28 novembro 2013

Adorável 'Jovem e Bela'

"Jovem e Bela", de François Ozon, conta uma temporada na vida de uma adolescente: Isabelle, 17 anos, tem seu primeiro namorico de verão e se prostitui no outono e inverno seguintes. Marine Vacth, a atriz, além de jovem e bela, é adoravelmente emburrada, como só os adolescentes franceses conseguem ser.
Aviso aos espectadores: entre ela, o comportamento de seus pais, a classe do colégio discutindo um poema de Rimbaud e a paisagem, o filme pode matar qualquer um de saudade de Paris e da França. Agora, alguns pontos (sem "spoilers").
1) O namorico de Isabelle durante o verão é sinistro, como a maioria dos namoricos de praia entre adolescentes. Isabelle olha para sua primeira transa como uma espectadora que não acredita na miséria do que está acontecendo. Cá entre nós, qualquer coisa é melhor e mais interessante do que aquilo --talvez até se prostituir num estacionamento.
2) Durante esse verão, Isabelle se irrita quando a mãe manifesta uma curiosidade bestamente cúmplice: cadê aquele jovem alemão bonito? Os pais adoram que os namoradinhos se incorporem ao cotidiano da família: eles esperam que o lar acabe domesticando o desejo sexual das filhas.
Mais tarde, no filme, Isabelle não aguenta a visão de seu novo namorado de pijama na mesa de família. Para completar, o namorado vai jogar videogame com o irmãozinho de Isabelle. Essa prática nefasta é frequente; conselho: meus amigos, decidam-se, cresçam ou caiam fora, joguem com o irmão ou namorem com a irmã.
Com a desculpa de que a rua de noite é insegura, os pais permitem e aprovam que muitos adolescentes brinquem de marido e mulher no seu quarto de crianças. O que tem de errado em deixar o namoradinho dormir com a namoradinha? Nada, mas é isso mesmo que se faz na casa dos pais: dormir --não transar. Para descobrir o que é sexo, é melhor sair de casa.
Por que condenar os adolescentes a começar sua vida sexual "em família", ou seja, dormindo?
3) Isabelle diz que ela podia até não gostar de se prostituir, mas, uma vez de volta ao lar, ela estava a fim de recomeçar. É uma definição perfeita da fantasia erótica: a realização pode não dar prazer, mas a gente fica a fim de recomeçar, sobretudo quando se afoga na mesmice.
4) Para encontrar clientes, Isabelle tem um perfil (sem rosto) num site. Receamos que a internet seja o paraíso dos predadores de crianças. Mas o inverso talvez tenha se tornado mais frequente: menores disfarçados como maiores se oferecem para sexo, por dinheiro ou não.
5) Engraçado. Podemos duvidar da maturidade de alguém de 17 anos para se prostituir ou mesmo para transar, a não ser que isso aconteça com o namorado de pelúcia --aquele que, de manhã, joga videogame com o irmãozinho.
Ao mesmo tempo, queremos que esse alguém de 17 anos, na escola, leia "Roman", que Rimbaud escreveu, justamente, aos 17 anos. Mathilde Mauté, a mulher de Paul Verlaine, tinha 17 anos e estava grávida quando Rimbaud, 17 anos, chegou na casa de Verlaine para começar a tórrida e famosa história de amor dos dois amigos.
Seria bom decidir um dia o que queremos e esperamos de um adolescente.
6) A partir de que idade, para nossas leis, um jovem pode livremente consentir a ter sexo com coetâneos e adultos? A idade do consentimento sexual, na França, é 15 anos. No Brasil, há muito tempo, ela é de 14. Aposto que muitos imaginavam que fosse mais tarde.
Tanto a lei francesa quanto a brasileira levam em conta uma vulnerabilidade dos jovens até os 18 anos. E considera-se que a prostituição se aproveite dessa vulnerabilidade. Ou seja, é permitido que um adulto transe com alguém de 17 anos que consinta por amor (por exemplo). Mas não se a transa for por dinheiro.
Não tenho nenhuma simpatia pela prostituição de adolescentes. Mas não deixa de ser bizarro: se a idade do consentimento é 14 ou 15 anos, por que a liberdade de se prostituir começaria só aos 18? Duas respostas possíveis.
A primeira é que somos ingênuos. Acreditamos que transar com alguém "por amor" não signifique se aproveitar de sua vulnerabilidade. Tendo a pensar o contrário: o amor, pretenso ou "verdadeiro", sempre foi uma arma para pegar inocentes desprevenidos.
A segunda resposta é que, apesar de nossa suposta liberação, somos escandalizados pela ideia de que haja desejo sexual e sexo sem a boa desculpa do envolvimento emocional. Eles podem transar porque se amam. Agora, transar só para transar é coisa de puta, não é?

21 novembro 2013

A favor do tédio

Alguns livros recentes tratam dos malefícios de nossa constante vontade de encontrar diversões. Como sugere o título de um deles, "The Distraction Addiction", de Alex Pang (Little, Brown and Company), a vontade de se distrair seria um vício, uma forma de dependência.
Também, desde o começo do ano, leio artigos de revista sobre "os surpreendentes benefícios do fato de sentir tédio".
Os livros não me pareceram imperdíveis. E os artigos nas revistas de grande circulação citam "pesquisas" por ouvir dizer. Mas tanto faz. O conjunto manifesta um novo clima, segundo o qual a necessidade de sermos entretidos e estimulados continuamente não tornaria nossa vida mais rica e variada --ao contrário, é possível que essa dispersão empobreça nossa experiência.
Já foi dito por evolucionistas que a sorte de nossa espécie foi sua fraqueza: enquanto passávamos horas a fio escondidos e calados nos arbustos, esperando as feras passarem, a imobilidade e o tédio forçados produziram o surgimento da consciência, do pensamento e da fantasia. Que tal aplicar essa hipótese no campo da educação?
O que é mais "educativo" para as crianças? A diversão? Ou a chance de se entediar?
Umberto Eco atribui ao filósofo Benedetto Croce uma frase que ele cita com frequência: "O primeiro dever dos jovens é o de se tornar velhos". Esse slogan não tem como ser muito popular numa época em que o primeiro dever dos velhos é o de eles parecerem jovens. De fato, nesta nossa época, os adultos não ajudam os jovens a envelhecer; eles preferem mantê-los na mesma criancice que eles desejam para si.
Há pais agentes de viagem e relações-públicas, que, a cada dia, organizam programas "divertidíssimos" para seus rebentos. Esses pais procuram amigos para brincadeiras coletivas e oferecem, a jato contínuo, coquetéis de televisão, cinema, compras, videogames e até livros: qualquer coisa para evitar que a criança conheça a solidão e o enfado. Sabe-se lá quais pensamentos surgiriam numa mente entediada, não é?
Certo, é preciso estimular as crianças para que elas se desenvolvam na interação com o mundo. Mas o problema é que, sem tédio maçante, ninguém, criança ou adulto, consegue inventar para si uma vida interior. E para que serve uma vida interior? Se forem pensamentos aos quais recorremos quando não temos nada para fazer, não é mais simples a gente se manter ocupado e não precisar da tal vida interior?
O problema é que há uma boa parte da vida exterior que, sem vida interior, é totalmente insossa. Tomemos o exemplo do erotismo.
Está aberta até dia 12 de janeiro, no Metropolitan de Nova York, a exposição "Balthus: Cats and Girls" (Balthus: gatos e meninas). O catálogo, com o mesmo título, contém uma excelente introdução da curadora, Sabine Rewald.
Balthus (1908-2001) pintava com frequência gatos e meninas, juntos ou separados. Os gatos são ótimos administradores de seu tédio. Eles sabem se divertir quando a ocasião se apresenta, mas também sabem não fazer nada. Nisso, eles batem os cachorros, que sempre parecem aliviados quando finalmente têm algo para fazer.
Agora, esse dom da gestão do tédio, os gatos têm em comum com as meninas que Balthus pinta, que são todas, antes de mais nada,
entediadas.
As longas sessões nas quais posavam para o pintor talvez servissem deliberadamente para produzir o tédio que Balthus queria pintar. Há as meninas quase vencidas pelo sono no meio da leitura, há as que jogam paciência no silêncio palpável da tarde numa casa de província francesa --todas parecem entregues a devaneios inquietantes.
A gente pode se indignar com a diferença de idade entre Balthus e suas modelos adolescentes, mas o fato é que os retratos das meninas são uma extraordinária ilustração de que o tédio e a indolência são as portas que levam aos pensamentos impuros.
Ou seja, é bem provável que a criança entediada tenha uma vida erótica adulta mais interessante do que a criança que cresceu de joguinho em joguinho, de amiguinho em amiguinho, de diversão em diversão.
O que me leva, aliás, a uma suspeita. Os pais que combatem o tédio dos filhos talvez estejam combatendo possíveis "pensamentos impuros" --videogames, filmes, amigos, tablets e futebol, tudo contra o espantalho da masturbação, que espreita a criança entediada e solitária.
Agora, sem pensamentos impuros na criança, o que será o erotismo do adulto no qual essa criança se tornará? Um erotismo sem vida interior, talvez.

14 novembro 2013

Arte fora de estação

A Bienal de Arte de Veneza dura de junho a novembro, a cada dois anos. Na semana de abertura, há inúmeras festas de inauguração --a maioria regada ao pior prosecco produzido na região do Vêneto e outras poucas em que a bebida e a comida são toleráveis.
Nessa época, Veneza é um formigueiro de artistas, críticos, investidores, jornalistas, curadores, cicerones para grupos de senhoras sedentas de experiências "avançadas" no campo da arte --e, embora não seja Carnaval, um número equivalente, se não maior, de pessoas disfarçadas de artistas, críticos, investidores, jornalistas etc.
Graças a essa fauna, a semana de abertura é ótima se você deseja encontrar ou consolidar sua fé na relevância da arte contemporânea.
É óbvio que os artistas se esforçam sempre para que sua obra, sua performance ou sua instalação constituam um evento. Ora, na semana de abertura, todas as categorias que citei se agitam para convencer o mundo de que a Bienal é mesmo um grande acontecimento.
Três gatos avançam sambando pela via Garibaldi? Pois é, a Bienal rende homenagem ao tropicalismo, ao pós-tropicalismo, ou ao pós-pós-tropicalismo. Tem alguém mugindo deitado num pavilhão dos Giardini? Pois é, assim se expressa a dor do mundo ou, por que não, a saudade do leite materno.
Agora, se você não precisar acreditar na arte contemporânea, arrisque-se a visitar a Bienal em novembro. Mesmo fora de estação, há turistas, artistas e, sobretudo, alunos: de manhã, é fácil esbarrar numa turma, levada por um par de professores.
Gilad Ratman apresenta o registro filmado da chegada de uma equipe de espeleólogos que penetram no pavilhão de Israel pelo esgoto, furando o chão; num outro registro, cada espeleólogo esculpe na argila seu autorretrato e começa a gritar com ou contra sua própria imagem. Os professores que acompanhavam a turma não propuseram interpretações nem apreciações. As crianças aprovaram. Aos 12 anos, como eu teria reagido?
Will Gompertz (no começo de seu ótimo "Isso é Arte? 150 Anos de Arte Moderna - Do Impressionismo Até Hoje", Zahar) conta que, em 1972, a Tate Gallery de Londres comprou uma obra feita de 120 tijolos, e a coisa deu protestos e controvérsias.
Trinta anos mais tarde, todo o mundo achou normal a compra de uma obra que consistia num pedaço de papel com as instruções caso alguém quisesse repetir uma performance. Entre as duas datas, uma mudança, não da arte, mas de gerações.
Não adianta eu ter escrito a profusão sobre o que aconteceu nas artes entre o século 19 e o 20. Assim como não adianta eu querer defender o "ready-made", o minimalismo, a "arte povera", o espacialismo ou a arte conceitual: quase irremediavelmente, eu sempre preferirei as obras que representam o mundo e contam uma história.
As crianças com que cruzei no pavilhão de Israel talvez sejam diferentes de mim, e, para elas, a arte possa ser um gesto, uma intenção, um conceito. É bom ou ruim? Não sei.
Seja como for, desta vez, as duas gerações, a minha e a das crianças, puderam gostar da Bienal. Explico: a Bienal de Veneza comporta os pavilhões (em que cada nação escolhe seus artistas) e uma exposição central organizada por um curador.
O de 2013, Massimiliano Gioni, escolheu o tema "O Palácio Enciclopédico" e realizou uma mostra inesquecível, que talvez ajude a entender por que se tornou difícil contar e representar.
No Arsenale, a mostra começa com a maquete do edifício projetado por Marino Auriti, um mecânico ítalo-americano que queria construir um arranha-céu que contivesse o registro de todo o saber da humanidade. Nos Giardini, a mostra começa com o original do "Livro Vermelho": 16 anos de "imaginação ativa" de Carl Gustav Jung, na tentativa heroica de explorar cada canto de sua própria mente.
No século 14, os 400 manuscritos da biblioteca de Francesco Petrarca eram o compêndio do saber humano. Pouco mais de cem anos mais tarde, os livros impressos se multiplicavam, uma incrível diversidade humana era revelada pelas grandes descobertas, e a própria Terra se perdia num universo infinito.
Hoje, a internet alimenta mais um sonho de palácio enciclopédico (virtual: todo nosso saber on-line), mas a sensação que prevalece (ao menos em mim) é que há cada vez menos totalidade possível --só fragmentos, numa expansão parecida com a do Big Bang.
Talvez por isso seja difícil, para as artes, contar histórias ou representar o mundo.

07 novembro 2013

Dia dos mortos e dia dos vivos

Mesmo estando em Veneza, não passei pelo cemitério de San Michele no dia dos mortos.
Se eu fosse até lá no dia 2, teria visitado um amigo dos meus pais, que mal se lembraria de mim, e alguns ilustres: Stravinsky, Joseph Brodsky, que é um poeta que me toca e escreveu um livro lindo sobre Veneza ("Marca d'Água", Cosac Naify), e Franco Basaglia, que desencadeou o movimento antipsiquiátrico, no hospital de Gorizia.
É provável que as visitas aos cemitérios se tornem cada vez mais raras. Além de um túmulo concreto, muitos já erigem monumentos virtuais para seus entes queridos, e visitar os mortos, no futuro, talvez signifique passear por um lugar virtual: rever fotos e textos, lembrar-se e deixar um pensamento (há sites para isso, cemitérios virtuais --peoplememory.com, por exemplo).
Na Itália, há também cemitérios reais em que, graças a câmeras filmando ao vivo, é possível visitar qualquer tumba virtualmente, sem sequer sair de casa (a coisa começou, aliás, com os cemitérios de lugares com forte índice de emigração, de modo que netos e bisnetos do outro lado do mar pudessem visitar "i nonni").
Mas a razão pela qual não visitei San Michele é outra. Especialmente em Veneza, para mim, os mortos não estão separados dos vivos. Claro, Napoleão chegou até aqui e instituiu os cemitérios (entre eles San Michele), proibindo que os mortos fossem sepultados perto dos vivos.
Mas meu pai pensava diferente de Napoleão; para ele, a presença dos mortos não tinha por que ser pavorosa ou insalubre --ao contrário, ela só enriquecia nossa vida.
Meu pai queria que eu me interessasse pelas pedras da cidade, por sua arte e por sua história. O jeito que ele encontrou foi me seduzir com histórias (algumas verdadeiras, outras --suspeito-- inventadas).
Em Veneza, há mais de uma rua dos assassinos, mais de um "malcantón" (canto ruim), mais de uma ponte do diabo ou dos esquartejados. De todos esses lugares, uma lenda explica o nome. Mesma coisa para cada pedra estranha no meio da calçada, cada busto de anjo ou de diabo num muro. Para quem cresceu ouvindo essas histórias, o passado é uma outra dimensão, quase presente, visível, e a cidade é povoada pelas sombras dos que foram.
Por exemplo, visitei a parte da Bienal de Arte que é apresentada no antigo Arsenal. Artistas contemporâneos mostram suas obras, inclusive ao ar livre, nas docas onde eram construídos os navios da República. Reis e poderosos, passando por Veneza, sempre eram convidados a festas no Arsenal, que duravam uma tarde, para eles constatarem que, numa tarde, Veneza conseguia construir um navio. Pois bem, no Arsenal, misturo-me à fauna variada da Bienal, mas nunca deixo de enxergar, no fundo, o trabalho dos obreiros que terminavam uma galera num dia só.
Uma vez, passeando pelas Fondamenta delle Zattere num fim de tarde, meu pai me mostrou o enorme edifício do moinho Stucky, abandonado. Ele apontou luzes trêmulas nas janelas escuras. Eu não enxerguei nada, mas aprendi que aquelas eram as chamas que assinalavam o lugar onde jazia a beata Giuliana de Collalto, esquecida na vala comum das freiras de seu mosteiro, no fim do século 13.
Nada demais, só que o mosteiro de Giuliana tinha sido demolido e, no seu lugar, surgia, justamente, o moinho Stucky, uma gigantesca oficina neogótica. Ora, em 1910, o próprio Stucky foi assassinado, e, em 2003, o moinho, antes de se tornar mega-hotel, sofreu um grave incêndio. Talvez tenha sido Giuliana de Collalto; talvez e mais provável, tenha sido a sombra de John Ruskin voltando para defender o gótico de sua Veneza amada contra o horror neogótico do Stucky.
Seja como for, no dia dos mortos, não precisamos visitar os cemitérios porque nossos mortos já estão entre nós (ou dentro de nós). E não é necessário ter medo: eles, em tese, estão do nosso lado e contra nossos inimigos. Por quê?
A melhor resposta é a de Cinqué, na versão que Steven Spielberg filmou da história do navio "Amistad".
No filme, Cinqué explica a John Quincy Adams (seu advogado) que ele chamará seus antepassados para que o ajudem na hora do processo no qual será decidido se ele ganhará sua liberdade de volta ou continuará escravo. Cinqué afirma com clareza e convicção que os antepassados não poderão deixar de vir para ajudá-lo, por uma razão simples: ele, Cinqué, é a única razão de eles terem existido.

31 outubro 2013

O som, a fúria e as cartas

1) Para mim, Ricardo 3º era um personagem shakespeariano, que conquistou o poder por caminhos tortos e, na véspera da batalha que lhe foi fatal, ouviu os fantasmas de suas vítimas lhe dizerem o inesquecível "Despair and die!", desespere-se e morra.
Certo, eu sabia que Ricardo 3º fora mesmo o último rei da casa de York, no fim do século 15, cem anos antes que Shakespeare escrevesse sua história. Mas sabia sem saber.
Isso, até quinta-feira passada, quando tive entre as mãos um documento assinado por ele (quando era duque de Gloucester, antes de dar um trato nos seus sobrinhos e se tornar assim rei da Inglaterra). Passei de leve um dedo sobre sua assinatura e foi como se sentisse a pegada de sua brutalidade, de sua ambição e de sua tragédia.
2) Eduard, o segundo filho de Albert Einstein e Mileva Maric, nasceu em 1910. Ele queria ser médico e psiquiatra. Aos 22 anos, Eduard entrou, pela primeira vez, no Burghölzli, a famosa clínica de Zurique onde Jung foi assistente de Bleuler. Mas Eduard não entrou como médico -entrou como paciente. No Burghölzli, aliás, ele morreu, internado, em 1965.
Numa carta a Mileva, em 1928, Einstein, referindo-se obviamente a Eduard, escreve que ele considera a psicanálise "como uma moda extremamente perigosa... Ninguém será submetido a esse tratamento com meu consentimento".
Quatro anos depois, Eduard era internado, e Einstein, convidado a escolher um contemporâneo com quem dialogar sobre a guerra, escolhia Freud. Mais quatro anos, e Einstein, num breve bilhete, declararia a Freud que ele entendera, enfim, a teoria freudiana da repressão. Naquela época, Einstein mandava a Eduard obras de Freud, declarando não ter dúvidas sobre a teoria freudiana. Será que era para agradar a Eduard, que guardava um retrato de Freud na parede de seu quarto?
Na quinta passada, com meu alemão capenga, eu procurava as palavras, na carta de 1928: "...eine überaus gefährliche Mode". A loucura de um filho é o desespero de qualquer inteligência.
3) Num dia de 1911, Georges Courteline, escritor e dramaturgo francês, recebeu um bilhete escrito por um menino que gostara muito de um texto dele e até dizia ter tentado em vão traduzir o tal texto para o alemão a fim que a babá dele, alemã, entendesse e apreciasse.
A assinatura do bilhete, que estava agora nas minhas mãos, era: "Jean-Paul Sartre, seis anos e meio".
O bilhete tinha um cheiro de livros, misturado com um perfume de ternura materna. Como Sartre diria contando sua infância, a vocação de escrever foi encontrada na paixão de ler.
4) Jean Cocteau recebe uma carta de um jovem admirador, de 19 anos, que acaba de fundar um cineclube, o qual vai estrear com a apresentação de "Sangue de um Poeta". O clube só viverá se o próprio Cocteau prestigiar a sessão com sua presença. Cocteau não foi. A carta é assinada: François Truffaut.
Penso nos convites que recuso, nos livros de estreantes que deixo de ler, nas amizades que não vingam.
5) Mas, na quinta passada, nada me emocionou tanto quanto uma breve carta do Marquês de Sade à sua mulher, que nunca deixou de amá-lo (a recíproca sendo provavelmente verdadeira). A carta é escrita do asilo de Charenton, onde Sade ficou preso como louco, de 1801 a 1814 -porque sua sogra não gostava dele e, no fundo, porque ele nunca renunciou a pensar e escrever sobre as fantasias que exaltavam seu desejo. Olhei para meus dedos, na esperança que algo dele tivesse entrado em mim, por osmose.
Em suma, passei horas com Pedro Corrêa do Lago, que me mostrou alguns dos manuscritos que ele reúne há mais de 40 anos. A coleção é extraordinária por sua extensão e variedade -e pela inteligência de Pedro (para se ter uma pequena ideia, ver os livros "Cinco Séculos a Papel e Tinta", da editora Afrontamento, ou "True to the Letter", da Thames and Hudson).
A história é mesmo, como diria um colega de Ricardo 3º, um conto sem sentido, cheio de som e fúria, mas ela é bonita ou mesmo sublime quando, por algum milagre, ela se torna concreta, como aconteceu para mim, na quinta-feira passada. Este é o poder do manuscrito: ressuscitar os corpos, pelo gesto da mão que persiste, inscrito na forma das letras.
É primavera, época tradicional de limpeza. Doe as velharias que você não usa mais, mas, por favor, não jogue fora levianamente cartas e papéis manuscritos.

24 outubro 2013

'Longe da Árvore'

Li o novo livro de Andrew Solomon quando foi publicado nos EUA, no fim de 2012. Para explicar por que ele é, para mim, um dos ensaios mais importantes das últimas décadas, preferi esperar a tradução em português, "Longe da Árvore - Pais, Filhos e a Busca da Identidade" (Companhia das Letras).
O título se refere ao ditado segundo o qual os frutos nunca caem longe da árvore que os produziu --ou seja, "tais pais, tais filhos". Só que, às vezes, nossos filhos nos parecem diferentes de nós: frutos caídos longe da árvore. De qualquer forma, a árvore quase sempre acha que seus frutos caíram mais longe do que ela gostaria. E, na nossa cultura, amar os filhos que são diferentes de nós não é nada óbvio.
A obra de Solomon é um extraordinário elogio da diversidade e da possibilidade de amar e respeitar a diferença, mesmo e sobretudo nos nossos filhos. Por acaso, li o livro de Solomon logo depois das tocantes e bonitas memórias de Diogo Mainardi ("A Queda", Record) sobre o amor por seu primogênito, Tito, diferente por ser portador de paralisia cerebral.
A leitura de "Longe da Árvore" ajudará qualquer pai a não transformar suas expectativas em condições de seu amor. Isso bastaria para que a obra de Solomon fosse imprescindível --para pais e para filhos. Mas há mais.
Retomo uma distinção que Solomon usa. Chamemos de identidades verticais as que são impostas ou transmitidas de geração em geração: elas são consequência da família, da tribo, da nação na qual nascemos e também das expectativas dos pais (quando elas moldarem os filhos). Chamemos de identidades horizontais as que inventamos ou às quais aderimos junto com nossos pares e coetâneos: elas são tentativas de definir quem somos por nossa conta, sem nada dever à árvore da qual caímos.
O paradoxo é o seguinte: a ideia crucial da modernidade é que as identidades verticais não constituem mais nosso destino (por exemplo, o fato de nascer nobre ou camponês não decide o lugar que o indivíduo ocupará na sociedade).
Os filhos, portanto, conhecem uma liberdade sem precedentes (viajam, mudam de país, de status, de profissão etc.), atrás do sonho moderno de "se realizarem" --e não do sonho antigo de repetirem seus antepassados. Mas acontece que esse sonho de "se realizarem" é também o dos pais, os quais, como qualquer um, só "aconteceram" pela metade (quando muito).
Consequência e conflito: os filhos deveriam correr livres atrás de seus próprios sonhos, enquanto os pais esperam e pedem que os filhos vivam para contrabalançar as frustrações da vida de seus genitores.
Será que um dia seremos capazes de um amor não narcisista pelos nossos filhos? Será que seremos capazes de querer produzir vidas por uma razão diferente da de reproduzir a nós mesmos?
Se isso acontecer um dia, será possível dizer que "Longe da Árvore" foi o primeiro indicador de uma mudança que transformou nossa cultura para sempre.
Alguns poderiam se assustar diante do tamanho da obra de Solomon, que é monumental (mais de 800 páginas). Reassegurem-se: a leitura é fascinante.
O livro é construído assim: há uma introdução, "Filho", imperdível, e uma conclusão, "Pai" (de filho para pai é o caminho que o próprio Solomon percorreu na sua vida).
No meio, há dez capítulos (que não precisam ser lidos na ordem) sobre as "diferenças" de filhos que caíram longe da árvore e como os pais lidaram com elas (surdos, anões, síndrome de Down, autismo, esquizofrenia, deficiência, [crianças-]prodígios, [filhos de] estupro, crime, transgêneros). A essa lista é necessário acrescentar gay e disléxico, que são os traços que fizeram de Solomon um diferente.
Das centenas de entrevistas nas quais ele se baseia, Solomon sai com um certo otimismo sobre a possibilidade de os pais aprenderem a amar filhos diferentes deles.
Entendo seu otimismo assim: as diferenças extremas (como as que ele contempla) derrotam o narcisismo dos pais de antemão (esses filhos nunca serão uma continuação trivial de vocês) e portanto levam à possibilidade de amar os filhos como entes separados de nós.
No dia a dia corriqueiro da relação pai-filho, o narcisismo dos pais e dos adultos produz uma falsa e incurável infantolatria: parecemos adorar as crianças, mas mal as enxergamos --apenas amamos nelas a esperança de que elas realizem nossos entediantes sonhos frustrados.

17 outubro 2013

Qual romance você está lendo?

Sempre pensei que fosse sábio desconfiar de quem não lê literatura. Ler ou não ler romances é para mim um critério. Quer saber se tal político merece seu voto? Verifique se ele lê literatura. Quer escolher um psicanalista ou um psicoterapeuta? Mesma sugestão.
E, cuidado, o hábito de ler, em geral, pode ser melhor do que o de não ler, mas não me basta: o critério que vale para mim é ler especificamente literatura --ficção literária.
Você dirá que estou apenas exigindo dos outros que eles sejam parecidos comigo. E eu teria que concordar, salvo que acabo de aprender que minha confiança nos leitores de ficção literária é justificada.
Algo que eu acreditava intuitivamente foi confirmado em pesquisa que acaba de ser publicada pela revista "Science" (migre.me/gkK9J), "Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind" (ler ficção literária melhora a teoria da mente), de David C. Kidd e Emanuele Castano.
Uma explicação. Na expressão "teoria da mente", "teoria" significa "visão" (esse é o sentido originário da palavra). Em psicologia, a "teoria da mente" é nossa capacidade de enxergar os outros e de lhes atribuir de maneira correta crenças, ideias, intenções, afetos e sentimentos.
A teoria da mente emocional é a capacidade de reconhecer o que os outros sentem e, portanto, de experimentar empatia e compaixão por eles; a teoria da mente cognitiva é a capacidade de reconhecer o que os outros pensam e sabem e, portanto, de dialogar e de negociar soluções racionais. Obviamente, enxergar o que os outros sentem e pensam é uma condição para ter uma vida social ativa e interessante.
Existem vários testes para medir nossa "teoria da mente" --os mais conhecidos são o RMET ou o DANVA, testes de interpretação da mente do outro pelo seu olhar ou pela sua expressão facial. Em geral, esses testes são usados no diagnóstico de transtornos que vão desde o isolamento autista até a inquietante indiferença ao destino dos outros da qual dão prova psicopatas e sociopatas.
Kidd e Castano aplicaram esses testes em diferentes grupos, criados a partir de uma amostra homogênea: 1) um grupo que acabava de ler trechos de ficção literária, 2) um grupo que acabava de ler trechos de não ficção, 3) um grupo que acabava de ler trechos de ficção popular, 4) um grupo que não lera nada.
Conclusão: os leitores de ficção literária enxergam melhor a complexidade do outro e, com isso, podem aumentar sua empatia e seu respeito pela diferença de seus semelhantes. Com um pouco de otimismo, seria possível apostar que ler literatura seja um jeito de se precaver contra sociopatia e psicopatia. Mais duas observações.
1) A pesquisa mede o efeito imediato da leitura de trechos literários. Não sabemos se existem efeitos cumulativos da leitura passada (hoje não tenho tempo, mas "já li muito na adolescência"): o que importa não é se você leu, mas se está lendo.
2) A pesquisa constata que a ficção popular não tem o mesmo efeito da literária. A diferença é explicada assim: a leitura de ficção literária nos mobiliza para entender a experiência das personagens.
"Como na vida real, os mundos da ficção literária são povoados por indivíduos complexos cujas vidas interiores devem ser investigadas, pois são raramente de fácil acesso."
"Contrariamente à ficção literária, a ficção popular (...) tende a retratar o mundo e as personagens como internamente consistentes e previsíveis. Ela pode confirmar as expectativas do leitor em vez de promover o trabalho de sua teoria da mente."
Em suma, o texto literário é aquele que pede esforços de interpretação por aquelas caraterísticas que foram notadas pelos melhores leitores do século 20: por ser ambíguo (William Empson), aberto (Umberto Eco) e repleto de significações secundárias (Roland Barthes).
Na hora de fechar esta coluna, na terça-feira, encontro a mesma pesquisa comentada na seleção do "New York Times" oferecida semanalmente pela Folha. A jornalista do "Times" pensou que a leitura literária, ajudando-nos a enxergar e entender os outros, facilitaria nossas entrevistas de emprego ou nossos encontros românticos.
Quanto a mim, imaginei que, na próxima vez em que eu for chamado a sabatinar um candidato, não esquecerei de perguntar: qual é o romance que você está lendo? E espero que o candidato mencione um livro que conheço, para verificar se está falando a verdade.

10 outubro 2013

Para (ou contra) o Dia das Crianças

Na semana retrasada, em Buenos Aires, uma criança de seis anos foi autorizada a mudar de nome e de gênero no registro de identidade argentino. Ela tinha nascido menino, Manuel, e declarava ser menina e princesa desde os 18 meses. A criança passa a se chamar agora Luana, nome que ela já tinha escolhido dois anos atrás.
Ela se vestirá de menina, brincará com as meninas e, na escola, frequentará o banheiro feminino. Esse detalhe não é irônico: pouco tempo atrás, nos EUA, uma criança transgênero da mesma idade de Luana, Coy Mathis, teve que recorrer à Justiça para obter o direito de frequentar o banheiro feminino de sua escola.
Simpatizo com os juízes norte-americanos e argentinos, porque sua decisão não foi fácil. Simpatizo ainda mais com os pais de Luana, de Coy e de todas as crianças pequenas que hoje são reconhecidas como transgênero.
Imagino o drama dos pais. Eles podem 1) proibir e coagir para tentar estancar a identificação com o outro sexo, 2) permitir e deixar a coisa se desenvolver sem vaiar e sem aplaudir ou, ainda, 3) tomar as dores de suas crianças e defender o direito de elas mudarem de gênero. Qual é a escolha certa?
Concordando ou não com a escolha dos pais de Luana e Coy, para apreciar sua coragem, basta se lembrar de que poucas décadas atrás ainda se prendia a mão esquerda atrás das costas das crianças canhotas na hora de elas aprenderem a escrever.
Qual será o próximo passo desses pais? Em tese, tentarão contrariar a puberdade administrando à filha o hormônio feminino que ela não produz. Mesmo assim, o corpo de Luana e Coy se tornará mais masculino do que elas esperam, e chegará a hora de recorrer à cirurgia estética e, por exemplo, implantar seios e depilar o corpo inteiro a laser. Quando?
Um recente artigo de Margaret Talbot, numa "New Yorker" deste ano (http://migre.me/giGK1), conta a história de Skylar, criança transgênero de menina para menino, que começou a testosterona e removeu os seios aos 16 anos.
Talbot também mostra que, sobretudo nos EUA, cresce fortemente o número de crianças pequenas que pedem para mudar de gênero.
Ora, a diferença de gênero é muito menos binária do que estamos acostumados a pensar, e acredito mesmo que haja espaço para um terceiro e um quarto gênero. Mas acho sintomática a diminuição progressiva da idade das crianças consideradas transgênero. Sintomática de quê?
Para autorizar uma mudança de sexo, psicólogos e psiquiatras recorrem a critérios sobre os quais é inevitável que se discuta até não poder mais. Mas, de qualquer forma, sejam quais forem os critérios, alguém acha que possamos aplicá-los em crianças de seis anos?
O que significa que um menino, aos dois anos, declare que ele é menina ou princesa? Mesmo que ele não desista nunca dessa ideia, ainda assim ele tem vários destinos possíveis. Talvez, no futuro, ele acorde a cada dia num corpo que lhe repugna, e sua vida só se resolva se ele se transformar concretamente em mulher. Mas uma outra possibilidade (de novo, entre várias) é que, no futuro e durante a vida inteira, ele esconda sua feminilidade e faça dela uma grande fantasia erótica.
A segunda via não é a repressão da primeira: é outra aventura, totalmente. Quem decidirá, diante de uma criança de seis anos, se ela é candidata à primeira ou a segunda via? Ou a outra via ainda?
É preciso idealizar loucamente a infância para incentivar ou satisfazer o desejo de mudar de gênero manifestado por uma criança de seis anos.
Pouco tempo atrás, a uma criança que dissesse suas vontades, só se respondia "cresça e depois a gente conversa". De repente, hoje, parece que o próprio fato de uma criança falar seja garantia da qualidade ("verídica") do desejo que ela expressa (talvez por isso, aliás, não saibamos mais o que fazer quando as crianças dizem que preferem dormir tarde, estudar outro dia etc.). Será que nos esquecemos de que uma criança inventa, finge, mente, que nem gente grande, se não mais?
Sábado é Dia da Criança. Ótimo --que seja um dia em que as crianças possam fazer uma ou outra besteira que lhes der na telha e em que os adultos gastem um dinheiro em presentinhos.
Mas péssimo se o Dia das Crianças for a celebração canônica da infância, que é um ídolo moderno especialmente perigoso. Perigoso? Sim. Espero que não seja o caso de Luana e de Coy, mas as primeiras vítimas de nossa idealização da infância são sempre as próprias crianças.

03 outubro 2013

Um casal bem normal

O papa Francisco, recentemente, lembrou que a Igreja Católica não deve se esquecer que ela tem, antes de mais nada, missões positivas --de obras e de fé. Claro, ela pode se opor tanto ao casamento gay quanto ao aborto, mas sem confundir essas preocupações com o essencial de seu ministério. Seria fácil acrescentar que, de qualquer forma, em matéria de proibição, a Igreja só escreveu as páginas mais nefastas de sua história.
Enfim, a fala do papa assinala que provavelmente, aos poucos, o casamento gay se tornará, por assim dizer, usual. Nas próximas décadas, senão nos próximos anos, ele integrará as modalidades habituais de amor e convivência. O casamento gay nos parecerá tão normal quanto o casamento heterossexual.
Visto que eu prezo a liberdade individual, só me restaria festejar. E festejo, mas com uma reserva: não gostaria que a aceitação do casamento gay criasse uma espécie de boa consciência coletiva, segundo a qual estaríamos fazendo as pazes com a diversidade do mundo e a variedade do amor e do desejo.
Nada disso: começaremos a entender e aceitar a diversidade do mundo quando pararmos de imaginar que o casamento heterossexual seja algum tipo de baluarte contra a bizarrice do sexo e do desejo. Ou seja, na hora em que o casamento gay está sendo normalizado, é urgente se lembrar de que o casamento heterossexual só foi e é "normal" em aparência.
Se você quiser chacoalhar um pouco suas ideias em matéria de casamento heterossexual e de "normalidade", ainda há uma chance.
Depois de uma temporada no Centro Cultural São Paulo e outra nos Satyros, "Lou & Leo", de Nelson Baskerville e Leo Moreira Sá, volta brevemente, a partir de amanhã, no Teatro do Ator, em São Paulo, na praça Roosevelt (dia 4 de outubro às 23h, dias 11, 18 e 25 de outubro às 21h30).
A peça dramatiza a história da aventurosa vida do próprio Leo, que faz o papel de si mesmo. Leo nasceu Lou, foi baterista das Mercenárias (famosa banda rock punk dos anos 1980), envolveu-se com tráfico de drogas, passou anos preso (ou presa, no caso, por isso acontecer, inevitavelmente, em presídios femininos) e se tornou homem e ator.
Mais importante aqui é que o grande amor da vida de Leo foi Gabi (na peça, a ótima Beatriz Aquino). Leo e Gabi se amaram e se casaram, no civil, em 2002 (divorciaram em 2012). Se o casal quisesse, o casamento poderia ter sido celebrado no religioso também.
Você perguntará: como foi possível, se Leo, juridicamente ainda era Lourdes? Foi casamento gay em 2002? Nada disso, foi um casamento absolutamente normal, entre um homem e uma mulher: se Leo tinha nascido e estava registrado como Lourdes, Gabi tinha nascido e estava registrada como Carlos.
Para o cartório que os casou, portanto, Carlos e Lourdes eram um casal heterossexual. De fato, Lou (que era quase Leo) queria ser o homem para uma mulher. E Carlos (que já era Gabi) procurava um homem para quem ser mulher.
Em suma, foi um amor improvável. Mas, para que alguém se transformando de mulher para homem pudesse se casar com um travesti (como Gabi se via na época), não precisou que existisse o casamento gay: o casamento heterossexual, em sua "normalidade", foi suficiente.
Claro, a história de Leo e Gabi é um caso extremo, paradoxal. Mas sua estranheza não deveria esconder sua "banalidade". "Banalidade"? Isso mesmo. O casamento de Leo e Gabi é "banal", não porque seria corriqueiro o amor entre um transexual e um travesti, mas porque (sem exagero) o amor e o sexo, em qualquer casal dito heterossexual, são quase sempre tão paradoxais quanto o amor e o sexo entre Leo e Gabi.
Na peça, há momentos francamente engraçados. Um deles é quando se trata dos começos do casal: para Leo, a presença de um pênis entre as pernas de Gabi podia ser supérflua e incômoda, enquanto, para Gabi, talvez o problema fosse a ausência de um pênis entre as pernas de Leo. Lembrei-me imediatamente de um casal heterossexual no qual ambos declaravam que, na transa, nenhum deles sabia mais de quem era o pênis.
Enfim, por sorte dos heterossexuais, a heterossexualidade não implica nem garante nenhuma "normalidade". A grandíssima maioria dos casais heterossexuais são bizarros (ou seja, singulares), a começar por aqueles que passam a vida sem sexo ou quase.
Ou seja, gays ou héteros, somos, de fato, todos anormais.

26 setembro 2013

A aparência da rebeldia

Democratas e republicanos disputam a Prefeitura de Nova York. Um tema da campanha é a lei que autoriza os policiais a "parar e revistar" os que eles acharem "suspeitos".
Carregar armas e drogas em Nova York se tornou difícil, mas acontece que a maioria dos indivíduos parados e revistados são jovens negros e hispânicos, moradores de bairros pobres e com a aparência de malandro --touca preta na cabeça, calças "baggy" quatro dedos abaixo do elástico das cuecas, etc. Em uma blitz brasileira, os critérios seriam diferentes, mas os selecionados seriam parecidos.
A polícia de Nova York, acusada de basear suas "suspeitas" em um perfil racial e social, responde que seria ineficiente ignorar as estatísticas e revistar senhores de terno Paul Stuart.
No ano passado, na Flórida, Trayvon Martin, negro, 17 anos, foi morto com um tiro por George Zimmerman, 29, que fazia parte da ronda noturna de segurança do bairro. Segundo Zimmerman, Trayvon, interpelado como suspeito, reagiu; Zimmerman se sentiu ameaçado e atirou. No fim de agosto de 2013, Zimmerman foi inocentado da acusação de homicídio. O veredito indignou a comunidade afro-americana.
Em 13 de setembro, Bill O'Reilly, entrevistador do canal Fox, ao conversar com Cornel West (negro, professor e militante dos direitos da minoria afro-americana), disse que Trayvon Martin não morreu por causa da cor da sua pele: "Se Trayvon Martin estivesse usando um paletó e uma gravata como você esta noite, sr. West, eu não acredito que George Zimmerman teria achado ele problemático. Mas Trayvon estava usando um moletom com capuz, e ele tinha uma certa aparência, e essa aparência é a dos membros de gangues. E por isso ele chamou a atenção."
Quer dizer que poderíamos (deveríamos?) ser parados, revistados e, por que não, mortos a tiros se usássemos moletom com capuz? É uma estupidez: obviamente, os gostos vestimentários de Trayvon não justificam a reação de Zimmerman. Mas uma pergunta fica: Trayvon não era membro de gangue alguma, por que, então, ele estava tentando se parecer com um "gangsta"?
Nenhuma crítica: todos devem ter a liberdade de ir e vir vestidos como quiserem. Mas por que tantos jovens de classe média (baixa e alta) acham mais interessante se parecer com malandros, traficantes e outros delinquentes do que, por exemplo, com os estudantes que eles são? Nos EUA, aliás, a estética do "gangsta" é a estética quase universal do estudante de escola pública.
Alguém dirá que, para os menos favorecidos, a paródia da delinquência é um jeito de impor respeito (inspirando medo, por exemplo). Mas o fenômeno é interclassista, há tempos.
Quando meu filho começou o colégio em Scarsdale, um subúrbio de Nova York rico e por isso com boas escolas públicas, ele se preparou para o frio comprando um anoraque preto com um desenho branco que evocava a marca de uma gangue. Em Scarsdale, isso o identificava imediatamente como um cara problemático; era o que ele queria: poucos meses depois, ele adotou o sotaque de um outro subúrbio, próximo do nosso e famoso por suas gangues, e seu apelido na escola passou a ser "Bronx".
Meu filho e Trayvon, como milhões de outros adolescentes mundo afora, não inventaram nada: eles apenas enxergaram o extraordinário glamour do crime e da marginalidade em nossa cultura, ou seja, descobriram que nós, adultos (consciente ou inconscientemente), idealizamos a criminalidade.
Concluíram que seria cool eles adotarem a aparência, a música, os gestos, a caminhada dos membros de uma gangue. Imaginaram que isso pudesse lhes valer nosso respeito, se não nossa admiração.
Os jovens têm razão. Os adultos modernos carregam consigo um resto de adolescência mal resolvida, como se, para eles chegarem a ser adultos mesmo, ainda lhes faltasse um gesto de rebeldia que se esqueceram de fazer na juventude.
Essa adolescência, desperdiçada por falta de coragem, volta como farsa na vida do adulto: ninguém tem coragem de nada, sequer de quebrar a rotina, mas todos procuram a aparência da rebeldia. Não fiz nada do que eu queria ou esperava, mas amanhã vou tatuar uma estrelinha na bunda.
Em suma, a rebeldia é uma aparência nos adolescentes porque também ficou como aparência em nós. E mais isso: os adolescentes camuflados de "gangstas" nos assustam como nos assustam os nossos próprios sonhos frustrados e já vencidos.

19 setembro 2013

Pornografia: opressão ou liberação?

Três semanas atrás, em São Paulo, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, Sasha Grey lançou a edição brasileira de seu romance, "Juliette Society" (Leya). A fila do autógrafo (e da foto-souvenir que acabaria no Face ou no Instagram) se estendia pela calçada da alameda Santos.
Grey, 25, ganhou vários prêmios anuais da indústria pornográfica (melhor protagonista feminina, melhor sexo oral, melhor sexo a três).
Em 2009, ela foi a protagonista de um filme de Steven Soderbergh, "Confissões de uma Garota de Programa". Em 2011, ela anunciou sua saída da pornografia. Hoje, ela reinventa sua carreira na moda, no cinema e na ficção, sem arrependimento ou vergonha de seu passado.
A ideia inicial do romance de Grey (um clube sexual dos poderosos, a "Juliette Society") é um pouco batida (está em "História de O", de Pauline Réage, em "De Olhos Bem Fechados", de Stanley Kubrick, e, antes disso, na obra do Marquês de Sade, que Grey cita e conhece). Mas, fora isso, o ritmo é rápido, e o texto é peculiar por ser, ao mesmo tempo, pop e culto.
No começo do livro, Grey explica o nome da Juliette Society evocando as duas heroínas de Sade: Justine, que sofre todas as indignidades e os infortúnios possíveis por causa de sua virtude e ingenuidade, e Juliette, que, ao contrário, prospera no vício. Grey, certamente, é uma Juliette.
Nos anos 1960, o que a gente chamava de pornografia eram revistas ou filminhos tão envergonhados e culpados quanto a masturbação de um adolescente: adquiridos laboriosamente por carta e vale postal internacional, vinham da Suécia ou da Holanda em pacotes "neutros", que as alfândegas identificavam e apreendiam.
No começo dos anos 70, três filmes mudaram essa situação, mundo ocidental afora. Mesmo nos países em que não puderam ser exibidos, eles foram comentados exaustivamente pela mídia: o gênero conquistou dignidade cultural. Os filmes eram "Garganta Profunda", com Linda Lovelace, "O Diabo na Carne de Miss Jones", com Georgina Spelvin, e "Atrás da Porta Verde", com Marilyn Chambers.
Como Grey, Georgina Spelvin e Marilyn Chambers foram Juliettes: depois de deixar a pornografia, construíram novas carreiras com orgulho de seu passado. Em compensação, Linda Lovelace, a estrela de "Garganta Profunda", deixou a pornografia como uma Justine, acusando o marido e a indústria de tê-la levado à força até à perdição.
O filme "Lovelace", de Rob Epstein, agora em cartaz, segue essa versão dos fatos, contada por Lovelace na segunda autobiografia, "Ordeal", que ela publicou em 1980, depois de encontrar feministas que faziam campanha contra a pornografia como mais uma forma de estupro da mulher vítima do desejo masculino.
Lovelace, entrevistada em 2005, declarou que ela se sentiu usada tanto pelo marido e pela indústria pornográfica quanto pelas feministas, que "só faturaram" com ela, "como todo mundo".
Questão: pornografia é opressão, como parece dizer Lovelace, ou liberação, como parecem dizer Grey, Spelvin, Chambers etc.?
Em 1976, Catherine Millet me pediu um artigo para o número especial de Art Press (nº 22), "Pour la Pornographie?". Resumindo, escrevi que só os documentos fotográficos satisfazem a maioria dos homens que gostam de pornô, pois as fotos ou os filmes funcionam como "provas" de que "ela realmente fez isso que estou vendo".
Em suma, para muitos, gostar de pornô significaria flertar com o escândalo de que as mulheres também têm desejos e fantasias sexuais. Depois de ler "Vida Sexual de Catherine M." (Ediouro), imagino que, diante do meu texto, Catherine deve ter dado uma boa risada.
Voltemos aos três filmes dos anos 1970. "Garganta Profunda" conta a história de uma mulher cujo clitóris está no fundo da garganta e que quer gozar. "O Diabo na Carne de Miss Jones" conta a história de uma mulher suicida que, barrada na porta do paraíso, pede para pecar de verdade e assim merecer o inferno -no qual a punição consistirá em conviver com um homem que não gosta de sexo.
"Atrás da Porta Verde" conta a história de uma mulher que, forçada a transar com vários parceiros e parceiras diante de um público, descobre sua própria vontade de participar da encenação.
Os três filmes apontavam numa mesma direção, crucial para a mudança dos costumes na segunda metade do século passado: não só os homens, as mulheres também fantasiam e desejam.
Então, opressão ou liberação?

12 setembro 2013

Modernidade triste?

No século 4 da nossa era, nos mosteiros da Europa, a tristeza, "accidia" em latim, era considerada pecado grave, e as regras monásticas se esforçavam para identificá-la e combatê-la. Mesmo assim, muitos monges continuavam tristes.
A Europa era uma desolação. Das janelas de seus oásis de (relativa) tranquilidade, os monges podiam enxergar o horror. A cultura clássica, grega e romana, era esquecida --ignorada pela imensa maioria de iletrados ou perdida no descaso pelos manuscritos antigos. O desabamento do Império Romano transformara o território em uma terra de ninguém, em que o poder ficava com as hordas de mercenários e bandidos ocasionais. Suficiente para qualquer um ficar triste.
Mas talvez haja uma razão menos contingente para a tristeza aparecer como uma nova aflição, bem na hora em que a cultura clássica deixava seu lugar ao cristianismo. É irônico, aliás, que a dita tristeza ameaçasse logo os monges, que eram guardiões dos textos gregos e romanos que sobravam, mas que também praticavam o palimpsesto -- a arte de apagar os manuscritos antigos para usar os pergaminhos novamente, copiando os textos da nova religião.
Note-se também que, desde a acídia dos monges, a tristeza parece ter se tornado um traço distintivo da cultura ocidental e, especificamente, da modernidade, do "spleen" romântico até a depressão clínica, hoje diagnosticada a esmo. Por que, então, seríamos culturalmente tristes?
Naquele momento, no século 4, morria uma cultura para a qual o que importava era viver o momento, e nascia outra, para a qual nossa vida era apenas uma provação, pela qual ganharíamos ou perderíamos a chance de uma suposta eternidade feliz.
Desde então, é como se a vida que importa nunca mais fosse a que estamos vivendo; o pátio de casa não basta, somos infelizes e insatisfeitos porque a vida "verdadeira" nos espera lá onde ainda não chegamos.
A cultura clássica, que morria, tinha valorizado um estilo de vida norteado por um uso discreto e constante dos deleites da mente e da carne. A cultura cristã, que nascia, apontava no prazer um parente do vício e valorizava o sacrifício e a renúncia, como se Deus tivesse um apreço por nosso sofrimento.
Não sei por que Deus reconheceria algum mérito nas renúncias da gente. Freud responderia, provavelmente, que esta é a função social da religião: controlar nossos impulsos, impondo as renúncias que são necessárias para que a convivência social se torne possível. Muitos iluministas pensaram a mesma coisa.
Graças ao cristianismo, ao considerar castigos e recompensas na eternidade, nós nos tornaríamos governáveis -- sem medo do além, não haveria convívio possível (o paradoxo aqui é que essa consideração não inibiu a própria Igreja, que durante séculos e séculos foi uma instituição de crueldade inaudita).
A cultura clássica (Epicuro, por exemplo) preferia tratar os humanos como adultos e apostar que eles se disciplinariam sem ter que acreditar em um além e sem precisar de um mercado de punições e prêmios eternos: a consciência da finitude da vida seria suficiente para torná-los comedidos e dignos.
Em um jantar na casa de Thérèse Parisot, em dezembro de 1970 (sei a data pois a conversa foi sobre as condenações dos processos de Burgos), Jacques Lacan, o psicanalista francês, chegou com um pequeno volume in-octavo. Era um panfleto anônimo, segundo o qual o verdadeiro messias não era Cristo, mas Epicuro (peço que se manifestem os bibliófilos que reconhecerem o livro). Certamente, a obra era a provocação de um libertino dos séculos 17 ou 18.
Mas a questão continua valendo: será que uma modernidade seria possível sem a desvalorização do momento presente e sem a repulsa ao prazer que são partes da mensagem cristã e que talvez sejam a fonte de nossa tristeza crônica?
Qual modernidade seria possível com Epicuro, e não contra ele? Somos modernos graças ao cristianismo ou somos modernos graças ao materialismo e à disciplina dos prazeres que atravessaram a modernidade perseguidos e silenciados pelo cristianismo?
Para inventar uma resposta, um livro imperdível: dos ensaios que li nos últimos 15 anos, nenhum me prendeu e me tocou tanto quanto "A Virada, o Nascimento do Mundo Moderno", de Stephen Greenblatt.

05 setembro 2013

O prazer (ainda) é um escândalo

Imagine que sua filha, de 15 ou 16 anos, peça para dormir com o namorado, em casa. Você não está a fim de encontrar esse cara de pijama no café da manhã do dia seguinte.
Talvez você também pense que não é bom eles terem uma paródia de vida de casal, sem as responsabilidades básicas de quem trabalha e se sustenta. Mas é possível que, como muitos pais paulistanos, você acabe cedendo por uma questão de segurança: melhor que sua filha passe a noite em casa, ao abrigo.
Mesmo assim, você quase certamente colocará uma condição: pode, mas só se for mesmo o namorado --e namorado há um bom tempo. De novo, é uma questão de segurança: você não quer que ela introduza na sua casa alguém que ela mesma mal conhece. Mas há mais: sua exigência manifesta a ideia de que muito, se não quase tudo, é permitido, À CONDIÇÃO de que ela esteja apaixonada, ou melhor, À CONDIÇÃO DE QUE ELES estejam apaixonados.
Desde Romeu e Julieta, nós, pais, aprendemos a respeitar a autonomia do indivíduo em matéria de sentimentos. Fazer o quê? Eles se amam, e contra o amor não se pode quase nada.
Agora, imagine que Romeu e Julieta se encontrassem só para transar adoidados, sem nenhum compromisso sentimental? Não sei se, nesse caso, as plateias da peça shakespeariana torceriam imediatamente por eles.
Imagine que sua filha peça a permissão de trazer para o quarto dela um cara com quem ela se dá bem na cama e tem muito prazer em transar, sem envolvimento sentimental algum. Qual seria sua reação nesse caso?
Devo ter repetido mecanicamente, não sei quantas vezes, que os anos 1960 foram a época da liberação sexual, mas não é nada disso: o que houve foi uma liberação amorosa. Ficou permitido transar caso haja amor. A transa pelo prazer não foi liberada; ela ainda é culpada e precisa ser resgatada pelo "nobre" sentimento amoroso.
É por isso que a prostituição continua maldita, porque se funda, em tese, no escândalo que é o prazer do sexo sem amor. Em geral, quem tolera dificilmente essa ideia considera as pessoas que se prostituem como eternos menores (seja qual for sua idade), sem liberdade, sem vontade própria --apenas vítimas de cafetões, miséria e traumas de infância.
"O Negócio", seriado brasileiro que chega ao seu quarto episódio (HBO, domingo, 21h), tem (no mínimo) o grande mérito de estraçalhar esse preconceito: as prostitutas que são suas protagonistas são, obviamente, sujeitos jurídicos e morais como a gente.
Claro, as heroínas de "O Negócio" são privilegiadas, diferentes das prostitutas da zona de qualquer cidade brasileira. Mas não são diferentes a ponto de nos fazer pensar que elas seriam exceções, parecidas conosco, enquanto as prostitutas da zona seriam seres sem autonomia, que precisam ser entregues à tutela de um Estado condescendente.
Ora, é assim que imagina as prostitutas o deputado federal João Campos (PSDB-GO), que está se especializando na tentativa de transformar suas obsessões morais em lei para todos nós. No Brasil, onde a prostituição é uma prática legal, ele quer criminalizar o ato de oferecer pagamento a alguém pela prestação de serviços de natureza sexual.
O cliente, por procurar esse (escandaloso) prazer só carnal, será punido. A pessoa que se prostitui (suponho que a lei projetada valha para mulheres e homens) poderá ser perdoada porque, segundo Campos, sempre é coagida --ou seja, na hora em que se prostituiu, parou de ser sujeito responsável.
Recentemente, João Campos tentou fazer que fosse permitido aos psicólogos "curar" a homossexualidade. Receio que ele entenda de prostituição como ele entende de homossexualidade.
A quem se interessar realmente pela questão, sugiro dois livros excelentes, escritos por antropólogos e ambos publicados pela editora da UERJ, "Trânsitos - Brasileiras nos Mercados Transnacionais do Sexo", de Adriana Piscitelli, e "Devir Puta - Políticas da Prostituição de Rua na Experiência de Quatro Mulheres Militantes", de José Miguel Nieto Olivar.
O livro de Piscitelli, em particular, mostra perfeitamente até onde chega nossa tendência a não reconhecer às prostitutas nem vontade autônoma nem dignidade jurídica própria. Por exemplo, criamos uma monstruosidade moral e legal que nos permite estigmatizar como "tráfico" (de brancas e morenas) a simples viagem de mulheres brasileiras que vão para Europa se prostituir por conta própria. Leiam e confiram.
Aviso: sobre a repulsa ao prazer em nossa cultura, não terminei...

29 agosto 2013

A gangue do brilhoso

"Bling", em inglês, são as joias grandes, preciosas de um jeito óbvio e ostentatório --um pouco cafonas. "Ring" significa anel ou, então, círculo de amigos ou cúmplices.
Na coluna da semana passada propus traduzir o título do novo filme de Sofia Coppola, "The Bling Ring", como "a turma do deslumbre". Poderia ser também "o brilhoso" ou "a gangue do brilhoso".
Também na semana passada, concordei com a indicação do filme para maiores de 16 anos --fiquei feliz de não ter levado nenhum adolescente comigo para o cinema.
O filme conta a história (verídica) de um grupinho de adolescentes de Los Angeles que se tornaram famosos à força de invadir a casa de pessoas famosas para lhes roubar os apetrechos da fama (roupas e objetos de luxo).
Na história, não há violência nem sexo além da conta. O consumo de drogas e a ousadia criminosa dos jovens são o de menos. Mas não encontrei nenhum adulto que não tenha se angustiado a ponto de considerar a possibilidade de sair antes do fim: a estupidez dos adolescentes da gangue é obscena.
Certamente (espero), nossos filhos e filhas ficariam tão horrorizados quanto a gente. Mas o que fazer se eles se reconhecessem nos protagonistas do filme? Se eles os achassem "legais" ou engraçados? Como agir se, na ocasião do filme, a gente descobrisse que "nossos" adolescentes são daquele mesmo feitio?
Mais um pensamento ansiógeno: quando não há adultos à vista, a adolescência se torna um pesadelo de tentativas de "crescer", uma mais incerta que a outra. Ora, nunca há adultos à vista quando os adultos adotam a adolescência como seu próprio ideal. Por favor, pense nisso quando você escolhe sua roupa, seu lazer, suas conversas...
Um mundo só de adolescentes nos espreita, e esse mundo é um vazio preenchido quer seja pelo tédio, quer seja pelo deslumbre.
Do tédio adolescente ouvimos falar nesta semana, quando, em Brasília, três jovens de classe média repetiram a "façanha" dos assassinos do índio Galdino em 1997: mataram um morador de rua para se divertir, para vê-lo queimar. Ou, então, quando, com um tiro nas costas, três jovens de Oklahoma City (EUA) mataram um homem que passava por eles; explicaram que estavam entediados e queriam ver alguém morrer.
Quanto ao deslumbre adolescente, podemos confiar em Sofia Coppola.
Paradoxo: uma crítica do site www.rottentomatoes.com lamenta que Coppola, em seu filme, não passe da superfície. Mas essa é exatamente a questão do filme: não há nada debaixo da superfície. Coppola fez um filme sobre "a era da futilidade máxima" (na bonita expressão de Paulo Ghiraldelli, http://migre.me/fSoeQ).
Os jovens de Coppola são os representantes de uma geração (impensável sem internet, Facebook, Instagram etc.) que se ocupa em tempo integral da constituição e da difusão, não de sua história ou de suas histórias, não de sua experiência de vida, não de suas crenças e de seus mitos, mas exclusivamente de sua imagem.
Os famosos que servem de modelo para essa geração não são tanto as estrelas de Hollywood quanto as celebridades dos reality shows (como Audrina Patridge, uma das vítimas da gangue).
Os membros da gangue nunca comentam ou mencionam um filme ou um seriado no qual apareçam as eventuais atrizes que são suas vítimas admiradas.
Eles "visitam" repetidamente a casa de Paris Hilton, que é famosa apenas por ser Paris Hilton. Eles adoram Lindsay Lohan, que é famosa sobretudo por suas prisões por dirigir bêbada e drogada.
Sem interesse nas "obras" de suas celebridades preferidas, os personagens de Coppola conhecem perfeitamente os apetrechos da celebridade: passeando pelo closet de suas vítimas, eles identificam imediatamente os modelos que elas usaram em tal ou tal outro tapete vermelho (que valeu fotografia num magazine).
Eles têm razão de prezar os apetrechos da celebridade (e não eventualmente os méritos que poderiam produzi-la). Se a celebridade depende dos apetrechos, então ela pode ser roubada. A celebridade, quando se confunde com a roupa, os sapatos e as joias, é "democrática": para se igualar aos ídolos, basta se apossar de seus objetos.
De que é feito o "self" dos jovens descritos por Coppola? De memórias? De vivências? De esperanças? Quando o "self" é só uma imagem, inevitavelmente, ele é feito de bugiganga, quinquilharia, objetos de consumo.
O marketing descobriu isso há um certo tempo. Ou você acha que as "estrelas" que vendem um perfume com seu nome tiveram o faro de inventá-lo?

22 agosto 2013

A inveja dos outros

Anos atrás, decidi que, salvo necessidade absoluta, em voo internacional, eu não viajaria mais de classe econômica. Quando não posso pagar pela executiva, é simples: não viajo.
A passagem de executiva dá direito ao uso de uma sala de espera confortável, que no Brasil é chamada de sala VIP (sigla de "very important person", pessoa muito importante). Há um quê de idiota na ideia de que alguém se torne importante por pagar uma passagem mais cara que os outros.
Mas o que me interessa agora é o fato de que os passageiros de classe executiva, confortavelmente instalados na sala VIP, poderiam esperar até o fim do embarque da classe econômica; aí eles iriam ao portão já esvaziado e subiriam no avião.
Não é o que acontece. Convidados a embarcar antes dos outros, eles entram no avião sob o olhar dos passageiros de classe econômica e ocupam seus assentos espaçosos, situados na parte da frente da aeronave, de forma que os passageiros de econômica, a caminho de suas poltronas-suplício, são obrigados a contemplar o privilégio dos que já estão instalados na executiva.
Por que essa irracionalidade? É que o passageiro de executiva não compra apenas um tratamento mais humano e um espaço compatível com as formas médias de um corpo: ele compra também a experiência (desejável, aparentemente) de ser objeto da inveja dos outros.
Numa recente viagem à Europa, eu já estava instalado na executiva, tomando suco e lendo um livro quando uma senhora chinesa, a caminho de seu lugar na econômica, passou do meu lado e espirrou molhada e barulhentamente em cima da minha cabeça. Por sorte, não era época de gripe aviária. Mas é isto: a inveja é uma mistura de idealização, amor e ódio.
Circulando de madrugada, passo pela entrada de uma balada. Há uma longa fila de espera, há seguranças imponentes e há uma "hostess" que escolhe quem pode entrar. Em Nova York, entram até desconhecidos, se forem bizarros, interessantes e decorativos. Em São Paulo, parece que a lista de clientes VIPs é soberana. Os outros esperam noite adentro, tentando ganhar a simpatia da "hostess". Vale a pena? O que acontecerá se eles forem admitidos? Pois é, será uma noite sensacional: eles tirarão fotos que postarão no Facebook e no Instagram.
Em geral, com as fotos, eles esperam receber a mesma inveja que eles destinam aos VIPs: por isso, exibirão poses parecidas com o que eles imaginam que os VIPs (os que entraram na balada há tempos) fazem quando se divertem (loucamente).
E o que fazem os VIPs? Pois é, essa é a parte mais estranha: os VIPs imitam as poses dos que os invejam e imitam, pois, eles constatam, essas são as poses que mais suscitam inveja.
De fato, na balada, muitos, VIPs e mortais comuns, apenas esperam a ressaca de amanhã. Mas, no círculo vicioso da inveja, a experiência efetiva é irrelevante; não é com tal ou tal outra vida e história concretas que se sonha: sonha-se ser o que os outros sonham.
A inveja é, por assim dizer, uma emoção abstrata: o privilégio não precisa dar acesso a uma fruição especial da vida (sensual ou espiritual, tanto faz), ele só precisa suscitar inveja. Ou seja, privilégio não é o que faço ou o que acontece de extraordinário em minha vida, mas o olhar invejoso dos outros.
Nesse mundo, em que a inveja é um regulador social, as aparências são decisivas porque elas comandam a inveja dos outros. Por exemplo, o que conta não é "ser feliz", mas parecer invejavelmente feliz.
Nesse mundo, o ter é mais importante do que o ser apenas porque, à diferença do ser, o ter pode ser mostrado facilmente. É simples mostrar o brilho de roupas e bugiganga aos olhos dos invejosos. Complicado seria lhes mostrar vestígios de vida interior e pedir que nos invejem por isso.
O Facebook é o instrumento perfeito para um mundo em que a inveja é um regulador social. Nele, quase todos mentem, mas circula uma verdade de nossa cultura: o valor social de cada um se confunde com a inveja que ele consegue suscitar.
Comecei a escrever essa coluna depois de assistir a "Bling Ring: A Gangue de Hollywood", de Sofia Coppola (uma tradução por "Bling Ring" seria "A Turma do Deslumbre"). A não ser que outro tema se imponha com força, voltarei a falar sobre o filme. Mas digo já: saí do cinema muito feliz por não ter levado nenhum adolescente comigo (respeitando a indicação para acima de 16 anos).

15 agosto 2013

'Flores Raras'

Estreia amanhã "Flores Raras", de Bruno Barreto. O filme (baseado no livro "Flores Raras e Banalíssimas", de Carmen L. Oliveira -nova edição pela Rocco) conta a história dos 17 anos (mais ou menos) que Elizabeth Bishop passou no Brasil.
Na sua chegada ao porto de Santos, em 1951, Bishop já era uma poeta reconhecida, "poet laureate" dos EUA. Nota: "poet laureate" é um cargo de poeta oficial nacional, que raramente me desapontou. Carol Ann Duffy, uma de minhas poetas preferidas, ainda é "poet laureate" do Reino Unido; Billy Collins e Louise Glück foram "poet laureate" dos Estados Unidos, sem contar Robert Frost e Joseph Brodsky. Aliás, eu descobri Collins e Duffy quando se tornaram "poet laureate" de seus países.
Enfim, Bishop estava circum-navegando a América do Sul; viajando, ela queria aliviar sua melancolia. Como Robert Lowell lhe diz lindamente no filme: ela procurava a "cura geográfica". Em Santos, a poeta desceu do barco com a ideia de passar uma semana ou duas visitando uma amiga, Mary Morse, que era então a companheira de Lota de Macedo Soares.
À primeira vista, o encontro de Elizabeth Bishop e Lota não foi muito promissor. Aos olhos de Lota, maravilhosamente interpretada ou inventada por uma inesquecível Glória Pires, Bishop devia parecer como uma chata, por grande poeta que fosse. E é provável que Bishop se assustasse pela presença expansiva de Lota. Agora, uma sugestão: é sempre bom desconfiar dos outros ou outras que seu parceiro ou parceira acha imediata e excessivamente desinteressantes.
De qualquer forma, o encontro de Elizabeth e Lota foi o começo de uma relação que é, para mim, um protótipo de história de amor que vale a pena. Alguns dirão que não acabou bem. Mas esse não é um argumento. O que importa mais é que, nos anos em que elas se amaram, cada uma delas deu o melhor de si: Bishop escreveu os poemas de "North and South" (que lhe valeram o prêmio Pulitzer), e Lota concebeu e realizou o aterro de Flamengo, no Rio de Janeiro.
É frequente que, num casamento, o cônjuge, por adorável que seja, apareça como alguém que limita nosso desejo -às vezes, ele, de fato, compete com nossa vida e domestica nossos sonhos. Esse não foi o caso de Elizabeth e Lota: cada uma potencializou o gênio da outra -essa é uma flor rara.
Detalhe crucial, "Flores Raras" não é um filme sobre um amor homossexual, simplesmente porque o fato de que se trata de duas mulheres é indiferente -o espectador não tem nem tempo nem disposição para aprovar ou para recriminar o amor de Elizabeth e Lota.
Talvez, na sociedade privilegiada e culta do Rio de Janeiro dos anos 1950-1960, pouco importasse que Lota e Elizabeth fossem duas mulheres. Não sei. O fato é que Bruno Barreto conseguiu contar a história de Lota e Elizabeth de tal forma que o gênero e a opção sexual das amantes é muito menos importante do que o amor entre elas.
Ontem, em São Paulo, no "Fronteiras do Pensamento", palestrou Anthony Appiah (professor em Princeton, autor de "O Código de Honra", Cia das Letras). Numa entrevista a Cassiano Elek Machado, na Folha de 10/8, Appiah menciona a revolução moral recente pela qual "há 20 anos, a maioria das pessoas (nos EUA) diria que a ideia do casamento gay é totalmente ridícula. Hoje, se você falar com jovens americanos, 70% deles vão defender sua aprovação".
Pois bem, "Flores Raras" não precisa caber num catálogo de "filmes homossexuais" porque cabe no dos grandes filmes de amor e porque já pertence a uma época em que a orientação sexual talvez seja, enfim, inessencial.
Não me lembro de um momento de minha vida (sequer a infância) em que a orientação sexual fosse, para mim, um fato relevante. Um pilar de minha educação moral foi minha avó, que era católica devota e moralmente preconceituosa, mas dotada de senso prático -se eu fosse homossexual, ela provavelmente se tornaria antipapal (talvez anglicana) na hora.
O outro pilar foi meu pai, para quem a própria ideia de "anormalidade" era uma bizarrice. Embora fosse especialista, tinha uma prática de médico de família: de manhã, ele visitava seus pacientes a domicílio. Quando eu estava de férias, ele pedia que eu o acompanhasse. Dizia que era para lhe fazer companhia. Suspeito que ele quisesse me ensinar a reconhecer meus semelhantes na diversidade do mundo, das casas, dos quartos e das vidas. Enfim, divago. Não perca "Flores Raras".

08 agosto 2013

Palavras de amor

Os sentimentos funcionam como picadas de mosquito, que coçamos e recoçamos até que se tornem feridas infectadas e, às vezes, septicemias generalizadas (quem sabe fatais). Salvo um exercício difícil de autocontrole, qualquer picada pode adquirir uma relevância desmedida: a gente tende a se coçar muito além da conta porque descobre que se coçar não é um alívio, mas um prazer autônomo em si.
Por isso mesmo, em geral, não confio nos sentimentos -nem nos meus, nem nos dos outros. Não é que eu supunha que os humanos mintam quando amam, odeiam ou se desesperam no luto. Nada disso.
Apenas verifico que os sentimentos, em geral, são condições autoinduzidas: transtornos ou desvios produzidos pelos próprios indivíduos, que, se não procuram sarnas para se coçar (como diz o ditado), no mínimo adoram coçar as sarnas que eles têm. Detalhe: coçando, aumenta o prurido, assim como aumentam a vontade e o prazer de se coçar.
Tomemos o exemplo do amor. Eu encontro, conheço ou vislumbro de longe alguém que preenche algumas condições básicas para que eu goste dela. Sussurrando entre quatro paredes ou gritando em praça pública, anotando no meu diário ou escrevendo para grandes editoras, passo a encher o ar ou as páginas com as descrições da beleza inigualável de minha amada e com as declarações hiperbólicas de meu sentimento.
Claro, minha prosa ou poesia poderão, quem sabe, conquistar meu objeto de amor, mas esse é um efeito colateral. O efeito mais importante (e esperado) de minhas palavras de amor não é tanto o de seduzir o objeto de meus sonhos, mas o de eu me apaixonar cada vez mais. Pois a intensidade do meu amor será diretamente proporcional à insistência e virulência de minhas declarações.
Em linguística, chamamos performativas aquelas expressões que, ao serem proferidas, constituem o fato do qual elas falam. Exemplo clássico: um chefe de Estado dizendo "Declaro a guerra" -essa frase é a própria declaração de guerra.
Dizer que sou apaixonado, que odeio ou que me desespero no luto talvez não sejam propriamente performativos. Mas se trata, no mínimo, de semiperformativos, ou seja, talvez os sentimentos existam antes de serem declarados, mas eles só crescem e tomam conta da gente na hora de serem ditos, descritos e contados -na hora de sua declaração, pública ou privada.
Há três razões pelas quais o amor é absolutamente indissociável da literatura amorosa. A primeira é que a gente aprende a amar e a declarar o amor pela literatura. A segunda é que o amor se tornou relevante em nossa vida à força de ser descrito e idealizado pela literatura. A terceira é que o amor, como sentimento, é um efeito das palavras que o expressam: a literatura nos instiga a amar tanto quanto nossas próprias declarações amorosas.
Acabo de terminar a prazerosa leitura de "Como os Franceses Inventaram o Amor" (editora Prumo). Nele, Marilyn Yalom percorre a literatura francesa e revela que ela é um repertório completo do amor.
A coisa começa com o triângulo amoroso, que não é um acidente ou um imprevisto do amor; ao contrário, o amor começa, mil anos atrás, com o triângulo amoroso. Tristão escolta Isolda, a futura esposa de seu tio, e se apaixona por ela. Lancelote venera seu rei Artur, mas se apaixona pela rainha. E, em geral, os poetas do amor cortês amam damas casadas (e frequentemente fiéis a seus senhores, aliás).
A França é, para Yalom, a pátria do amor. Não só pela riqueza de sua literatura, mas justamente porque, na cultura francesa, do amor cortês do século 12 até as conversas das preciosas nos salões parisienses do século 17 (que Molière ridicularizava, mas também admirava), amar é, antes de mais nada, uma arte de dizer, de ser efeito das próprias palavras que usamos ao declarar e descrever nosso sentimento.
Alguns acham que falta amor em sua vida. Como Emma Bovary ou Anna Kariênina (extraordinária a tradução de Rubens Figueiredo, pela Cosac Naify), temem que, sem amor, sua vida nunca chegue a ter a dignidade de um romance. A eles, recomendo paciência: os tempos mudam, e talvez se afirme hoje, aos poucos, uma retórica nova, menos sentimental, capaz de dar valor literário a uma vida sem amores e paixões.
Outros se queixam dos estragos que o excesso de amor faz em sua vida. Aqui a cura é simples: eles não vão acreditar, mas basta se calar um pouco, assim como é suficiente não se coçar para que as picadas de mosquito parem de incomodar.

01 agosto 2013

Hedonistas?



O papa Francisco, quando era o cardeal Jorge Bergoglio, de Buenos Aires, conversava de religião com o amigo rabino Abraham Skorka. Os diálogos estão agora num livro, que, no Brasil, acaba de sair, "Sobre o Céu e a Terra" (editora Paralela).

Os dois religiosos tratam de matérias escabrosas --as quais não são apenas contracepção, células-tronco, divórcio, aborto e casamento gay, mas também as questões que desafiam a fé de qualquer um: por que a presença do mal no mundo? Deus é apenas uma resposta fantasiosa a nosso mal-estar psíquico? A religião foi inventada para servir de ópio dos povos?

Como ambos são decididos a parecerem simpáticos e razoáveis, o texto é agradável e um pouco previsível. Não que eu esperasse grandes viradas teológicas: de qualquer forma, um livro para o grande público não seria o lugar para isso. Mas esperava mais ousadia no pensamento.

Alguém dirá que ousadia não é coisa para papa --citação de Francisco na orelha do próprio livro: "A verdade religiosa não muda, mas se desenvolve e vai crescendo".

Sinto muito, a igreja tem uma história (muitas vezes sangrenta) de mudanças. Só para dar uma ideia, nos 2.000 anos desde que os apóstolos se reuniram em Jerusalém:

- Faz só 1.700 anos que acreditamos que o Pai e o Filho teriam a mesma natureza;
- Faz menos de 1.600 que acreditamos na maternidade divina de Maria, e por volta de 1.400 que acreditamos na perpétua virgindade da mesma;
- Faz apenas um pouco mais de 800 anos que o celibato se tornou obrigatório para o clero, e menos ainda que confissão e comunhão se tornaram obrigatórias uma vez por ano, na Páscoa;
- Faz por volta de 600 anos que a gente inventou o Purgatório;
- E é só desde 1870 que o papa é dogmaticamente infalível.

À vista dessa história de reviravoltas, em que cada um pode se tornar herético (o que, hoje, no máximo, vale uma excomunhão sem grande interesse, mas, no passado, acarretou consequências fatais para muitos), ninguém sabe as surpresas que nos reserva a igreja de amanhã.

Quanto a mim, espero há tempos a reabilitação dos cátaros, que são minha seita preferida (exterminada no século 12). Eles tinham a melhor solução teológica ao problema do mal na Terra e da estupidez dos homens: basta pensar que o mundo seja criação do diabo, e não de Deus.

Enfim, entre os muitos assuntos ao redor dos quais papa Francisco e o rabino Skorka concordam, um capturou minha atenção. Francisco diz "nesta civilização consumista, hedonista, narcisista...", e o rabino Skorka, "...em uma concepção hedonista da vida, egocêntrica, ególatra".

Embora o papa e o rabino não desprezem todos os prazeres terrenos (isso significaria desprezar a criação --pecado gravíssimo), ambos parecem convergir com um clichê dos críticos culturais contemporâneos, considerando que "hedonismo" é palavrão: a procura do prazer como bem único ou supremo parece ser o que eles menos gostam na nossa época. No Rio, aliás, Francisco mencionou o prazer entre os "ídolos" que nossa época colocaria no lugar de Deus. Algumas notas.

1) A correlação entre hedonismo e egoísmo é, no mínimo, problemática. Exemplo. Quem é mais egoísta? Alguém que se priva de toucinho na sexta-feira para ganhar o Paraíso? Ou alguém que transa quanto mais puder, sempre achando que o que ele mais gosta é ver sua parceira ou seu parceiro gozar?

2) Uma cultura que, de maneira quase unânime, não para de lamentar seu "hedonismo", só pode ser radicalmente anti-hedonista, ou seja, oposta ao prazer como bem. É fácil constatar que inclusive os que acreditam na existência de uma alma imortal sentem a finitude da vida; agora, é espantoso que, mesmo assim, o prazer continue tendo, para nós, uma conotação moral negativa. E a renúncia ao prazer (seja ela para satisfazer a Deus ou ao médico higienista), uma conotação moral positiva.

3) Nos três grandes monoteísmos, o prazer é facilmente culpado ("não se cansem de pedir perdão", encorajou papa Francisco). Alguém dirá que isso acontece sobretudo no cristianismo porque Deus se manifestou pelo sofrimento e não pelo prazer de seu filho. Essa é uma visão teológica à qual não sei contribuir. Mas a questão cultural correspondente é: o que fez o sucesso de uma religião que se fundou na ideia da paixão necessária do filho de Deus e, por consequência, na ideia de que o sofrimento e a renúncia ao prazer, de alguma forma, ganham pontos?


4) Só para lembrar: não era assim entre os pagãos, nem entre os libertinos dos séculos 16, 17 e 18.

25 julho 2013

O papa no Rio



 
Aeroporto do Galeão, domingo de manhã. O pouso do avião que trazia meu enteado estava previsto para as 8h30, mas aconteceu com uma hora de atraso --e, sobretudo, ele só recuperou a mala e saiu da alfândega ao meio-dia.
O aeroporto do Rio parecia uma praça de Roma num filme de Fellini: monges, freiras e padres por todos os lados, conversando numa Babel de línguas. Uma tropa de jovens argentinos, de camiseta azul e branco e com uma cruz no peito (ou nas costas?), cantava em coro alguma música, que eu não reconheci, mas de que Deus devia gostar à beça.
Outro grupo, na área de espera, misturava cantoria com batucada. Alguém rabugento poderia pensar: e se eu não estivesse a fim de ouvir?
Um pensamento idêntico me ocorreu à tarde, enquanto caminhava pela praia de São Conrado. Um carro passou por mim. Na verdade, não um carro, mas um som poderoso, veiculado por uma sucata dos anos 1980 e tocando rap-funk.
Os três jovens no veículo faziam um esforço considerável para parecer mal-encarados (seu jeito de "esquentar" as minas e intimidar os passeantes). Será que os jovens cantando no aeroporto, comparados com a gangue do carro, eram "angelicais"? Não, os dois grupos eram igualmente belicosos e desagradáveis; ambos queriam me obrigar a tocar a vida ao som da trilha deles.
Domingo, houve um arrastão por peregrinos na praia de Ipanema (foto na capa da Folha de segunda). Se eu estivesse na areia, tomando sol com caipirinha, teria detestado; talvez achasse melhor um arrastão tradicional, de celulares e carteiras.
Com isso, fiquei feliz, na segunda, ao saber que, no largo do Machado, bem onde peregrinos da Jornada Mundial da Juventude católica esperavam seu transporte, um grupo de mulheres dançava exibindo os seios. Os jovens peregrinos vaiaram.
Lembrei-me de que, nos meus anos de faculdade, em Genebra, um amigo, que morava perto de Plain palais, tinha adotado uma resposta sistemática aos missionários mórmons e testemunhas de Jeová que batiam à sua porta com frequência: ele sempre abria a porta completamente nu. E, se estivesse com a namorada, fazia questão que os dois abrissem a porta juntos. Provocação por provocação, acho a de meu amigo e das mulheres do largo do Machado mais engraçada.
Você acha essas atitudes infantis e um pouco primárias? Tudo bem, vamos falar de coisas primárias. O kit recebido pelos peregrinos inclui um "Manual de Bioética", de 75 páginas, produzido originalmente na França pela fundação Lejeune.
Como mostrou a reportagem de Fabio Brisolla na Folha de segunda, esse livrinho de "ética" é imperdível (confunde aborto com contracepção, propõe juízos de valor como verdades "científicas" etc.).
Para ter uma ideia da qualidade dos argumentos, na hora de atacar a reprodução assistida (pág. 35), o livrinho lembra que, em 2004, só na França, "havia cerca de 120 mil embriões congelados": essa frase é acompanhada pela imagem de um menino que treme de frio... Campanha do Agasalho para os embriões?
A edição brasileira contém um acréscimo sobre "A Teoria do Gênero", que eu mesmo não sei o que é. Também não sei decidir se o tal capítulo foi escrito mais com má-fé ou com ignorância --talvez com uma combinação das duas.
Na pág. 73, por exemplo, lemos: "Os adeptos da teoria do gênero [?] pretendem que, por um simples ato de vontade, poderíamos alterar a realidade do que somos, escolhendo a nossa identidade sexual: 'Eu não sou o corpo que tenho'." Mamma mia! Só para começar: descobrir-se um dia em desacordo com seu próprio corpo (que não tem nada a ver com "escolher" a identidade sexual) é uma experiência dramática e dolorosa, que merece, no mínimo, respeito.
O autor do livrinho me fez pensar no professor de religião de meu último ano de colégio, que, para contestar a teoria darwinista, declarou que ele daria um soco em quem lhe sugerisse que a mãe ou a avó dele eram macacas. A classe riu, e ele deve ter pensado que sua grosseria nos conquistara. Erro: naquele dia, a classe inteira se tornou darwinista.
Bom, para celebrar a vinda de papa Francisco, também li algo melhor, "Sobre o Céu e a Terra" (Paralela), diálogo entre dois líderes religiosos de Buenos Aires, papa Francisco (à época do diálogo ainda cardeal Bergoglio) e o rabino Skorka.

Ainda comentarei esse livro, mas, primeiro, preciso de um tempo para esquecer minha irritação com o paternalismo, que enfia um livrinho meio infame na goela dos peregrinos e reserva sua cara mais civilizada aos que sabem ler.

18 julho 2013

Meu vizinho genocida


Escrevi minha tese de doutorado de 1980 a 1991. No fundo, trata-se de um longa meditação sobre a ideia central de Hannah Arendt em "Eichmann em Jerusalém - Um Relato sobre a Banalidade do Mal" (Companhia das Letras).
Por isso, era inevitável que eu corresse para ver o filme de Margarethe von Trotta, que acaba de estrear, "Hannah Arendt". Tanto mais que ele narra especificamente os anos da vida de Arendt em que ela assistiu ao processo de Eichmann e relatou sua experiência para os leitores da revista "The New Yorker" (e, logo depois, no livro que citei).
Os artigos foram recebidos por uma salva de injúrias e ameaças. Mas, quando eu me interessei pela questão, a ideia de Arendt em "Eichmann em Jerusalém" já era universalmente aceita no campo dos "Holocaust Studies". Nota: a palavra "holocausto" evoca para mim um sacrifício, como se as mortes pudessem ser algum tipo de expiação; por isso, prefiro a palavra genocídio, que diz a verdade sobre a intenção dos assassinos.
Mas vamos por partes. Adolf Eichmann, tenente-coronel da SS, foi responsável pela logística do genocídio dos judeus pela Alemanha nazista. Em 1960, enquanto vivia escondido na Argentina, Eichmann foi capturado pelo Mossad israelense e levado a Jerusalém para ser processado.
Nessa altura, Arendt já tinha publicado há tempos (em 1951) seu "Origens do Totalitarismo" (Companhia das Letras). Fato extraordinário para a época, Arendt examinava os totalitarismos do século 20 levando stalinismo e nazismo para um mesmo tribunal. Ela encontrava as origens do totalitarismo do século 20 no imperialismo colonialista e no racismo (ideias, convicções, tanto das elites como dos povos) .
Pois bem, dez anos mais tarde, Arendt saía do processo de Eichmann pensando diferente: as convicções (por exemplo, antissemitas) dos funcionários do regime não bastavam para explicar o que os tinha transformado em assassinos genocidas, e o totalitarismo tinha sido possível não graças aos entusiasmos ideais de sua tropa, mas, ao contrário, graças a personagens quaisquer e banais, facilmente dispostos a abdicar sua faculdade de pensar.
Eichmann era um pateta --os filmados do processo, que o filme mostra, são extraordinários para sentir a desproporção entre o tamanho do crime e a mediocridade do criminoso. Preferiríamos que ele fosse um exaltado ou um monstro: sua loucura explicaria o horror de seus atos e o manteria solidamente afastado da gente, diferente de nós. Mas Eichmann não era um monstro, era o vizinho do apê ao lado.
Isso constitui uma desculpa? Ao contrário, aos meus olhos (e aos de Arendt também, acredito), a banalidade do assassino constitui uma agravante.
O vizinho alega as ordens, a ordem ou a fidelidade a qualquer grupo que seja, tudo porque quer parar de pensar: essa é sua culpa original e mais grave, graças à qual ele se torna capaz de agir como se não existissem considerações morais. De fato, ele quis sobretudo deixar de dialogar com sua consciência.
Talvez em 2015 eu publique minha tese. Fiquei a fim de explicar este fato um pouco assustador: há algo na dinâmica de nossa subjetividade normal que faz com que parar de pensar seja uma tentação constante, como se qualquer desculpa (ideológica, por exemplo) fosse boa para fugir da solidão, que é a condição do diálogo moral de cada um com sua consciência.
O coletivo (a nação, o partido, o sindicato, a torcida, a gangue, o grupo adolescente de amigos, a própria família) não oferece apenas ideologias e desculpas: ele fornece uma função para cada um de seus membros. Com isso, não preciso pensar para decidir minha vida --preciso apenas preencher minha função. É bom o que é funcional ao grupo -ruim, o que não é.
Qualquer crepúsculo do indivíduo é um crepúsculo da moral. Pensemos nisso, por favor, quando torcemos, agitamos bandeiras ou falamos, misteriosamente, na primeira do plural.
Minha tese tinha o título "A Paixão de Ser Instrumento". Ela perguntava: por que a ideia de se transformar em instrumento (abdicando a subjetividade da gente) teve e continua tendo tamanho sucesso?

Para qual razão psíquica fundamental teríamos todos uma predisposição a sermos seres estúpida e covardemente coletivos? Por que preferiríamos ser funcionários do horror a conviver com as incertezas cotidianas do juízo moral? A resposta não cabe aqui. Mas a questão não envelheceu.