30 junho 2005

O que é politicamente correto?

Não vou retomar a discussão (um pouco batida) sobre o "politicamente correto", ou melhor, vou retomá-la para sugerir que a gente ouça essa expressão de um jeito diferente. Mas vamos com calma.

Sou contra a existência de uma polícia da linguagem, que circularia pelas nossas frases como a brigada dos bons costumes circulava pelas ruas de Cabul, açoitando as mulheres sem véu e os homens sem barba.

É claro que não considero que tudo possa ser dito. Há palavras que acarretam conseqüências nefastas, mas cuidado: seu sentido e seu alcance dependem da situação, ou seja, dependem da intenção de quem fala, do lugar que a pessoa ocupa no momento em que abre a boca e, sobretudo, do lugar onde, falando, relega os que o escutam.

Imaginemos que Severino Cavalcanti, numa roda de padaria, diga que os homens não chegam virgens ao casamento (e, portanto, conseguem orientar-se debaixo dos lençóis) porque algumas mulheres têm vocação para "professoras". É uma piada de última. Se eu estivesse na roda, não acharia graça, mas nem por isso invocaria a polícia da linguagem: afinal, uma piada nos deixa livres para rir ou mandar o piadista se enxergar.

Agora, imaginemos que o presidente da Câmara proponha a mesma observação numa sabatina (Folha de 3 de maio). Nesse caso, uma das maiores autoridades da República, além de ludibriar das professoras, escarnece todas as mulheres que, antes ou ao lado do casamento, transaram alguma vez por amor ou por prazer. E não se trata de uma piada, pois a desproporção de poder entre piadista e auditório transforma a gozação em abuso. Não há piada quando não há liberdade para dar o troco ao piadista.

Politicamente incorreto não é zombar das mulheres "professoras", é forçar um auditório a rir da zombaria ou a calar-se.

Outro exemplo. Na terça-feira retrasada, o presidente Lula comentou que a confusão do momento "é por conta de um cidadão que diz que pegou R$ 3.000, um cidadão de terceiro escalão". Podemos achar simpático que o presidente fale que nem a gente, e, certamente, Lula usou a palavra "cidadão" no sentido genérico de "sujeito". No entanto, numa república, pode haver funcionários, psicólogos, médicos, engenheiros ou colunistas de terceiro escalão, mas os cidadãos são todos (e sempre) de primeiro escalão, ou seja, dita pelo presidente, a expressão se torna politicamente mais que incorreta, ameaçadora.

Periodicamente, em vários países, são propostos e aprovados projetos de lei para garantir que nossa fala seja "politicamente correta". Dizem que se trata de proibir expressões que denigrem uma categoria de cidadãos (a propósito, "denegrir" é um verbo que deveria ser banido: por que, se não por um ranço racista, usaríamos "denegrir" (tornar negro) no sentido de "infamar"? -estou sendo irônico).

Ora, é possível suspeitar que esses projetos sejam inventados para despistar a atenção, para que esqueçamos o que é mesmo politicamente incorreto: os abusos verbais impostos por uma classe política que nos desconsidera sem pudor.

Talvez a coisa tenha piorado nos últimos tempos. Talvez eu seja especialmente intolerante por praticar uma disciplina na qual se constata que cada palavra instaura ou mesmo impõe uma relação.

Tomemos o exemplo, banal, da mentira. Os pais, às vezes, estranham o humor ressentido de suas crianças depois da morte de um próximo (uma avó, um tio). Acontece que os ditos pais, por pensarem que as crianças não entenderiam ou não deveriam sofrer com a dureza de uma separação irreversível, decidiram mentir: o tio foi viajar e não disse quando voltará, a vovó, um dia desses, vai escrever uma carta para a gente.

Mesma coisa quando uma família sofre um baque financeiro brutal. Os pais não encontram a coragem de contar seu infortúnio, temem perder assim o respeito ou o amor das crianças ou então acham que as crianças devem ser poupadas (terão tempo mais tarde para os sufocos da vida); em suma, os pais decidem mentir. E logo estranham que as crianças se tornem sombrias e quase vingativas.

Nesses casos, verifica-se que as crianças (sempre muito mais atentas e menos ignaras do que os adultos imaginam) sabem o que aconteceu realmente e entendem a mentira dos pais pelo que ela é: uma palavra que desconhece e menospreza a subjetividade delas. Pior, uma palavra que, desconsiderando as crianças, acaba acuando-as, forçando-as a ficar para sempre sob tutela, privadas da verdade.

Uma parte relevante do discurso dos políticos (que não tem nada a ver com o discurso político) produz o mesmo efeito. Sob o pretexto de nos tratar "com carinho", os políticos se esquecem de nos tratar como adultos.

Domingo, em São Paulo, por exemplo, estive numa reunião em que imaginava que se discutiriam as dificuldades concretas e complexas de nossa vida social. De entrada, escutei o presidente do PT, José Genoino, afirmar que o governo adora as CPIs: todas elas, a começar pela CPI dos Correios. Decidi que, se era para ser tratado como criança, eu preferia sair e jogar com bolinhas de gude no sol, com meus coetâneos.

23 junho 2005

O estrago do "mensalão"

Poucos dias atrás, o presidente Lula mencionou "Mani Pulite" (mãos limpas), a operação da magistratura italiana que, ao longo dos anos 90, combateu a corrupção na política da península. A alusão servia para prometer perseverança na investigação das denúncias que assombram Parlamento e governo.

Para os italianos, "Mani Pulite" foi um resgate da consciência cívica. Alguém, de repente, parecia levar a República a sério; quem sabe, todos seguissem o exemplo e se tornassem cidadãos para valer.

Diga-se de passagem, nos últimos anos de "Mani Pulite", alguns magistrados pareciam mais sedentos de glória e sangue do que de justiça. Pairou a dúvida de que a operação fosse mais uma politicagem.

Seja como for, a alusão do presidente me fez pensar nos percalços pelos quais passam nossas tentativas (frustradas) de constituirmos, enfim, uma sociedade.

Inventar o cidadão é a maior dificuldade moderna. Sua formulação básica é a seguinte: como se constitui uma consciência que dê valor à coletividade numa cultura em que, sem retorno, o indivíduo é o valor prioritário?

Voltemos à Itália. Entre o fim do século 19 e a Primeira Guerra Mundial, os ideais modernos impunham uma efetiva reorganização social (apesar da persistência da monarquia). Foram décadas dominadas por um ilustre primeiro-ministro centrista, Giovanni Giolitti, que era especialmente sensível ao fato de que os tempos exigiam um novo tipo de subjetividade política. Uma sociedade que valoriza o indivíduo (a ponto de contar o voto de cada um) não se mantém unida sem o sentimento de um destino e de um bem comuns. Mas, se o indivíduo é um valor superior à comunidade, como conferir dignidade ao que é social e coletivo?

Uma solução de Giolitti consistia em idealizar o serviço público. Uma sociedade, mesmo composta de indivíduos separados, existe quando o cargo público não é percebido nem como encosto nem como fracasso social nem como ocasião para gozar do poder, mas como exemplo de dedicação, como forma de excelência moral.

Não deu certo. Os esforços para constituir um novo laço entre indivíduos produziram caricaturas do espírito comunitário da sociedade tradicional. É sempre assim quando, incapazes de inventar o futuro, ressuscitamos um morto: o morto reaparece na farsa ou no horror.

Na época de Giolitti, surgiu o nacionalismo que sustentou tanto as conquistas coloniais (farsa) quanto a Primeira Guerra Mundial (horror). Mais tarde, para convencer os italianos de que eles eram um povo só, veio o fascismo (farsa e horror).

Floriano Peixoto e Prudente de Morais, pelo que entendo, sonhavam com a mesma dignidade da República e do serviço público republicano. Perderam-se tentando afirmar a unidade da nação pelo massacre da revolta catarinense e do povo de Canudos (nota: se você quiser refletir sobre essa história, não perca "A Luta, parte 1", quarto "capítulo" de "Os Sertões", em cartaz até o fim de junho, no Teatro Oficina).

Como no exemplo italiano, não deu certo. Em vez da unidade republicana, veio o fascismo na versão Vargas e, mais tarde, na versão da ditadura militar.

Claro, houve intermezzos, em que a tentativa de construir uma sociedade de indivíduos não produziu nem farsa nem horror. Na era de Juscelino, o sonho visionário da modernização propôs à nação uma grande aspiração comum.

Mais recentemente, apesar de algumas sacudidas, houve a sensação de uma gestão dedicada e eficiente (uma espécie de modernidade alcançada), nos primeiros quatro anos de Fernando Henrique, mas a sensação morreu nas negociatas para a renovação do mandato.
E houve a eleição de Lula. O país manifestou sua decisão de se dar um governo capaz de pensar num interesse superior, no bem comum (que na modernidade -dificuldade suplementar- inclui o respeito da liberdade dos indivíduos).

Ora, pensar no bem comum não significa apenas resistir à cobiça de quem tenta saquear a coisa pública. Significa também evitar a tentação de agir para ser amado (é o risco populista) e significa sobretudo resistir ao charme abstrato do exercício do poder. Esse é o risco que mais espreita quem governa: considerar que a prioridade não é transformar o mundo, mas se manter no governo e aumentar o alcance de seu poder.

Se a denúncia e os indícios da prática do "mensalão" atingem, hoje, a esperança coletiva, não é pela cobiça de quem teria vendido seu mandato (aqui, nenhuma surpresa). Mas é porque tudo parece indicar que a razão da compra teria sido uma vontade abstrata de ampliar limites do poder.

Os votos que teriam sido comprados não eram votos que faltassem para aprovar uma reforma necessária (a própria reforma política, por exemplo). Nesse caso, Maquiavel (ao menos ele) compreenderia: aproveita-se a corrupção de um mundo decrépito, para transformá-lo.

Se os indícios se confirmarem, foram comprados votos para não ter que distribuir cargos, ou seja, para estender abstratamente o poder: te pago para que eu governe.

Um personagem de Hemingway, na Guerra Civil espanhola, contempla os aviões republicanos, que vão para uma batalha da qual já se sabe que será perdida, e comenta: "Nous sommes foutus", como sempre.

16 junho 2005

O sexo das moscas e o da gente

Vários leitores pediram que eu comentasse um artigo da revista "Cell" (vol. 121, de 3/6) que se tornou notícia no mundo inteiro.
A Folha de 4/6, por exemplo, propôs uma matéria com o título "Alteração de gene faz mosca hétero virar homossexual". No sábado passado, Drauzio Varella, em sua coluna, tratou do mesmo assunto; concordo com suas observações, mas quero acrescentar algumas reflexões.

O artigo da "Cell" (disponível on-line em www.cell.com) apresenta uma pesquisa, de Barry Dickson e Ebru Demir, cujos resultados vou resumir. As moscas drosófilas têm um gene (chamado "fru") que comanda as condutas necessárias para que macho e fêmea se juntem, garantindo a reprodução. Essas condutas consistem, no macho, num ritual ferrenho ("fixed-action pattern"), em que ele encosta a perna, bate as asas, lambe o sexo da fêmea e, se for aceito, copula por 20 minutos. Com isso, a fêmea, com a condição de que não tenha copulado recentemente com outro macho, abre a vagina.

Dickson e Demir verificaram experimentalmente que o "fru" é um "switch-gene", um gene que funciona como um interruptor, produzindo o comportamento sexual masculino ou feminino, seja qual for o fenótipo sexual da mosca em questão. Se o interruptor do "fru" está para masculino numa mosca fêmea, a dita mosca vai abordar outras fêmeas e praticar o ritual masculino descrito acima. Inversamente, moscas machos com o interruptor em posição feminina ficam à espera de serem abordadas por outros machos.

Será que, com base nessa pesquisa, é possível chegar a alguma conclusão que valha para os humanos? A resposta é não.

Drauzio Varella, em seu comentário, concluiu que "o homem é resultado de uma interação complexa entre o programa genético (...) e o impacto" da experiência e do ambiente. Perfeito.
Ora, acontece que a imprensa mundial deu destaque ao artigo da "Cell" porque a pesquisa "demonstraria" que a escolha do sexo do parceiro é o efeito direto de uma determinação genética. Se isso vale para as moscas, por que não valeria para a gente? Em suma, seríamos heterossexuais ou homossexuais só por causa de um gene.

Essa idéia agrada a muita gente. Há os que gostam de conceber a homossexualidade como uma malformação genética que poderá ser "curada". E há os que acham interessante "desculpar" a homossexualidade ("afinal, é uma coisa genética").

Albert Kinsey, quando se interessou pela variedade do comportamento sexual humano, esqueceu-se das moscas, que eram seu antigo objeto de pesquisa. Ele tinha razão: a experiência de Dickson e Demir não implica nada no campo da sexualidade humana por duas razões fundamentais.

1) Dickson e Demir constatam que os comportamentos sexuais das moscas são "essenciais para o sucesso reprodutivo", portanto "é provável que uma forte pressão seletiva tenha favorecido a evolução de genes que inscrevem ("hardwire") esses comportamentos no cérebro". Vale para os humanos?

O comportamento sexual humano não segue nenhum "fixed-action pattern", nenhum ritual fixo: contrariamente aos machos das moscas, que encostam a perna, batem as asas etc., os homens podem parar de motocicleta na frente do bar, convidar para ver estampas japonesas, oferecer flores, pagar ou "encoxar" no metrô. A mesma variedade existe do lado das mulheres. Ou seja, nos humanos, não há rituais fixos: a "pressão seletiva" não produziu um gene que regraria as condutas de acasalamento.

Além disso, a evolução levou nossa espécie por um caminho oposto ao das moscas e mesmo ao dos outros mamíferos: a atividade sexual, para nós, não é orientada para o sucesso da reprodução. A prova disso não está apenas em nosso uso "devasso" de camisinhas e anticoncepcionais. Ela está nesta obviedade: a excitação sexual dos humanos não depende da fecundidade da fêmea. Para nós, em algum momento da evolução, a menstruação se dissociou da fecundidade feminina e parece que, desde então, transamos por prazer e nos reproduzimos ao deus-dará.

2) A idéia de que a escolha do sexo do parceiro (homo ou hétero) seja a bipolaridade essencial dos comportamentos sexuais humanos é, no mínimo, ingênua.

Talvez porque a evolução nos levou a transar por prazer, a variedade dos caminhos de nosso desejo sexual escapa a uma descrição pela qual o sexo do parceiro escolhido seria a caraterística crucial. Um mestre sádico que domina indiferentemente escravos e escravas, é o quê: homo ou hétero? Uma adepta do suingue que só curte o marido com a participação de outra mulher é o quê? Os numerosos adolescentes que, hoje, têm amizades coloridas com parceiros de ambos os sexos são o quê?

Quem quiser encontrar a determinação genética de nossos comportamentos sexuais pode antecipar a procura de muitos interruptores diferentes.

Uma descrição da sexualidade humana organizada apenas pelo sexo do parceiro escolhido deixa a compreensão de nossos desejos, literalmente, às moscas.

Nota: se você curte o bricabraque complexo (não só sexual) do qual somos feitos, visite, em São Paulo, a exposição de Rubens Espírito Santo, na galeria Baró Cruz, e passe um bom momento na "Cabana do Josias".

09 junho 2005

O sociopata, nosso vizinho

Na semana passada, cheguei de volta a São Paulo vindo de Nova York. Todos de pé nos corredores da aeronave, esperávamos a abertura das portas. Eis que um jovem, que estava atrás de mim, disse, num inglês duvidoso, "Excuse me" e tentou me ultrapassar, para ele (só ele) avançar na fila.

Fiz notar ao jovem que todos estávamos parados e indo para o mesmo lugar. Minha observação não produziu nele nenhuma vergonha: empurrou e se insinuou na minha frente, para repetir a mesma manobra com outros passageiros. Comentei com minha companheira: "É incrível como existem sociopatas".

Justiça divina: na fila da alfândega, o jovem estava bem atrás da gente. Resta explicar meu "diagnóstico".

Sumariamente, o quadro da sociopatia (ou psicopatia, como dizia a psiquiatria clássica) é o seguinte: incapacidade de se conformar às normas sociais, aptidão para enganar e manipular, falta de preocupação com os outros, falta de remorso e de sentimento de responsabilidade.
Ocasionalmente, qualquer um é capaz de comportamentos desse tipo. Mas o sociopata os adota como sua única maneira de ser e de se relacionar com o mundo: ele se impõe na vida desrespeitando os outros e as normas coletivas sem sentir culpa alguma.

Os sociopatas não são necessariamente criminosos, e nem todos os criminosos são sociopatas. O membro de uma gangue pode agir como um sociopata entre nós, mas sentir-se responsável pela segurança dos outros membros da gangue e culpado por falhar em suas tarefas. Inversamente, um cidadão-modelo, de grande êxito profissional e social, pode dever seu sucesso a uma boa sociopatia. Detalhe: os sociopatas são numerosos; nos EUA, 4% da população.

Num livro recente, "The Sociopath Next Door" (o sociopata da casa ao lado), publicado pela Broadway Books, a psicóloga Martha Stout propõe uma interpretação valiosa da personalidade do sociopata.

O pressuposto, com o qual todos concordam, é que o sociopata sabe fazer a diferença entre o bem e o mal, mas, ao optar pelo mal, não conhece remorso ou culpa, pois não tem consciência moral.
Ora, em psicopatologia, ter consciência moral é uma qualidade problemática, pois uma boa parte do sofrimento neurótico é devida ao excesso de interdições auto-impostas e de culpas desnecessárias. Alguns diriam que um pouco de sociopatia ajudaria nossos neuróticos.

O problema, observa Stout, é que sobretudo os psicanalistas confundem a consciência moral com o superego, ou seja, com a instância psíquica herdeira das interdições que foram decisivas na formação do sujeito, desde a proibição de dormir com a mãe até a proibição de fazer cocô nas calças. A consciência moral aparece assim como uma guardiã encarregada de nos impor limites, dos quais o sociopata zombaria e com os quais o neurótico infernizaria a própria vida.

Ora, Stout propõe conceber a consciência moral de um jeito diferente: não como fonte das interdições que nos constrangem, mas como tesouro das condições que permitem nossos laços afetivos, ou seja, a consciência moral seria constituída pelas obrigações que acompanham nossos sentimentos positivos pelos outros.

Se não mato, roubo, prevarico, não é porque obedeço a prescrições estabelecidas, mas é pelo vínculo afetivo que me liga aos outros que respeito e amo. Ajo corretamente porque desejo poupá-los dos desgostos que minha conduta imoral lhes acarretaria.

Na visão de Stout, o sociopata é, antes de mais nada, um sujeito que não consegue estabelecer laços afetivos: ele não conhece obrigações morais porque não sabe se juntar aos outros pelo respeito, pela amizade ou pelo amor.

De fato, várias pesquisas mostram que as pessoas "normais" reagem de maneira diferenciada a palavras carregadas de emoção. Diante de palavras como "amor", "ódio", "dor", "felicidade", "mãe", a atividade cerebral dos "normais" é mais intensa e mais rápida do que diante de palavras neutras, como "mesa", "cadeira", "número 15". Os sociopatas, ao contrário, apresentam a mesma intensidade e o mesmo tempo de reação em ambos os casos. Seu déficit é afetivo, e sua falha moral é conseqüência desse déficit.

O jovem passageiro que descrevi foi capaz de uma pequena sociopatia porque não reconheceu seus companheiros de viagem como um grupo do qual ele fazia parte. O uso do inglês talvez lhe tenha permitido sentir-se estrangeiro a essa mínima simpatia coletiva.

Nestes dias, o noticiário fala de uma sociopatia generalizada no coração das instituições republicanas. De acordo com a proposta de Stout, ela é efeito não de alguma fraqueza dos grandes princípios, mas da falta de um "nós", ou seja, de um laço coletivo nacional, em que o companheirismo e o sentimento de um destino comum implicariam um respeito recíproco básico.

Notas:
1) Acabo de ler o novo livro de Flávio Gikovate, "O Mal, o Bem e Mais Além" (MG editores). Gikovate situa a moralidade de uma maneira análoga à escolhida por Stout: o que nos torna sujeitos morais é nossa capacidade de amar.

2) Assisti, com atraso, a "A Queda! As Últimas Horas de Hitler". O Hitler do filme de Hirschbiegel, magistralmente interpretado por Bruno Ganz, é um sociopata perfeito.

02 junho 2005

O Ocidente inimigo de si mesmo

Vou expor três idéias nas quais é provável que você se reconheça parcial ou totalmente. Eu mesmo já devo ter escrito e assinado embaixo alguma versão delas.

1) Nossa cultura é mecânica, desprovida de alma. Sabemos encontrar os meios mais adequados para chegar ao resultado desejado e as formas mais econômicas de funcionamento, mas não sabemos nos orientar quanto aos fins.

Somos pior que cínicos; somos ocos, fascinados pela racionalidade abstrata, idólatras da eficiência.
2) As grandes cidades modernas, nosso lugar preferido de moradia ("moradia" é um jeito de falar), são frívolas, mentirosas, arrogantes, ávidas, decadentes e cosmopolitas no pior sentido: nelas, perde-se o valor de nossa história e de nossas raízes. Nelas, cada um se torna engrenagem no grande jogo social urbano: a caça ao poder conferido pelo olhar invejoso dos outros.

Quem sabe, longe de nossas Babilônias, no campo ou num Terceiro Mundo primitivo e incontaminado por nossa cultura, a gente possa redescobrir a autenticidade perdida. Em comunhão com a natureza, preocupados com a produção do necessário para a subsistência, e não com a ostentação do supérfluo, reencontraríamos o sentido da comunidade, a fé e o amor sincero.
Não vai ser fácil. O campo que prospera se parece com uma Barretos de telenovela. E os bolsões da pobreza rural ou terceiro-mundista se assemelham cada vez mais a favelas suburbanas que devoram DVDs piratas de filmes hollywoodianos.

Talvez Deus nos ajude, saia de seu silêncio e lance seus relâmpagos contra as torres das Sodomas e Gomorras de hoje. Mas os "sucessos" dos inimigos da cidade moderna são efêmeros. Mao Tsé-tung tentou acabar com a cidade chinesa; resultado: Xangai é o ímã das migrações internas na China de nossos dias.

Deve haver uma conspiração para destruir o que é autêntico, espiritual e profundo, um complô que começou com os banqueiros de Londres e continua com os de Nova York -embora, por definição, os banqueiros sejam sem pátria, não é?

3) Na fogueira das vaidades de nossa vida, as ambições que nos atormentam podem ser desmedidas, mas elas são sempre mesquinhas. Somos uma civilização de mercantes preocupados com o próprio bem-estar, incapazes de heroísmo.

Durante a Primeira Guerra Mundial, Werner Sombart, o sociólogo alemão, inventou um termo para estigmatizar o espírito mercantil dos franceses e dos ingleses e "prever" a vitória do espírito heróico dos alemães: "confortismo", uma mistura do conformismo com a aspiração ao conforto burguês. Poucos anos atrás, um guerrilheiro taleban se declarou certo da vitória final de seu grupo em termos análogos: "Eles gostam de Pepsi-Cola, enquanto a gente gosta da morte".
Em suma, somos pequenos, avaros, incapazes de grandes sacrifícios porque incapazes de grandes causas.

Essas três idéias, apresentadas sumariamente, valem como uma amostra da paixão autocrítica da cultura ocidental.

Pedi a alguns amigos que adivinhassem o autor da seguinte citação: "A civilização americana é de uma natureza puramente mecanizada (...) Meus sentimentos contra o americanismo são de ódio e profunda repugnância". As respostas foram variadas: de Bin Laden a Jean Baudrillard, passando por Celso Amorim e Tarso Genro. O verdadeiro autor da citação é Adolf Hitler.
Em geral, desconhecemos a história das trivialidades com as quais alimentamos a crítica da sociedade em que vivemos.

Ora, Ian Buruma e Avishai Margalit acabam de publicar um ensaio indispensável e seminal, "Occidentalism, the West in the Eyes of Its Enemies" (ocidentalismo, o Ocidente nos olhos de seus inimigos), pela editora Penguin (uma tradução seria bem-vinda).

Eles nomeiam "ocidentalismo" o conjunto das idéias (sempre ocidentais em sua origem) que apresentam nossa cultura como detestável e desumana.

Os porta-vozes habituais dessa visão crítica são uma estranha tríade: os nostálgicos do mundo tradicional que garantia seus privilégios, os que combatem a exploração de hoje e acabam lamentando um passado mais opressor ainda e os intelectuais "progressistas", que descobrem com horror que, na sociedade moderna, sua autoridade se perde e se confunde com as caretas da sociedade do espetáculo.

Mas, sejam quais forem os porta-vozes do ocidentalismo, a contribuição essencial de Buruma e Margalit é a seguinte: a visão negativa que o Ocidente tem de si mesmo não é fruto da suposta nobreza de sua consciência crítica. Essa visão tem uma história, nasceu numa conjuntura específica: a reação do romantismo alemão contra as idéias da Revolução Francesa, contra o Iluminismo e contra o imperialismo modernizador de Napoleão.

O ocidentalismo é uma ideologia de resistência nacional, concebida na "época dos impérios". Aperfeiçoado de Herder a Sombart, de Heidegger ao nazismo, ele se instalou na cultura ocidental, realizando o sonho de toda ideologia, ou seja, conseguindo que sua origem fosse esquecida, de forma a aparecer como uma maneira "natural" de pensar.

Nota: Buruma e Margalit não citam "O Orientalismo", de Edward Said, mas seu livro implica uma crítica radical das teses de Said. Voltarei ao assunto.