26 outubro 2006

Quantos você matou?

O assassino é idealizado como se nos vingasse das imposições sociais aceitas a contragosto

DURANTE O segundo conflito mundial, Ernest Hemingway foi correspondente de guerra (não era combatente, mas gostava de circular armado). Ora, recentemente, um jornalista descobriu duas cartas em que o escritor se gaba de ter matado 122 alemães e conta o seguinte: um prisioneiro desarmado gozou da sua cara (tipo, "você não vai ter a coragem de me matar, seu bosta"), e Hemingway mandou ver.

É provável que se trate de uma fanfarronice. Naquelas circunstâncias, talvez fosse possível matar um, mas não 122. Resta que o escritor achou "legal" vangloriar-se de ter matado.
Hemingway passou a vida inteira tentando demonstrar ao mundo e a si mesmo que ele era "homem" de verdade.

Sua história pessoal faria a festa de qualquer psicanalista, desde o suicídio do pai até o dele mesmo, mas o teor das cartas me fez pensar num livro, que, em 2002, foi transformado num filme homônimo, "Confissões de uma Mente Perigosa". É a autobiografia de Chuck Barris, um produtor e apresentador da televisão americana, que contou ter sido, durante anos, um assassino ao soldo da CIA (a qual não confirmou nem desmentiu o fato).

O livro de Barris começa com ele contemplando, no espelho, as injúrias do tempo: sua barriga, sua carne flácida. O fato (ou a fábula) de ter sido um sicário parece valer, para Barris, como uma cirurgia plástica: "Olhe só, tenho cara de esportista de sofá e cerveja, mas as aparências enganam: sou um assassino".

Talvez Hemingway e Barris sejam exemplos patológicos e patéticos de machismo. Mas escute o último disco de Bob Dylan, "Modern Times". Na segunda faixa ("Spirit on the Water"), Dylan canta que ele não poderá permanecer com sua amada no paraíso porque "I killed a man back there..." (matei um cara no passado).

Que charmoso, não é? Nenhum espanto: de Johnny Cash a Merle Haggard, o passado sombrio do cantor é um lugar comum da música "country".

Em geral, o número de assassinatos em nossas ficções (escritas ou filmadas) é infinitamente superior ao das chances efetivas de nós, um dia, matarmos alguém. Em suma, ao que parece, matar nos faz "sonhar".

Evidentemente, há traços de caráter e elementos da história de uma vida que produzem uma disposição assassina, chamada, por alguns psicanalistas ingleses, de "blueprint for murder" (instruções para matar). Mas, certamente, essas peculiaridades dos (poucos) que matam prosperam num ambiente em que, para os machinhos, ter matado ou ter disposição para matar são marcas "positivas".

Ninguém parece achar bizarro que, durante algum tempo, nossos meninos queiram se vestir e andar pelas ruas como membros de gangues sanguinárias (desse ponto de vista, os jovens que se alistam no narcotráfico são apenas crianças que podem realizar um jogo que todos curtem).

Alguns se preocupariam se seus filhos não passassem por uma "fase" de brincadeiras assassinas; receariam, por exemplo, que eles fossem debochados como "frouxos" pelo grupo dos amiguinhos. Não estariam completamente errados: tudo indica que, em nossa cultura, matar é um ato que impõe respeito, ou pior, uma espécie de admiração. Como no Oeste, as entalhaduras na empunhadura do revólver (que contam o número de mortos) medem o valor do pistoleiro.
Censurar nossas produções culturais não é uma solução. Vivemos numa contradição constante entre a liberdade do indivíduo (como valor supremo) e a coação das leis necessárias para vivermos juntos. Conseguimos respeitar as leis; em contrapartida, o fora-da-lei é o herói de nosso individualismo.

"Não Matarás" talvez seja a norma que internalizamos melhor, mas essa é mais uma razão para que "admiremos" o matador: ele consegue agir contra o interdito que está mais solidamente dentro de nós. Nas telas, nas brincadeiras de crianças, nos escritos de Hemingway e Barris ou, simplesmente, nas nossas fantasias, o assassino é idealizado como se ele nos vingasse de todas as imposições sociais que aceitamos a contragosto.

Às vezes, a tela e a realidade se confundem. Em Campinas, na semana passada, um segurança de shopping center matou, por nada, um jovem que tinha derrubado três cones com a sua moto. Armas de verdade deveriam estar só nas mãos dos adultos. O problema é: como encontrá-los?

19 outubro 2006

O Piauí é aqui

A condição básica de uma convivência democrática é que se goste da vida concreta

CHEGOU ÀS bancas o primeiro número da revista "Piauí". Li de cabo a rabo, numa noite.
Aprendi tudo sobre Salem, nossa antepassada etíope de 3,3 milhões de anos atrás. Acompanhei Roberto Jefferson no dia das eleições e conheci o poema que, nessa ocasião, ele declamou junto com o pai, Roberto Francisco.

Entendi que há uma luta entre as baianas do candomblé e as neo-baianas, que vendem acarajé evangélico. Soube dos comentários dos ex-presidiários do Carandiru sobre a morte do coronel Ubiratan.

Conheci Fernando Henrique Freire, degustador de café; conheci José Cândido Sobrinho, que, há vinte anos, defende seus direitos trabalhistas contra a massa falida dos Diários Associados; soube que, no Pará, há policiais militares que montam búfalos reluzentes.

Li uma grande reportagem sobre como se trabalha (e por quanto) no telemarketing; outra sobre o engenheiro brasileiro seqüestrado no Iraque. Li o diário de uma jovem imigrante "ilegal" em Nova York.

Soube o que fez e pensou o jornalista Ivan Lessa, ao estar de volta ao Rio de Janeiro, depois de 28 anos de ausência. Aprendi como vive e trabalha Guilherme Guimarães, o estilista das noivas, e como foi que um jornalista americano tornou famoso um tal de Fidel Castro.

Soube também que Bertold Brecht não era "flor que se cheire". Li sobre o papagaio, animal nacional, sobre o turismo na Molvânia (que não existe, mas poderia existir) e sobre o hipopótamo. Também li uma breve ficção de Rubem Fonseca.

Um leitor dirá: "Legal, você se divertiu à beça, mas, logo neste momento da vida nacional, cadê as coisas "sérias", cadê a política?". De fato, a revista oferece um portfólio de fotografias de homens políticos, surpreendidos naqueles instantes em que, por acaso ou por descaso, suas máscaras vacilam.

Mas, para nosso leitor hipotético, isso não bastará. Ele insistirá na sua exigência, parecido com aqueles pacientes que, no consultório do terapeuta, sentem-se envergonhados ao falar das "bobagens" de seu dia-a-dia, como se seu cotidiano concreto não merecesse sua própria atenção e ainda menos a atenção do terapeuta.

Ora, na "Piauí", não há editoriais nem opiniões. Pela qualidade e pelo charme dos textos, a "Piauí" rivaliza com a "New Yorker", que a inspira.

Mas, embora eu seja um leitor inveterado da revista nova-iorquina, foi lendo a "Piauí" que entendi a relevância secreta do "novo jornalismo": ela não está no "subjetivismo" do repórter (que manifestaria seus estados de ânimo), mas no interesse pela vida concreta.

Não sei por que os colegas escolheram "Piauí" como título da revista, mas pensei o seguinte: não sei quase nada do Piauí, sei apenas que a capital é Teresina e acho o nome familiar e bonito (me faz pensar numa mulher simpática e conversadeira).

Agora, graças à "Piauí", sei que, desde 2005, em Teresina, há adolescentes praticando o badminton. É uma notícia sem importância? Não concordo, pela mesma razão pela qual acho que a chegada da "Piauí" é um evento político.

Os colegas da "Piauí", sem dúvida, acharão essa afirmação bombástica e retórica, mas fazer o quê? Aqui vai: a curiosidade e o carinho pelo cotidiano são os alicerces de qualquer política que não seja só vociferação. A condição básica de uma convivência democrática é que se torne relevante a variedade das vidas concretas, que são nosso Piauí, nossas terras desconhecidas ou silenciadas.

A "Piauí" nos traz esse Piauí, pelo Brasil afora. Considere "As Torres Gêmeas", de Oliver Stone. Alguns desdenharam o filme porque esperavam algo diferente: interpretações, quem sabe conspiratórias, dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 ou meditações sobre a perfídia da Al-Qaeda ou do atual governo dos EUA, tanto faz.

Ora, Stone contou a história de dois policiais enterrados nos escombros e da espera de suas famílias. Ele chamou isso de "As Torres Gêmeas", como se, naquele evento que alterou a cara do mundo, os fatos mais importantes fossem duas vidas concretas, duas vidas que, em geral, ninguém vê. Essa é a grandeza do filme.

"A Vida que Ninguém Vê" (editora Arquipélago), aliás, é o título de um livro imperdível de Eliane Brum, jornalista (hoje, da revista "Época").

É uma coletânea de relatos da vida cotidiana e miúda, escritos em 1999, para o jornal "Zero Hora". Eliane Brum é uma extraordinária repórter do Piauí de todos os dias.

12 outubro 2006

Outdoors ou não


Odiando a publicidade, tentamos exorcizar a futilidade de nosso próprio consumismo
NUMEROSOS LEITORES me escreveram comentando minhas últimas colunas, nas quais tratei do vídeo de Daniella Cicarelli e da nova lei da Prefeitura de São Paulo, que proíbe os outdoors publicitários no município. Tento responder.

Sobre o vídeo, uma observação: concordo, transar no meio da praia constitui uma ofensa ao pudor de quem não está a fim de assistir ao espetáculo. Ora, no meio da praia, Daniella e seu namorado só se beijaram e abraçaram. Como assinala o vídeo, o resto ocorreu numa área afastada: uma teleobjetiva foi necessária para filmar o casal. Imagine que, com um telescópio, você espie uma transa que acontece num prédio situado a 200 metros de sua janela. Você se sentirá insultado pela "exibição"? "Fala sério!"

Mas quero voltar à nova lei da Prefeitura de São Paulo e evitar alguns mal-entendidos (enviarei a íntegra da lei aos leitores que a solicitarem).

1) Acharia ótima a idéia de uma regulamentação básica dos outdoors publicitários (de sua localização, de seu tamanho etc.), mas a lei não propõe uma regulamentação: ela decide a abolição de todos os outdoors.

Quanto aos "anúncios indicativos" (o letreiro com o nome de uma loja, o programa de um teatro etc.), ela propõe uma regulamentação tão complexa que eu não consegui estabelecer se a padaria de minha esquina deverá ou não reformar seu letreiro. Aviso: a complexidade das regulamentações é, tradicionalmente, um convite à corrupção; quando ninguém entende direito o que pode e o que não pode, alguém acaba pagando para que o deixem em paz.

2) No caso dos anúncios publicitários, a lei funciona exatamente como a repressão psíquica. Por não querer ou conseguir diferenciar, ela proíbe tudo (é o abc do sintoma neurótico: para coibir minha "devassidão" sexual, quero mesas e cadeiras sem "pernas", nenhum objeto de "pau", nada de "sainha" nas camas...aliás, "cama" já é uma palavra suspeita).

Por outro lado, a lei (que projeta melhorar a paisagem urbana) propõe uma diversão: proíbe uma coisa para que a gente se esqueça de outras (que, no caso, dependem do poder público).
Espreitando a aparição de um dirigível publicitário (que será proibido), talvez você não veja o incrível emaranhado dos fios das ligações elétricas que "ornamentam" nosso céu ou não perceba a nuvem de poluição que dá sua cor inconfundível ao pôr-do-sol paulistano. Indignado com o anúncio de um reparador de cadeiras, talvez você não note o estado deplorável dos canteiros.
Uma conseqüência, não desejada pelo autor da lei: sem letreiros luminosos e holofotes, perceberemos, isso sim, que a iluminação pública de São Paulo é assustadoramente fraca.

Percorra a pé, de noite, a av. Faria Lima, vindo da Tabapuã em direção ao Oeste; entrando à direita, na luz dos restaurantes da rua Amauri, sua pressão arterial melhorará singularmente.

4) Alguns leitores se preocupam com nossos edifícios históricos. É estranho: nunca vi outdoors publicitários escondendo o Municipal, a Pinacoteca ou a Estação da Luz. Em compensação, pelo que entendi, o Masp não poderá mais anunciar suas exposições temporárias com megatelões laterais que chamem a atenção de quem transita de carro pela Paulista.

5) A implementação da lei é prevista com total descaso pela vida de muitos cidadãos. Em três meses, sem transição, uma indústria de serviços será desmantelada (com a perda de milhares de empregos), aproximadamente cinco mil táxis não disporão mais de uma pequena renda mensal suplementar e por aí vai.

6) É possível que a aprovação entusiasta da lei por muitos comentadores seja inspirada por princípios estéticos sóbrios e adversos ao "pop". Essa discussão fica para outra vez.

Mas suspeito que a iniciativa conte sobretudo com uma antipatia pela publicidade, uma ojeriza de bom-tom, que vê nos outdoors o símbolo (ou, pior, a causa) de nossa frivolidade (e de nossa "massificação", acrescentam alguns): tirem os outdoors e seremos curados de nossa vontade de cuecas de luxo, voltaremos a pensar em coisas importantes, belas e generosas. Ou seja, suspeito que odiemos, na publicidade, a futilidade de nossos próprios desejos. E a lei nos agrada com a ilusão de que exorcizamos, enfim, o consumismo (o qual, claro, não é parte da gente, mas um demônio que nos possui).

Parodiando o marquês de Sade: "Paulistanos, mais um esforço para sermos revolucionários".

05 outubro 2006

Av. Faria Lima, Berlim Leste

Graças a uma nova lei da Prefeitura de São Paulo, logo viveremos felizes em Berlim Leste

MINHA PRIMEIRA viagem a Berlim foi no começo dos anos 70, com um grupo de amigos militantes de esquerda.

Para quem vinha da Europa Ocidental, Berlim Leste era estranhamente monocromática. No fim do dia, a débil iluminação urbana instaurava uma penumbra amarela e opressiva: era a Viena de Orson Welles no "Terceiro Homem", sem o charme do claro-escuro. Pensávamos: os "camaradas" não vão desperdiçar watts para dar à cidade um ar de festa, precisam construir o socialismo e deixar a força para as fábricas. Não é?

Alexanderplatz, com a sua Fonte da Amizade Internacional e o palito da torre da TV, parecia-nos sinistra.

Mesma coisa com Unter den Linden, apesar de nossas lembranças literárias. Alguém comentou: "Se ao menos houvesse letreiros luminosos e anúncios publicitários". Era uma constatação envergonhada: afinal, aquela iluminação parcimoniosa e a "sobriedade" da paisagem urbana deviam ser um ato de acusação contra a frivolidade do Ocidente. Ali, o pessoal se dedicava a uma tarefa séria e grande: tratava-se de construir uma sociedade em que cada um pudesse cuidar não do que ele tinha ou não tinha, mas de sua "essência". Nós, "alienados", sentíamos nostalgia da proliferação de outdoors e holofotes da Kurfürstendamm.

Voltamos para o Oeste no meio da segunda noite, com uma sensação de derrota, e ficamos passeando e conversando ao redor da estação do metrô Zoo, até o dia nascer. Era um bom lugar para meditar sobre a leviandade do Oeste, onde nos sentíamos em casa, e a tristeza do Leste, do qual acabávamos de fugir (como muitos alemães, mas sem correr os mesmos riscos). De um lado, uma idéia e um projeto só. Do outro, uma confusão de objetos e superfluidades. Descobrimos que, entre Alexanderplatz e Zoo, preferíamos Zoo, com sua mistura de desejos de consumo e vidas perdidas.

Anos mais tarde, ao chegar ao Brasil pela primeira vez, a iluminação duvidosa das ruas evocou, na minha memória, a penumbra de Berlim Leste. Com esta (grande) diferença: a alegria que pipocava nas luminárias caóticas de barzinhos, armazéns e propagandas vistosas, embora curiosamente "démodées". Aparte: a escuridão das ruas não era sinal de escassez, mas de menosprezo pelo espaço público (as ruas eram escuras, mas as casas dos amigos que me hospedavam brilhavam como árvores de Natal).

Pois bem, o prefeito e a Câmara dos Vereadores de São Paulo acabam de aprovar uma lei para melhorar a paisagem urbana. A partir de janeiro, sem mais nem menos, "fica proibida, no âmbito do município de São Paulo, a colocação de anúncio publicitário nos imóveis públicos e privados, edificados ou não". A maioria dos comentaristas aplaude: a ganância da iniciativa privada parará de desfigurar nossa cidade. Entendo, mas fico perplexo.

A Folha de quarta-feira retrasada publicou, em primeira página, a fotografia de um trecho da avenida Faria Lima em seu estado atual e uma fotomontagem da prefeitura que mostra o mesmo trecho assim como será, uma vez a lei entrada em vigor: é a Faria Lima de Berlim Leste. Se a lei não instaurar apenas um rápido intervalo para reinventar uma nova e melhor presença de holofotes, letreiros e outdoors, viveremos em Berlim Leste, com a desvantagem de não ter um sonho (ou pesadelo) utópico para justificar a monocromia e a penumbra de nossa cidade. Tudo bem, quando a gente não agüentar mais, restará passear pelos shopping centers, que permanecerão como ilhas de uma estética que não despreza o caleidoscópio desordenado dos desejos que é nossa "essência", fútil, mas (é sua vantagem) volúvel e plástica.

Ninguém parece se preocupar com a perda cultural que seria produzida pelo sumiço das propagandas. Somos uma sociedade de indivíduos. Não temos em comum nem uma fé nem uma tradição coesa.

Compartilhamos dois repertórios: o de nossos sonhos (as ficções, as músicas etc.) e o de nossos desejos desordenados, cujos caminhos coletivos aparecem, por exemplo, nas mil seduções dos anúncios que decoram o espaço no qual vivemos juntos.

Se você não acredita que esse segundo repertório possa ser uma parte relevante de nossa cultura e de nossa história comuns, faça uma experiência simples: folheie com amigos o maravilhoso "Almanaque dos anos 70", de Ana Maria Bahiana (Ediouro).