29 dezembro 2011

Papai Noel por toda parte




Nossa 'generosidade' é narcisista; deve ser por isso que preferimos fantasiá-la de Papai Noel

Embora meu pai fosse agnóstico, ele tolerou que, durante a infância, eu tivesse uma educação religiosa -católica, no caso.

Se meu pai tivesse impedido que eu fosse batizado, suponho que minha avó materna teria me administrado o sacramento às escondidas. Era ela quem me levava para a missa do domingo; foi ela quem se encarregou de minha primeira comunhão e de minha crisma.

Talvez meu pai aceitasse a ingerência da minha avó para preservar a paz do lar. Ou talvez ele pensasse que um pouco de religião na infância não me faria mal (há uma ideia laica de que um pouco de fé, no começo da vida, pode nos dispor ao respeito pelo próximo e a saudáveis escrúpulos morais).

Seja como for, meu pai era cético, minha mãe, incerta, e minha avó, crente -assim como muitos eram crentes entre os professores, os parentes e os amigos dos meus pais. Havia, portanto, muitos adultos para quem, apesar do ceticismo do meu pai, Deus era uma verdade -não apenas um artifício pedagógico.

Essa divergência não existe em matéria de Papai Noel: a partir da pré-adolescência, ninguém acredita mais que ele exista de verdade. Ao contrário, uma criança de dez anos que escreva uma carta para o polo Norte desperta preocupação: "Atraso cognitivo ou emocional?", perguntam, preocupados, os mesmos adultos que, poucos anos antes, declaravam a essa criança que Papai Noel existe (e se felicitavam ao verificar que ela acreditava).

O Papai Noel não é o único caso de crença reservada à infância. Porém, por mais que os adultos contem histórias de bruxas ou ogros e achem graça na credulidade apavorada das crianças, é só no caso do Papai Noel que produzimos anualmente um grandioso culto público.

Imagine que um meteorito se choque com a terra hoje, 22 de dezembro, acabando com a espécie humana. No futuro, uma expedição arqueológica de um planeta distante chegará à Terra com o intento de entender quem eram os humanos. Eles concluirão que uma grande parte dos terrestres venerava um velhinho acima do peso, que vivia na neve, se locomovia em trenó e presenteava as crianças.

No melhor dos casos, haverá, entre os ETs, uma espécie de Paul Veyne (o autor de "Acreditaram os Gregos em seus Mitos?", Edições 70): estranhando a contradição entre nossa cultura e o infantilismo de nossas crenças, ele escreverá "Será que os terrestres acreditavam mesmo em Papai Noel?".

Enfim, o fato é que, nesta estação, enchemos nossas cidades de imagens do Papai Noel e encorajamos as crianças a conversar com os papais noéis que povoam lojas e shopping centers.

Milagre natalino: sábado à noite, em São Paulo, a avenida Paulista (fechada aos carros) era um desfile alegre de famílias. Às crianças pequenas, boquiabertas, só sobrava acreditar no Papai Noel: se ele não existisse, por que os adultos se dariam àquele trabalho?

Alguns dizem que tudo isso não passa de uma invenção do comércio -para que todos esperem receber presentes e, na falta de um Papai Noel real, sejamos obrigados a tomar seu lugar, indo às compras. Eu tendo a pensar que o comércio pegou carona numa invenção que não foi dele, mas nossa, dos adultos em geral.

Talvez precisemos do Papai Noel para encarnar e disseminar o espírito natalino. Seríamos crédulos na infância e faríamos de conta uma vez por ano, para preservar um ideal de solidariedade e bonomia.

E há outra explicação, menos poética, mas não excludente. Amamos nossas crianças de uma maneira que não é exatamente prova de nossa grandeza de ânimo.

Sobretudo nas últimas décadas, enfiamo-lhes presentes ou guloseimas goela abaixo, que elas os mereçam ou não, para vê-las satisfeitas e gratificadas (mesmo que seja só por um instante).

Com que propósito? Esperamos que a fartura de nossos rebentos compense todas as nossas frustrações, passadas e presentes.

Como nos envergonhamos dessa "generosidade" narcisista, o jeito é fantasiá-la de Papai Noel: não somos nós que mimamos e estragamos nossas crianças, é um velhinho vestido de vermelho.

É um problema? Não sei, mas um adulto que acredita no Papai Noel é alguém convencido de que o almoço é de graça e não é preciso se esforçar: o mundo, os deuses ou a sorte lhe darão o que ele quer, que ele mereça ou não. É isso que queremos que nossas crianças acreditem?

22 dezembro 2011

Papai Noel por toda parte

Nossa 'generosidade' é narcisista; deve ser por isso que preferimos fantasiá-la de Papai Noel

Embora meu pai fosse agnóstico, ele tolerou que, durante a infância, eu tivesse uma educação religiosa -católica, no caso.

Se meu pai tivesse impedido que eu fosse batizado, suponho que minha avó materna teria me administrado o sacramento às escondidas. Era ela quem me levava para a missa do domingo; foi ela quem se encarregou de minha primeira comunhão e de minha crisma.

Talvez meu pai aceitasse a ingerência da minha avó para preservar a paz do lar. Ou talvez ele pensasse que um pouco de religião na infância não me faria mal (há uma ideia laica de que um pouco de fé, no começo da vida, pode nos dispor ao respeito pelo próximo e a saudáveis escrúpulos morais).

Seja como for, meu pai era cético, minha mãe, incerta, e minha avó, crente -assim como muitos eram crentes entre os professores, os parentes e os amigos dos meus pais. Havia, portanto, muitos adultos para quem, apesar do ceticismo do meu pai, Deus era uma verdade -não apenas um artifício pedagógico.

Essa divergência não existe em matéria de Papai Noel: a partir da pré-adolescência, ninguém acredita mais que ele exista de verdade. Ao contrário, uma criança de dez anos que escreva uma carta para o polo Norte desperta preocupação: "Atraso cognitivo ou emocional?", perguntam, preocupados, os mesmos adultos que, poucos anos antes, declaravam a essa criança que Papai Noel existe (e se felicitavam ao verificar que ela acreditava).

O Papai Noel não é o único caso de crença reservada à infância. Porém, por mais que os adultos contem histórias de bruxas ou ogros e achem graça na credulidade apavorada das crianças, é só no caso do Papai Noel que produzimos anualmente um grandioso culto público.

Imagine que um meteorito se choque com a terra hoje, 22 de dezembro, acabando com a espécie humana. No futuro, uma expedição arqueológica de um planeta distante chegará à Terra com o intento de entender quem eram os humanos. Eles concluirão que uma grande parte dos terrestres venerava um velhinho acima do peso, que vivia na neve, se locomovia em trenó e presenteava as crianças.

No melhor dos casos, haverá, entre os ETs, uma espécie de Paul Veyne (o autor de "Acreditaram os Gregos em seus Mitos?", Edições 70): estranhando a contradição entre nossa cultura e o infantilismo de nossas crenças, ele escreverá "Será que os terrestres acreditavam mesmo em Papai Noel?".

Enfim, o fato é que, nesta estação, enchemos nossas cidades de imagens do Papai Noel e encorajamos as crianças a conversar com os papais noéis que povoam lojas e shopping centers.

Milagre natalino: sábado à noite, em São Paulo, a avenida Paulista (fechada aos carros) era um desfile alegre de famílias. Às crianças pequenas, boquiabertas, só sobrava acreditar no Papai Noel: se ele não existisse, por que os adultos se dariam àquele trabalho?

Alguns dizem que tudo isso não passa de uma invenção do comércio -para que todos esperem receber presentes e, na falta de um Papai Noel real, sejamos obrigados a tomar seu lugar, indo às compras. Eu tendo a pensar que o comércio pegou carona numa invenção que não foi dele, mas nossa, dos adultos em geral.

Talvez precisemos do Papai Noel para encarnar e disseminar o espírito natalino. Seríamos crédulos na infância e faríamos de conta uma vez por ano, para preservar um ideal de solidariedade e bonomia.

E há outra explicação, menos poética, mas não excludente. Amamos nossas crianças de uma maneira que não é exatamente prova de nossa grandeza de ânimo.

Sobretudo nas últimas décadas, enfiamo-lhes presentes ou guloseimas goela abaixo, que elas os mereçam ou não, para vê-las satisfeitas e gratificadas (mesmo que seja só por um instante).

Com que propósito? Esperamos que a fartura de nossos rebentos compense todas as nossas frustrações, passadas e presentes.

Como nos envergonhamos dessa "generosidade" narcisista, o jeito é fantasiá-la de Papai Noel: não somos nós que mimamos e estragamos nossas crianças, é um velhinho vestido de vermelho.

É um problema? Não sei, mas um adulto que acredita no Papai Noel é alguém convencido de que o almoço é de graça e não é preciso se esforçar: o mundo, os deuses ou a sorte lhe darão o que ele quer, que ele mereça ou não. É isso que queremos que nossas crianças acreditem?

Feliz Natal, e que o Papai Noel não se esqueça de ninguém.

15 dezembro 2011

Sentidos do fundamentalismo

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O fundamentalista não consegue praticar normas que ele prega e sente inveja de quem não as respeita
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Eis uma (pequena) contribuição ao debate sobre fundamentalismo que se deu, recentemente, na Folha (artigos de Ives Gandra da Silva Martins, 24/11, e Daniel Sottomaior, 8/12; cartas dos leitores Antônio Ilário Felici e Francisco Guimarães, 9/12; coluna de Hélio Schwartsman, 10/12).

Fundamentalista é, antes de mais nada, quem leva a sério sua convicção e segue à risca os preceitos que derivam dela.

Se você for católico, não se divorciará nem comerá carne na Sexta da Paixão; se for judeu, no sábado, evitará ligar a luz elétrica; se for muçulmano, não tomará álcool e, caso seja mulher, circulará de véu fora de casa; se for ateu, não invocará a misericórdia divina, nem mesmo em momentos de extremo perigo.

Meu pai era convencido de que existem mistérios para os quais qualquer resposta seria desonesta.

Nesse seu agnosticismo, ele era fundamentalista no sentido que acabo de definir. Um dia, quando meu irmão e eu éramos já adultos, ele quis que prometêssemos que, se ele, na agonia, pedisse a assistência de um padre, nós lhe negaríamos esse recurso, considerando que sua sanidade mental teria se perdido no aperto acovardado da última hora.

Prometemos. Por sorte, ele morreu sem pedir conforto religioso algum. Se ele tivesse pedido, não sei se eu teria mantido minha promessa; à diferença dele, eu não sou fundamentalista: decido e escolho segundo as circunstâncias e não por princípio.

Mesmo assim, tenho respeito, se não simpatia, por esse tipo de fundamentalismo. E acho que todos deveriam poder levar (e viver) suas convicções a sério, se assim quiserem -claro, nos limites básicos impostos pelos códigos Penal e Civil, que regem a convivência social.

Mas tenho pressa de chegar ao outro sentido, pelo qual fundamentalista é quem exige que os preceitos que derivam de suas convicções ou de sua fé sejam observados por todos -ou mesmo que eles se transformem em lei da sociedade inteira.

Esse tipo de fundamentalista, seja qual for sua convicção, religiosa ou ateia, é animado pela necessidade de converter os outros, a qualquer custo. Em geral, ele acha que a violência de seu espírito "missionário" é um corolário de sua fé e uma prova de sua generosidade: "Forçando o outro a se converter, eu só quero seu bem, mesmo que seja contra a vontade dele".

Com esse tipo de fundamentalista, eu implico, por duas razões.

Primeiro, detesto que alguém esconda sua violência atrás de pretensas boas intenções e não gosto da ideia de que um outro imagine saber o que é "bom" para mim.

Segundo, não acredito que alguém possa querer converter os outros à força por generosidade.
Há duas razões pelas quais, em regra, alguém quer impor as normas de suas convicções aos outros, e ambas são péssimas:

1) Ele precisa que ao menos os outros respeitem essas normas, que ele preza, mas não consegue impor a si mesmo -ou seja, incapaz de obedecer a seus próprios princípios, ele quer validá-los pela obediência forçada dos outros;

2) Ele quer se livrar da inveja que ele sente da vida dos que não respeitam essas mesmas normas (para assinalar a componente de inveja, presente nos moralistas, Alfred Kinsey, o grande sociólogo e sexólogo, dizia que "ninfômana" e "tarado" são os que conseguem ter uma vida sexual mais intensa do que a da gente).
Em suma, os motores de muitos fundamentalismos missionários são a incapacidade de viver à altura dos preceitos pregados e a inveja de quem não respeita esses preceitos.

Por isso, no debate (ou na gritaria) entre homossexuais e evangélicos, por exemplo, nem preciso decidir se gosto mais de Oscar Wilde ou do apóstolo Paulo.

Pois, bem antes e independentemente disso, a oposição relevante é a seguinte: os homossexuais não pretendem que os evangélicos passem todos a transar com parceiros do mesmo sexo ou a frequentar baladas gays, enquanto os evangélicos pretendem que os homossexuais se convertam e renunciem a seu desejo (transformado em "pecado") -ou, no mínimo, que eles sejam impedidos de viver segundo suas próprias disposições e convicções.

Ou seja, para se situar nessa oposição, não é preciso escolher entre as ideias e as práticas das partes, mas entre os que querem regrar a vida de todos segundo seus preceitos e os que preferem que, nos limites da lei, todos possam pensar e agir como quiserem.

Assim sendo, como se diz na roleta, "façam suas apostas".

08 dezembro 2011

Pentimentos

Sonhamos com escolhas passadas alternativas, que teriam nos levado a um presente diferente

"Pentimento" é a palavra italiana para arrependimento, mas designa (em muitas línguas) uma pintura, um desenho ou um esboço encoberto pela versão final de um quadro.

Às vezes, com o passar do tempo, a tinta deixa transparecer uma composição em cima da qual o artista pintou uma nova versão.

Outras vezes, os raios-x dos restauradores desvendam opções anteriores, que permaneceram debaixo da obra final. Esses esboços ou pinturas, que o artista rejeitou e encobriu, são os pentimentos, que foram descartados sem ser propriamente apagados.

Visível ou não, o pentimento faz parte do quadro, assim como fazem parte da nossa vida muitas tentações e muitos projetos dos quais desistimos. São restos do passado que, escondidos e não apagados, transparecem no presente, como potencialidades que não foram realizadas, mas que, mesmo assim, integram a nossa história.

Pensei nisso assistindo a "Um Dia", de Lone Scherfig, que estreou na sexta passada. O filme é a adaptação do romance homônimo de David Nicholls (Intrínseca), que foi uma das leituras que mais me tocaram neste ano e que já comentei brevemente na coluna de 21 de julho.

O livro e o filme (cujo roteiro é do próprio Nicholls) contam a história de Emma e Dexter, que são unidos pelo pentimento: cada um deles é o grande pentimento do outro -ou seja, ao longo dos anos, cada um é, para o outro, a lembrança de que um outro destino teria sido possível.

Reflexões, saindo do cinema:

1) Nossas vidas são abarrotadas de caminhos que deixamos de pegar; são todos pentimentos, mais ou menos encobertos: histórias que não se realizaram. Por que não se realizaram? Em geral, pensamos que nos faltou a coragem: não soubemos renunciar às coisas das quais era necessário abdicar para que outras escolhas tivessem uma chance. E é verdade que, quase sempre, desistimos de desejos, paixões e sonhos porque custamos a aceitar que nada se realiza sem perdas: por não querermos perder nada, acabamos perdendo tudo.

Emma e Dexter, por exemplo, ficam cada um como pentimento do outro porque nenhum dos dois consegue renunciar à sua insegurança (que é, aliás, o que os torna tão tocantes e parecidos com a gente): ela morrendo de medo de ser rejeitada, e ele, sedento de aprovação, fama e sucesso.

2) O problema dos pentimentos é que eles esvaziam a vida que temos. O passado que não se realizou funciona como a miragem da felicidade que teria sido possível se tivéssemos feito a escolha "certa". Diante disso, de que adianta qualquer experiência presente? Emma e Dexter, por exemplo, são condenados a fracassos amorosos pela própria importância de seu pentimento.

3) Nem sempre os pentimentos são bons conselheiros -até porque, às vezes, eles são falsos (esse, obviamente, não é o caso de Emma e Dexter). Hoje, é fácil esbarrar em espectros do passado: as redes sociais proporcionam reencontros improváveis e, com isso, criam pentimentos artificiais. Graças às redes, uma história que foi realmente apagada da memória (não apenas encoberta) pode renascer como se representasse uma grande potencialidade à qual teríamos renunciado.

No reencontro, um namorico da adolescência, insignificante e esquecido, transforma-se em (falso) pentimento, ou seja, numa aventura que poderia ter aberto para nós as portas do paraíso (onde ainda estaríamos agora, se tivéssemos ousado trilhar esse caminho).

Quando examino as fotos de minhas turmas do colégio, sempre fico com a impressão de que deixei amizades e amores inacabados ou nem começados, mas que teriam revolucionado meu futuro. É como se me perguntasse "Quem era minha Emma? Para quem eu era o Dexter?", fantasiando pentimentos de relações que nunca existiram.

Somos perigosamente nostálgicos de escolhas passadas alternativas, que teriam nos levado a um presente diferente. Se essas escolhas não existiram, somos capazes de inventá-las -e de vivê-las como pentimentos.

Avisos: os pentimentos não são necessariamente recíprocos, e os falsos pentimentos, revisitados, são pequenas receitas para o desastre.

4) Estreia amanhã "As Canções", de Eduardo Coutinho. Homens e mulheres cantam a música que foi crucial na sua vida (e explicam por que ela foi crucial). Em alguns casos, especialmente tocantes, as músicas são trilhas sonoras de pentimentos.

01 dezembro 2011

A pele que habito (e a dos outros)

Há homens que sonham em ser transformados ("contra sua vontade") em mulheres promíscuas e submissas

Nesta altura, considero conhecida a trama do último Almodóvar, "A Pele que Habito": um cirurgião, o doutor Ledgard, sequestra um jovem (Vicente) durante anos e o transforma numa mulher (Vera).

Na saída do cinema, alguém comenta: "Se acontecesse comigo, eu ficaria namorando o médico. Fazer o quê? Pênis, eu já não teria mais. E não estaria a fim de fugir. Voltar para minha vida de antes e contar que me tornei mulher para minha mãe e para meus amigos, já pensou?".

Infelizmente, na situação da vítima de Ledgard, ninguém conseguiria fazer prova de tamanho pragmatismo, por uma razão simples: a sensação íntima e profunda de ser homem ou mulher (a identidade de gênero) não é coisa que possa ser mudada.

É possível, isso sim (e acontece no caso dos transexuais), "retificar" o corpo, caso ele não coincida com a identidade de gênero de alguém.

Se você sempre se sentiu homem num corpo de mulher ou mulher num corpo de homem, se você tem a trágica impressão de estar no corpo errado, pois bem, nesse caso, à força de hormônios, operações cirúrgicas e orientações terapêuticas, você talvez possa modificar seu corpo de maneira que ele concorde com seu sentimento de identidade.

Mas não há tratamentos que, ao transformar seu corpo, possam levar você a mudar seu sentimento profundo de ser homem ou mulher.

Conclusão, se um homem fosse transformado em mulher à força, ele não se resignaria (pragmaticamente), mas passaria a vida querendo que seu corpo fosse retificado para ele voltar a ser o homem que ele nunca deixou de ser.

Em 24 de fevereiro de 2000, nesta coluna ("A terapia da faca e do superbonder"), contei a história de David Reimer, cujo pênis foi decepado acidentalmente na circuncisão, em 1966. Por sugestão do psicólogo John Money, Reimer foi castrado e criado como menina, com a ideia de que é melhor ser uma menina fabricada (na faca, com hormônios, roupas e brincadeiras adequadas) do que um menino com uma prótese peniana.

John Money escondeu o desespero de Reimer durante infância e adolescência. Reimer, ao descobrir o engodo do qual tinha sido vítima, parou a palhaçada e voltou a ser homem. Atualizando: em 2004, Reimer se suicidou.

Por qual loucura Money imaginou que, ao transformar o corpo de um menino, ele poderia mudar sua identidade e fazer dele uma mulher?

A resposta está na onipotência das ciências humanas nos anos 60, mas também numa fantasia erótica masculina, que talvez Money compartilhasse e que paira tanto sobre "A Pele que Habito" quanto sobre o livro (imperdível) que inspira o filme: "Tarântula", de Thierry Jonquet (Record).

Há sites (sixpacksite.com; tgcomics.com; fictionmania.tv) inteiramente dedicados a ficções e quadrinhos que elaboram fantasias de feminização forçada. A clientela desses sites é de homens heterossexuais, que sonham em ser transformados ("contra sua vontade") em mulheres promíscuas e submissas. Dica: os machos que se gabam por levar as mulheres à loucura podem estar com vontade de sentir neles mesmos o efeito de seus próprios (supostos) talentos.

Mais perto do cotidiano, "A Pele que Habito" é também apenas mais uma parábola do amor, pois é banal que o amor nos leve a querer transformar parceiros e parceiras de forma que eles correspondam a nossas expectativas.

O projeto de moldar o outro transforma qualquer convívio numa violência. Mas essa violência não impede nada: no clássico "Post-traumatic Therapy and Victims of Violence" (terapia pós-traumática e vítimas da violência, Routledge, 1988), Frank Ochberg enumerava, entre os sintomas habituais das vítimas, tanto um ódio ressentido e doentio quanto sentimentos positivos -incluindo amor romântico, sujeição e, paradoxalmente, gratidão.

"A Pele que Habito" poderia ser, em suma, a versão trágica e realista de "My Fair Lady". No musical, Eliza Doolittle acaba amando mais que odiando o prof. Higgins, que a transformou numa "lady". No filme de Almodóvar, talvez Vera odeie Ledgard mais do que o ama. Mas o que importa é que os sentimentos da vítima são sempre ambivalentes.

É essa a chave para entender as mil histórias de vítimas que poderiam ou deveriam ter fugido, como a de Natascha Kampusch, abusada por "3096 Dias" (Verus ed.), ou como a da menina que foi escrava sexual de Gaddafi durante cinco anos