27 outubro 2005

Saber ler e escrever

Em 2003, o governo lançou o programa "Por um Brasil Alfabetizado". Desde então, periodicamente, há cerimônias solenes de formatura para os adultos que aprenderam a ler e a escrever e para os que completaram o ensino fundamental. Com freqüência, o próprio presidente Lula felicita a turma.

No sábado passado, no Rio de Janeiro, o presidente disse aos alunos que, uma vez formados, eles poderão mais facilmente encontrar emprego e ganhar mais do que um salário mínimo. Além disso, o progresso na qualificação dos trabalhadores contribuirá para o desenvolvimento nacional.
Um mês atrás, em circunstâncias análogas, o presidente evocou uma lembrança tocante: seu pai, analfabeto, comprava o jornal para que os outros não descobrissem que ele não sabia ler.

Juntando Fome Zero, programa de alfabetização e campanha da auto-estima brasileira, ele afirmou: "Comer e estudar possibilitam ter força para trabalhar. Possibilitam estufar o peito e dizer "eu sou brasileiro e não desisto nunca'".

Não há como não concordar: o analfabetismo é injustamente vivido como vergonha, o esforço de quem se alfabetiza na idade adulta pode e deve ser motivo de grande orgulho e, certamente, é mais fácil trabalhar comendo e sabendo ler e escrever.

Mas resta que, nos discursos citados, nada parece ser dito sobre o que significa mesmo aprender a ler (não tenho acesso à íntegra desses discursos, talvez minha observação valha apenas para a seleção relatada na imprensa).

Algum leitor tomará a dianteira: "Agora ele vai nos dizer que o importante, na alfabetização, não é melhorar o acesso ao mercado do trabalho e permitir o exercício digno da cidadania (saber ler formulários, votar, informar-se). Ele vai dar uma de intelectual e afirmar que o pessoal deve se alfabetizar para ler Camões e Machado de Assis".

É quase isso. Explico.

No começo dos anos 1970, em Genebra, fiz parte de um pequeno grupo de acadêmicos italianos que organizou um curso noturno para os imigrantes que quisessem completar o ensino fundamental. Leitores de Paulo Freire, tínhamos a ambição de fazer de nossas aulas um momento de "conscientização" (era a palavra na moda).

Pois bem, as pequenas turmas que ajudamos se interessavam, obviamente, pelo diploma (que era a condição para se candidatar a um emprego público na Itália). Mas o que todos queriam, o que os motivava, depois de um trabalho brutal, a passar as noites numa sala de aula era outra coisa.

Foi a pedido deles que inventei um jeito de resumir muitos daqueles livros sem os quais o mundo fica mais triste e pobre. Resumi a "Divina Comédia", "Dom Quixote", "Crime e Castigo" e "Moby Dick". Resumi "Édipo Rei" e a "Fedra" de Racine. Resumi "O Jovem Törless" e "O Coração das Trevas". Para cada livro, eu contava a história, mostrava como ela nos tocava de perto e trazia um parágrafo ou dois de um momento crucial, para a gente ler e comentar. Às vezes, mudava as palavras ou endireitava a sintaxe, simplificava o texto.

Mais pelo fim do curso, a gente ia ao cinema aos sábado. Depois do filme, durante noitadas das quais ainda sinto saudade, no café Landolt, era um festival de nexos e interpretações: "Ele fez que nem o capitão Ahab", "Ela era uma Fedra mesmo", "O outro se tomava pelo Grande Inquisidor" e por aí vai. As conversas se confundiam com o papo dos estudantes de letras nas mesas ao lado da nossa. Emocionava-me a familiaridade com a qual tratavam a tradição literária, mas o fato mais comovedor, para mim e para eles, era que sua experiência e sua fruição do mundo eram, de repente, mais ricas, mais complexas, mais humanas.

Como é possível que, na hora de promover o programa nacional de alfabetização, só pareçam importar as vantagens materiais e sociais do diploma? Qual incompreensão do sentido da cultura e de seu uso faz que os discursos que felicitam os candidatos só falem de emprego e mudança de status?
Não vale responder que os candidatos têm necessidades imediatas (trabalho, arroz e feijão), enquanto a cultura é um luxo: negar esse "luxo" sob pretexto de que ele não enche a barriga significa negar a humanidade dos que se sentam num banco de escola.

No discurso de setembro que citei antes, o presidente concluiu: "Se um filho de pai e mãe analfabetos, um torneiro mecânico de formação chegou a presidente da República, vocês acreditem que se quiserem podem chegar muito mais alto do que os livros dizem que vocês podem chegar. É só ter vontade, e não parem de estudar." (obviamente, o destaque é meu).
Paradoxo: se os livros dizem que a gente não pode subir na vida, por que aprender a ler e por que continuar estudando? Ah, claro, tinha esquecido: para ganhar um emprego melhor...

Não sei de quais livros o presidente está falando, mas sei que os livros de que gosto (e que meu alunos de Genebra gostavam) não dizem ao leitor que ele não pode subir na vida. Ao contrário, esses livros ensinam a sonhar, a viver a vida mais plenamente e a levá-la a sério. Em suma, eles ensinam a ser gente. Das várias maneiras de "subir na vida", é a que mais vale a pena.

20 outubro 2005

Assim é a vida

"Assim é a vida", "C'est la vie", "That's life", "Das ist das Leben", "É la vita": a expressão existe em todas as línguas que conheço e, em todas elas, pode ser usada num amplo leque de tonalidades, que vai do sarcasmo ressentido e cínico ("É bem a porcaria que sempre pensei que fosse") até a euforia quase maníaca ("Que maravilha!").

No meio desse leque, há um tom médio, que é o que prefiro, mas que é raro: ele concilia, misteriosamente, as dores e as penas da existência com a possibilidade de aceitá-la e mesmo de amá-la, sem entusiasmo descabido. Um grande psicanalista, Heinz Kohut, descreveu assim a sabedoria à qual podemos aspirar e que corresponde talvez ao tom que tento definir: é a sensação de "um tranqüilo triunfo interior com uma mistura de melancolia reconhecida".

Os escritores e os poetas que vivem e produzem nesse tom médio não saem de minha mesa de cabeceira. Não é uma questão de apreciação estética: na poesia americana moderna, por exemplo, Walt Whitman (eufórico) é provavelmente melhor poeta que Emily Dickinson ou Edgar Lee Masters, que cantarolam e sussurram no tom médio.

Tampouco é uma questão, por assim dizer, terapêutica: o entusiasmo contagioso de Whitman já me serviu mais de uma vez para sair de uma fossa. Faça a experiência: do fundo de uma tristeza em que o mundo pode perder sentido, declame "Song of Myself", "Canto de Mim Mesmo". É fortemente revigorante. Mas agora tente outra coisa, leia em voz baixa "Spoon River Anthology", a antologia de Spoon River, de E.L. Masters: o poema é composto por uma série de lápides mortuárias, cada uma contando as gestas duvidosas dos mortos do vilarejo.

A princípio, não parece ser uma leitura para melhorar o humor, mas, aos poucos, as vidas e as mortes triviais do povo de Spoon River assumem uma dignidade e um valor que são contagiosos e resgatam a trivialidade de nossa própria vida (e morte). Surge uma espécie de alegria triste, nada eufórica, mas profunda, duradoura e sobretudo sem ilusões. Seis anos atrás, um filme prodigioso, "Magnólia", de Paul Thomas Anderson, produziu em mim um efeito parecido.

Quem assistiu a "Magnólia" deve se lembrar do momento em que todos os personagens, separada e simultaneamente (cada um em seu lugar trágico), cantam uma mesma música, que é uma espécie de hino ao caráter inelutável da vida: "...and it is not going to stop, till you wisen up..." (e não vai parar até que você crie juízo). É um exemplo perfeito da "alegria" melancólica que é fruto da aceitação do mundo como ele é. Pois bem, está em pré-estréia em São Paulo "Crash - No Limite". É o primeiro filme de Paul Haggis, que foi roteirista de "Menina de Ouro". Quando o filme saiu nos Estados Unidos, no ano passado, a crítica (elogiosa) salientou a apresentação brutal da difícil convivência de etnias diferentes na sociedade americana.

De fato, o filme é um soco no estômago de quem acredita nos efeitos lenitivos do politicamente correto: latinos, negros, brancos e orientais se agridem e se insultam pelas ruas de Los Angeles. Parece fracassar a esperança (americana e, em geral, iluminista) de um caldeirão em que as diferenças étnicas, culturais e sociais seriam quase irrelevantes e prevaleceria o sentimento de pertencermos todos à mesma espécie.

Mas dizer que o filme de Haggis mostra a morte do sonho moderno da convivência dos diferentes seria, no mínimo, ingênuo. Ao contrário, o milagre de "Crash" (choque ou batida) é que, no filme, a feiúra e a loucura do cotidiano, assim como o próprio choque das diferenças, nos aparecem como provas de nossa humanidade comum. Pensando bem, aliás, a única versão possível do sonho moderno talvez seja esta: não a paz e o respeito recíproco, mas a descoberta de um lote de misérias e incertezas que enxergamos nos outros porque, no fundo, são sempre parecidas com as da gente.

O sonho moderno não se realiza numa fanfarra de nobres idéias compartilhadas, mas na ternura de nosso olhar diante da imperfeição do mundo, ou seja, de todos nós. Um policial abusa de sua autoridade para enfiar a mão entre as pernas de uma mulher na hora de revistá-la; o mesmo policial pode arriscar a vida para salvar a dita mulher do fogo.

Um jovem bem intencionado é horrorizado pelo preconceito racial, mas (reflexo de defesa) é o primeiro a atirar num negro que enfia a mão no bolso. Um assaltante de carros pode atropelar um chinês mas pode também soltar um carregamento inteiro de imigrantes ilegais fadados ao trabalho escravo. A arrogância de uma dama de classe "A" acaba quando ela cai na escada de casa e o único abraço que ela encontra é o de sua empregada.

A arrogância de um guardião da lei acaba quando ele assiste o pai doente no meio da noite. E por aí vai. Isto é, lá vamos nós: meio heróis, meio pilantras, capazes do pior e do melhor. Assim é a vida, no tom certo. Não perca "Crash - No Limite" sob nenhum pretexto.


Correção: na coluna da semana passada, tratei do livro "Fadas no Divã", de Diana e Mário Corso. Como uma leitora me fez prontamente notar, a editora do livro não é Artes Médicas, mas ArtMed.

13 outubro 2005

"Fadas no Divã"

Acabo de ler "Fadas no Divã - Psicanálise nas Histórias Infantis", de Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso (Artes Médicas). A leitura, encantadora, produziu uma lembrança.

Quando meu filho Maximiliano era pequeno, inventei uma espécie de seriado, destinado a acalmá-lo na hora de dormir (momento que ele detestava). A história não se compara com o maravilhoso conto do vampiro vegetariano inventado por Mário Corso para suas filhas, mas é o que tenho.

Eu contava, então, as aventuras de Maximilino (sic) e da bruxa Meninge. O modelo narrativo era calcado na viagem de Pinóquio ao país de Cocanha. No começo de cada episódio, Maximilino se mostrava desobediente, preguiçoso ou desrespeitoso. A bruxa Meninge, sempre espreitando crianças com esses defeitos, aparecia para tentar Maximilino. Por exemplo: "Você não gosta de dormir cedo? Tem razão, querido. No meu país, não há adultos chatos e ninguém atrapalha as crianças que não querem ir para cama: elas brincam noite adentro. Quer vir comigo?".

Maximilino topava. A bruxa cumpria sua promessa ao pé da letra, e aqui estava a armadilha: no país de Meninge, as crianças brincavam tudo o que queriam, mas seu "querer" se transformava num "dever" mais assombroso que a chatice dos adultos, pois, naquele país, as crianças não podiam dormir nunca. Maximilino morria de saudade de sua mãe, de seu pai e sobretudo de sua cama. A coisa acabava bem: quando Maximilino expressava um arrependimento sincero, uma fada o ajudava a voltar para casa, considerando que ele tinha entendido a "lição".

Mas qual era a "lição"? Certamente, eu pensava estar administrando doses de sabedoria, tipo: os pais sabem que nada é bom sem limites.

Ora, para cada história da tradição e para várias da atualidade, Mário e Diana Corso mostram que os contos infantis (inventados ou não) são mais importantes e eficientes do que a simples e conclusiva "moral da história". Para as crianças, os contos infantis são instrumentos para o conhecimento do mundo: ao mesmo tempo, enunciados de problemas e propostas de soluções. Eles não funcionam como exemplos, mas como exercícios narrativos graças aos quais a criança descobre a complexidade das relações e dos afetos e elabora estratégias possíveis de ação.

Em matéria de relações e afetos, os contos são o equivalente das experiências concretas pelas quais uma criança adquire a capacidade de estabelecer nexos e executar operações lógicas. Só que a tarefa dos contos é mais complexa: aprendo o que é a causalidade à força de empurrar copos até que caiam, mas como faço para aprender quais regras ordenam o amor devorante de uma mãe, o ciúme de uma madrasta ou meu próprio medo de crescer? Uma criança se sente inadequada e rejeitada, outra não tolera uma separação que se faz necessária, outra se sente amada demais e prestes a ser devorada, outra começa a pensar que, de fato, ela foi adotada, outra ainda não sabe o que fazer com sua curiosidade sexual ou não consegue imaginar como sair um dia do amparo familiar para se aventurar na vida. Os contos infantis permitem formular as questões e explorar as soluções possíveis.

O livro de Diana e Mário Corso, justamente, é organizado em capítulos segundo as questões e as soluções propostas pelos contos.

Mas voltemos à história de Maximilino e Meninge. Na hora em que meu filho tentava descobrir qual seria a balança certa de deveres e prazeres, eu lhe propunha uma narrativa radical segundo a qual, na vida, só haveria deveres: nas minhas histórias, o prazer se tornava sempre um pesadelo, ou melhor, uma obrigação pior do que o dever.

Depois da leitura de "Fadas no Divã", não é difícil entender por que muitos contos que os pais inventam para seus rebentos podem ser elogios da obediência e do dever como únicas soluções para os problemas da vida. Os filhos recém-chegados, por mais que façam nossa felicidade, são um novo fardo, mas, obviamente, não queremos admitir que somos pais também por obrigação. A apologia do dever, com a qual enchemos os ouvidos de nossos filhos, é em grande parte endereçada a nós mesmos: uma exortação a persistir, teimosamente, na tarefa de sermos pais.
"Fadas no Divã" tem um precedente ilustre, de Bruno Bettelheim, "Psicanálise dos Contos de Fada". Mas o livro de Diana e Mário Corso é, simplesmente, melhor. Por duas razões.

A primeira é que Bettelheim se ocupou só dos contos de fadas tradicionais, enquanto Diana e Mário Corso analisam também as principais narrativas infantis contemporâneas, de Mafalda a Harry Potter.

A segunda é substancial: pela sutileza da interpretação dos contos e pela clareza do texto, "Fadas no Divã" é uma extraordinária introdução à psicanálise. Não é surpreendente: os contos infantis, afinal, são o repertório de conflitos, fantasias e afetos que ainda estão em todos nós.


Nota: o filme "Os Irmãos Grimm", de Terry Gilliam, que está em cartaz nestes dias, tem justamente o mérito de lembrar que os contos de fadas servem para encontrar saídas nos apertos.

06 outubro 2005

Armas: a solução de João

No dia 23 de outubro, os cidadãos brasileiros decidirão se, em vista de um bem comum e superior, eles querem ou não se privar do direito de comprar legalmente armas e munições.

Atualmente, no Brasil, esse direito é regulamentado. Só é possível comprar armas até o calibre 38; o comprador (maior de 25 anos) não pode ter antecedentes penais, deve passar por um teste psicológico que comprove um certo equilíbrio emocional e deve aprender o manuseio de sua arma num breve curso. Com isso, ele é autorizado a guardar a arma em casa ou no escritório. A permissão de carregar a arma consigo, no corpo ou no carro, é reservada a quem exerce uma profissão de risco e está exposto a uma ameaça de vida (Forças Armadas, policiais, promotores, seguranças particulares). Existe uma exceção para a caça, em zonas rurais.

Se o "sim" ganhar no próximo referendo (o "sim", diga-se em prol da clareza, significa sim à proibição da compra de armas), quem já tem armas legais e registradas poderá guardá-las, mas não poderá mais adquirir munições.

João mora numa casa da periferia paulistana, é motorista de táxi, pai de família, leitor assíduo de jornais e revistas semanais. Conversamos com freqüência e, no sábado passado, o tema foi o referendo.

João observou que, para a maioria da população, as armas, de qualquer forma, são muito caras. Quanto aos mais abastados, seus seguranças particulares continuarão armados. Em suma, o referendo terá conseqüências só para a faixa de brasileiros à qual ele pertence.

Logo, João evocou o argumento conhecido: a proibição não resolverá o problema da violência, pois desarmará o cidadão, e os bandidos continuarão adquirindo armas na ilegalidade (quem está na praça sabe que é fácil).

Respondi que, contrariamente ao que a gente imagina, a maioria dos assassinatos por arma de fogo não tem nada a ver com assaltos e invasões de residências. Leva-se um tiro do marido ou da mulher, numa briga de família ou numa discussão no bar da esquina em que alguém não foi com a cara da gente. A arma que mais mata não é a arma ilegal do bandido, mas a arma que o cidadão comum tem em casa e que ele vai buscar, enfurecido, depois do terceiro gole.

João concordou, mas notou que ele não bebe nunca, não usa droga e está bem de cabeça (tudo verdade). Uma arma em casa lhe daria uma certa segurança, a impressão de poder defender sua família. Até agora não comprou, mas faz tempo que pensa nisso. Além do mais, mesmo sem ter uma arma, ele prefere que os ladrões eventuais se preocupem com a idéia de que o dono poderia estar armado.

Comentei que, às vezes, os ditos ladrões assaltam justamente para roubar a arma de casa. Também lhe contei que, um dia, Jack Maple (o braço direito de William Bratton, que dirigiu a polícia de Nova York nos anos 90) me disse o seguinte: se a gente não está treinado, ter uma arma na mão só serve para ser baleado. E não basta ter feito um curso e ser capaz de acertar o alvo, é preciso estar disposto a atirar primeiro e a matar. Para isso, é necessário treinar até que o tiro se torne uma ação quase automática: 300 balas por semana, no mínimo. Mesmo usando balas recarregadas, o custo se torna rapidamente enorme. Aparte: será que nossos policiais treinam com 300 balas por semana?

Outra questão: uma arma em casa só adianta se ela estiver acessível e carregada. Como evitar que as crianças a encontrem, brinquem e engrossem a estatística dos acidentes? A tudo tem resposta: a arma estará no quarto, do lado da cama, e será carregada só à noite. O problema é que chega o dia em que a gente se esquece de descarregá-la de dia ou de carregá-la à noite.

João foi sensível a meus argumentos, mas a vontade de poder defender sua família é mais forte.
Não é estranho: se não posso proporcionar a meus filhos a melhor escola e o melhor hospital (sem falar das férias, dos brinquedos e da roupa), quero me resgatar na hora de defendê-los. Se meu apelo à força pública não é ouvido ou vale menos do que o de outros mais favorecidos, quero mostrar à minha família que não sou trouxa: por uma vez, terei a chance de ser o herói de casa.
Eis, então, a solução de João.

Ele vai comprar imediatamente duas armas -na ilegalidade, pois, depois do referendo, talvez o passo seguinte seja recolher as armas legais e declaradas. Ele comprará também seis balas importadas para a defesa e uma caixa de recarregadas para treino. Treinar onde? Pois é, os seguranças continuarão treinando, e quem não tem amigos?

No referendo, ele votará "sim", para proteger (contra eles mesmos) os malucos que não sabem se controlar e acabam matando o vizinho numa bebedeira ou os desvairados que não conseguem se organizar para evitar que as crianças brinquem com uma arma carregada.

Depois do referendo, quando o preço das armas no mercado negro aumentará, ele revenderá uma das duas armas que comprou. O lucro ajudará a pagar pela arma com a qual ele vai ficar.
Essa é a solução de João. Por favor, não me pergunte a minha.