. No instante em que, enfim, coloquei a mão no jornal, escutei um barulho. Levantei os olhos: bem na minha frente, um vizinho, também ajoelhado e seminu, era vítima da mesma manobra. Ficamos imóveis um longo momento, até que, de jornal na mão, desejei-lhe "feliz Natal" e recuei.

Cinco minutos depois, sentado contra a porta fechada do meu apartamento, ainda estava rindo, constatando que, durante esse estranho encontro, ficara não só meio nu, de camiseta, mas também de chapéu de Papai Noel.

É um bom retrato de meus Natais de hoje. O chapéu representa uma certa fé no ritual que afirma a permanência dos afetos familiares e das amizades, mas sem esquecer que o espírito de Natal não ganha das notícias do dia (o jornal na mão) nem dos desejos que nascem abaixo da cintura (às vezes estamos sem cueca).

Feliz Natal a todos.

21 dezembro 2006

Mudar de gênero

Projeto de lei nova-iorquino reconheceria a todo cidadão o direito de mudar de gênero

ATÉ ESTE começo de dezembro, tudo indicava que o conselho de saúde pública (Board of Health) da cidade de Nova York aprovaria uma lei autorizando qualquer cidadão a mudar de gênero em sua certidão de nascimento e, conseqüentemente, em todos os seus documentos.
Bastaria pedir: não seria necessário comprovar que o sujeito tivesse mudado seu sexo anatômico por uma cirurgia ou alterado seu corpo pelo uso de hormônios. Não seria sequer exigido que ele se vestisse e vivesse habitualmente como uma pessoa do sexo oposto ao seu.

João, de terno e bigode, poderia se apresentar no escritório previsto e pedir para se tornar oficialmente mulher. Inversamente, Maria, de saia e cabeleira, poderia pedir para tornar-se oficialmente homem.

O projeto de lei parece extremo e, de fato, foi objeto de gozações ("Se eu não gostar, posso mudar de novo? Quantas vezes no ano?"). Mas, a bem da verdade, ele era adequado, por duas razões.

A primeira é que nenhum sujeito pediria a mudança administrativa de seu sexo se a questão não fosse, para ele, mais que séria: vital. A segunda é que, hoje, o estado de nossa ciência, biológica e psicológica, não permite mesmo que um conselho de especialistas (por mais bem escolhido que seja) assuma a responsabilidade de autorizar ou proibir uma mudança administrativa de sexo.

Nessas condições, respeitar a palavra do sujeito interessado é, muito provavelmente, o caminho em que menos se erra. Mas, antes de mais nada, algumas explicações. Há sujeitos ("transgêneros") que sofrem porque seu sentimento profundo de pertencer ao sexo masculino ou feminino não corresponde à sua anatomia. Em número mais ou menos igual para cada sexo, há mulheres que se sentem homens e se vivenciam como homens, e há homens que se sentem mulheres e se vivenciam como mulheres. Ambos são cativos de corpos que lhes parecem estrangeiros.

Quantos são? As estatísticas oscilam absurdamente: entre um sujeito em cada mil e um sujeito em cada 100 mil. Por que existe tamanha variação? A categoria dos transgêneros pode ser delimitada de maneiras muito diferentes: ela pode incluir desde sujeitos (raríssimos) que nascem com os atributos sexuais de ambos os sexos até sujeitos (muito numerosos) que, esporadicamente, sentem a necessidade de vestir a roupa do sexo oposto - passando pelos sujeitos que modificam (mais ou menos radicalmente) seu corpo para que corresponda a seu sentimento de identidade.

Para complicar a tarefa dos pesquisadores, existem transgêneros "primários", em quem a discordância entre sexo anatômico e sentimento de identidade se manifesta desde a infância, e transgêneros "secundários", em quem a discordância se manifesta ou se agudiza na idade adulta (às vezes avançada).

Seja qual for o número de transgêneros no mundo, em sua grande maioria (90%, as estatísticas concordam) eles residem nas grandes cidades, onde o anonimato permite mais facilmente viver num gênero diferente do que figura nos documentos e é mais fácil encontrar possibilidades de inserção social (sempre tristemente escassas).

Fato de difícil compreensão para os "normais": os problemas de identidade de gênero não correspondem a uma orientação sexual específica.

Um grande número de transgêneros (a metade deles, segundo algumas estatísticas) eram e continuam sendo heterossexuais, ou seja, eram homens que desejavam parceiras mulheres ou mulheres que desejavam parceiros homens: ao mudarem de gênero, eles não alteram seu desejo e se tornam, de uma certa maneira, homossexuais.

Pois bem, a lei proposta pelo conselho nova-iorquino foi retirada. A proposta suscitou, obviamente, protestos "morais", fruto da ignorância de quem confunde um drama do sentimento de identidade com alguma forma de libertinagem. Mas, sobretudo, apresentaram-se problemas práticos ("New York Times" de 6/12): por exemplo, o que aconteceria com transgêneros que tivessem mudado de sexo administrativamente e que, por alguma razão, fossem presos? Iriam para uma penitenciária masculina ou feminina? E nos hospitais, como seria?

Essas objeções fazem sentido, mas revelam quanto nosso mundo é segregado pela diferença sexual. Homens à esquerda, mulheres à direita. Quem não se enquadra, que se vire.
O Natal é sempre um bom momento para pensar em quem tem uma vida especialmente difícil. Boas festas a todos.

14 dezembro 2006

"Inocência" e as mesas de bar

Se não sabemos mais sonhar com a vida como deveria ser, podemos abraçá-la como ela é

NO SÁBADO passado, em São Paulo, fui para o Espaço dos Satyros, na praça Roosevelt, e assisti a "Inocência", de Dea Loher, com direção de Rodolfo García Vasquez. A peça fica em cartaz até o dia 18 e volta em janeiro. A montagem é surpreendente pela elegância das soluções cênicas e pela performance de todos os atores.

O texto de Dea Loher é uma meditação (teatral e engraçada: nada de longos discursos) sobre a idéia, própria aos nossos dias, de que a vida não faz sentido. Misteriosamente, a montagem dos Satyros opera um pequeno milagre: ela revela, no pouco sentido do mundo, mil razões para amar a vida. Nisso, ilustra uma moral que aprecio muito: talvez não consigamos mais sonhar com a vida como deveria ser, mas podemos abraçar a vida como ela é.

Na saída do teatro, é de praxe parar numa mesa de bar naquele trecho da praça Roosevelt (escolha entre o espaço dos Satyros, o dos Parlapatões e o bar-antiquário Papo, Pinga e Petisco). A animação da rua responde à inquietude levantada pela peça: talvez a vida não faça sentido, mas nos resta viver. No mínimo, resta-nos a mesa do bar.

Sei que é pouco: a quem se sente abandonado pelas grandes causas comuns, a mesa do bar e sua conversa parecem pálidos reflexos da sociedade desejada. Mas, filosofando: se, por falta de transcendências, devemos encontrar sentido na imanência, é melhor se acostumar a dar relevância às coisas pequenas de cada dia.

Na mesa do bar, a gente dá "uma relaxada": encontra, na facilidade do convívio (ou do "convício", entre cigarros e cervejas), um amparo contra as frestas e falhas mais dolorosas. Considere seus companheiros de mesa: todos parecem espirituosos e bem-humorados.

Mas há um que, uma vez de volta em casa, perseguirá, solitário, na internet, fantasias sexuais que ele nunca se permite viver; há o casal que se deitará sem se abraçar; há outro que não quer ir embora porque a perspectiva da solidão o desespera; há outra que consegue ironizar uma perda cuja lembrança, quando ela estiver sozinha, de novo a arrasará. E por aí vai.

Não se trata de um "fazer de conta": existe uma divisão subjetiva sem a qual viver seria difícil. Já imaginou um dia inteiro na intensidade alarmante de um diálogo com seu melhor amigo, com um terapeuta ou até consigo mesmo, numa noite sem sono?

A única dificuldade com as mesas de bar é que, às vezes, o amparo se dá às custas dos ausentes, a torcida do "outro" time, os "veados", os negros, etc. (a mesa de bar pode ter uma proximidade perigosa com as mesas da infausta cervejaria onde começou o nazismo).

Mas, fora isso, as mesas de bar e as rodas de padaria são uma modesta e frágil presença da vida social concreta: elas mantêm, ao menos, a ilusão de que os outros existem para nós e nós existimos com eles. Falando em mesa de bar, na esquina de meu consultório tem um café, que, até pouco tempo atrás, tinha três mesinhas na rua. Era o lugar onde eu almoçava; era também o lugar onde as pessoas do bairro se encontravam, e a conversa rolava ao lado da banca de jornais, na frente do ponto de táxi.

Ali, vendedores ambulantes paravam entre as mesas. Meninos e meninas de rua pediam aos clientes um refrigerante e um salgado. Em suma, casas e apartamentos se prolongavam para um pouco além das portas trancadas.

Um belo dia, veio um caminhão da prefeitura; disseram que a ocupação da calçada não era legal e levaram embora (triste troféu) as mesinhas e as cadeiras de metal branco. "Quer regularizar? Faça um toldo retrátil novo." Custo: R$ 10 mil, impossível para o café da esquina.

Acho ótimo regulamentar o uso das calçadas. Mas governar, ao meu ver, deveria ser a arte de estimular a (frágil) comunidade que existe. Fazer o quê, deixar tudo na bagunça? Não, mas um funcionário da prefeitura poderia ter chegado no café da esquina (e em centenas de outros bares da cidade) e dito, por exemplo: a gente vai tornar São Paulo mais bonita, é preciso regularizar os toldos, a administração previu sua dificuldade e obteve um empréstimo do BNDES. Você vai poder pagar seus R$ 10 mil ao longo de cinco anos, a juros razoáveis.

Para que isso acontecesse, teria sido suficiente que os governantes pensassem primeiro na vida concreta da gente, que não é nada -pode ser apenas uma mesa de bar-, mas, num mundo com pouco sentido, é o que temos.

07 dezembro 2006

"Crazy - Loucos de Amor"

Como se determina a orientação sexual? É uma "escolha" livre ou uma fatalidade?

ESTÁ EM cartaz "Crazy - Loucos de Amor", de Jean-Marc Vallée (canadense de língua francesa). É a história de Zac, um garoto que se torna adulto e homossexual entre uma mãe religiosa, um pai banalmente machista e quatro irmãos.

O filme é uma pérola: delicado, engraçado e comovedor. Além disso, ele é uma obra de utilidade pública. Ao longo dos anos, muitas vezes, encontrei e tentei aconselhar casais que lidavam, de maneiras diferentes, com a descoberta de que seu filho (ou um de seus filhos) era homossexual. As reações variavam, desde uma aprovação maníaca (que, em geral, escondia um desespero reprimido) até a decisão sádica de impor a normalidade a tapas ou à força de excursões obrigatórias ao bordel.
Pois bem, hoje, a todos esses pais de um jovem homossexual, sem exceção, recomendaria que, antes mesmo de começar a conversa, eles assistissem a "Crazy". Estenderia a recomendação aos eventuais irmãos do jovem, aos amigos, aos colegas de colégio e de trabalho.

Deixo aos espectadores o prazer de uma história que, para usar uma expressão na moda, melhora singularmente nossa "inteligência emocional". E aproveito para resumir um debate que o filme reavivou.

Falando com um amigo sobre a história de Zac, usei a expressão "escolha sexual" (diga-se de passagem que, no filme, Zac é perfeitamente "capaz" de desejar e talvez de amar uma mulher). O amigo desaprovou energicamente minha expressão. E lá fomos nós, discutindo, mais uma vez: a orientação sexual é fruto de uma especificidade genética ou é um efeito da história do sujeito? Além disso, é uma fatalidade ou uma "escolha"? Chegamos a algumas conclusões provisórias, que resumo a seguir.

1) Os dados científicos não são conclusivos. Por exemplo, os estudos sobre gêmeos univitelinos (que já comentei no passado, nesta coluna) deixam, sobretudo, perplexidade: seria esperado que uma maioria esmagadora de irmãos gêmeos, por compartilharem o mesmo patrimônio genético, tivesse uma orientação sexual idêntica, mas as pesquisas mostram que isso acontece em pouco mais de 50% dos casos -uma maioria pequena, que poderia ser explicada pela infância comum.

2) De qualquer forma, o termo "escolha sexual" é, no mínimo, impreciso: ele sugere uma liberdade que, de fato, nunca existe em matéria de amor e sexo. Em geral, a fantasia que sustenta o desejo de cada sujeito (homossexual ou não) é mais próxima de uma imposição do que de uma criação livre e variável: não é uma coisa que a gente "escolha".

3) A razão para defender a expressão "escolha sexual" ou, então, seu contrário (por exemplo, "determinação sexual") é sobretudo política. Muitos sujeitos cuja conduta amorosa e sexual é excluída, perseguida ou censurada preferem, hoje, que a forma de seu desejo seja considerada por todos como uma necessidade biológica. Com isso, eles se libertariam das tentativas (ridículas e opressivas) de "corrigir" o que, para eles e de fato, é um desejo não negociável (que pode ser reprimido, mas não "endireitado"). Em suma, eles esperam ganhar uma aceitação social definitiva, visto que não há como se opor "à natureza".

Por que não adotar esse argumento, considerando que, de qualquer forma, a expressão "escolha sexual" é incorreta?

Eis minha resposta: no mundo dos meus sonhos, as mais variadas orientações sexuais e amorosas seriam aceitas sem a justificativa de determinação biológica alguma, mesmo se elas fossem livres escolhas dos sujeitos.

Um exemplo vai ser útil. Uma filósofa libertária que admiro, Jeanne Hersch (que morreu em 2000), foi minha professora na época em que ela dirigia a divisão de filosofia da Unesco. Nessa função, ela teve que decidir se a Unesco financiaria ou não uma pesquisa para demonstrar que não existem diferenças de inteligência entre raças. Hersch votou contra o projeto, pela indignação de boa parte de nós, estudantes. Os filósofos apreciarão o sabor kantiano de seu argumento, que foi o seguinte: é verdade que a pesquisa poderia desmentir cientificamente muitos estereótipos raciais e racistas, mas autorizar a pesquisa significaria admitir, mesmo por um instante, que a igualdade de direito possa derivar da igualdade de fato. Isso era, para Hersch, inaceitável.

Seguindo sua lição, prefiro defender o princípio da liberdade de "escolha" amorosa e sexual, sem justificativa biológica. É muito "crazy"?