30 agosto 2007

Vida estética


Nossa paixão pelo "look" e pelo design tenta construir um mundo que faça sentido

A CADA sexta-feira, é noite de Green Express: em São Paulo, na avenida Rio Branco nº 90, dança-se samba-rock.
A turma, embora goste da mesma música, não é uniforme. Há os malhados e os que carregam consigo 30 quilos acima da média. Há homens de terno, chapéu e sapatos de duas cores, à la Michael Jackson ou à la Rio de Janeiro anos 30; outros com camiseta de time americano e touca de couro; outros tipo "roots" (camisa frouxa para fora das calças); outros são "preppy" (pólo justa). E por aí vai. Do lado das mulheres, mesma variedade.

É um bom lugar para descobrir que não há grau zero do estilo: se você cultiva a ilusão de não se importar com as aparências, saiba que seu "descaso" é mais uma escolha estética entre outras.
Comecei com uma noite no Green, mas poderia ter começado com um passeio por um supermercado. Observando os objetos à venda, mesmo os mais utilitários (um saca-rolhas, uma toalha de prato), chegaria à mesma conclusão: nossas escolhas respeitam a racionalidade (a roupa tem que nos vestir e a faca tem que cortar), mas são orientadas por considerações estéticas: gostamos de um "look". E não é preciso que seja o mesmo para todos: não procuramos um cânone, apenas queremos que nosso gosto ordene um pouco o mundo.

Nas últimas décadas, passamos do ideal de um consumo de massa (mesma geladeira para todos) a um ideal de consumo personalizado, em que o estilo e o design comandam nossas escolhas.
Esse fenômeno, dificilmente discutível, está no centro do trabalho de Virginia Postrel, recentemente entrevistada pelo caderno Mais! (29 de julho) por seu livro de 2003, "The Substance of Style" (a substância do estilo, HarperCollins).

A relevância das escolhas estéticas no comportamento e no consumo das últimas cinco décadas é tradicionalmente explicada segundo dois eixos: 1) Nosso sistema produtivo, depois de promover o consumo de massa, para continuar crescendo, incentiva a diversificação do consumo; 2) Vivemos numa sociedade em que o lugar de cada um depende do olhar dos outros; portanto, a sedução estética que conseguimos exercer (graças a nossa pessoa e aos objetos que nos cercam) torna-se crucial.

Postrel aceita essas explicações, mas acrescenta o seguinte: se valorizamos as aparências é porque encontramos, nesse exercício estético, "prazer e sentido".

É fácil entender qual é o prazer encontrado num exercício estético generalizado: é o prazer de se expressar singularmente e de compor, para si mesmo e para os outros, uma imagem agradável.
Mais complicado é entender como essa atividade estética incessante nos ajudaria a encontrar um pouco de sentido para nossa vida.

Pois bem, se alguém me perguntasse, hoje, quais são, ao meu ver, os textos filosóficos decisivos para entender o espírito moderno, eu incluiria entre os cinco primeiros, sem hesitar, a "Crítica da Faculdade do Juízo", de Kant (Forense Universitária). O livro, escrito no fim do século 18, não é uma leitura fácil. Quando o li, nos anos 70, foi por dever. Hoje, no retrospecto, considerando a extraordinária relevância da escolha estética na vida moderna das últimas décadas, ele me parece profético e genial.

Resumindo além do máximo, uma das idéias centrais de Kant é a seguinte: apreciamos o belo porque é o exemplo de algo que se justifica em si, ou seja, que tem um fim e uma razão de ser, mas esse fim não é uma idéia ou uma representação externa, ele está na coisa mesma que achamos bela. A beleza, por assim dizer, é o charme das coisas, dos seres e dos momentos que não precisam de uma justificação outra que sua beleza.

Por exemplo, uma cena qualquer da vida, contemplada da mesa de um bar, levanta questões: o que quer aquela mulher? Para onde está indo aquele cara? Qual será o futuro do cachorro que passa por aí?

Numa "bela" fotografia da mesma cena, a questão da finalidade da vida da mulher, do cara e do cachorro é resolvida pela finalidade interna da imagem, por sua "beleza".

Ora, em nossa cultura, a tradição perdeu valorm, e o plano divino é, no mínimo, incerto: as representações e idéias que davam sentido à vida são cada vez mais problemáticas. Talvez nossa paixão cotidiana pelo "look" e pelo design tente, laboriosamente, construir um mundo que se justifique por sua qualidade estética, ou seja, por si só.

21 agosto 2007

A vida de Santiago


Uma vida se justifica como um arranjo de flores, não pela duração, mas pela harmonia

ESTRÉIA AMANHÃ o filme "Santiago", de João Moreira Salles. A história de sua produção é conhecida: em 1992, João Moreira Salles filmou um documentário sobre Santiago Badariotti Merlo, que tinha sido, no passado, durante 30 anos, o mordomo de sua família.

Para o diretor, era uma maneira de se lembrar de sua infância e de meditar sobre vida e morte, memória e esquecimento. Ele abandonou o projeto durante a montagem. Santiago morreu em 1994. Em 2005, João Moreira Salles voltou ao material abandonado para criar um filme que é uma obra-prima, imperdível.

Já foi observado que "Santiago" é um filme que desnuda a relação entre o documentarista e sua personagem. O diretor não esconde sua voz, que pede que Santiago repita, retome, fale mais rápido, olhe para cá ou para lá. Alguns acharam que o longa-metragem também quer desvendar a desigualdade inevitável entre o ex-mordomo e o filho do ex-dono de casa. Pode ser. Mas a imperiosidade do documentarista me evocou outra coisa.

Quando minha avó ainda vivia, eu, ao voltar para casa, pedia que ela fizesse o polpettone de minha infância. Ela fazia, eu agradecia, elogiava e também me queixava: nunca era exatamente como "aquele" polpettone. Num momento do filme, Santiago recita o Pater Noster, o Salve Regina e a Ave-Maria, evocando sua avó, que lhe ensinara a rezar em latim. O diretor se lembra da comoção que a reza de Santiago em latim lhe causava, quando criança. Logo, ele descarta o "take" e pede que Santiago reze novamente, concentrando-se e juntando as mãos.

Crítica do gênero documentário? Eu vejo, sobretudo, o efeito tocante do mergulho na memória: o que João Moreira Salles quer é reviver a emoção que lhe dava "aquela" reza em latim da sua infância -"aquela" reza que não volta mais.

Muitos observaram também que "Santiago" é um filme sobre a luta da memória contra a morte. Eu mesmo, depois de assistir ao filme, perguntei o que aconteceria com as 30 mil páginas que Santiago escreveu sobre as dinastias da nobreza do mundo ao longo de 4.000 anos de história. Era como se quisesse que a sobrevivência da obra de Santiago prolongasse o sentido de sua vida e da vida em geral (os calhamaços ficarão no Instituto Moreira Salles, na casa da Gávea, onde Santiago foi mordomo).

Agora, Santiago tem uma consciência aguda de que a vida é passageira e o céu está vazio (citação de Bergman por Santiago). E não é uma consciência produzida pela idade avançada. Walter Salles me contou uma anedota bem anterior ao filme: uma manhã, Walter Moreira Salles, seu pai (e pai de João, claro) abriu as cortinas de seu apartamento de Copacabana junto com Santiago. Era um primeiro de maio ensolarado. Walter Moreira Salles comentou: "Que dia lindo". E Santiago, imediatamente, em portunhol, olhando para a praia já cheia: "Em cem años, estarão todos muertos".

Mas Santiago não é cínico. E seu remédio contra a morte não é apenas sua prodigiosa memória. No filme, Santiago toca as castanholas, canta, dança com as mãos e, sobretudo, está sempre preocupado com a beleza. Inclusive com a beleza da morte, "la gran partita", o "bel morir" que pode dignificar a vida inteira.

Uma especialidade de Santiago consistia em preparar arranjos de flores para as festas. Ele dava, aos diferentes arranjos, nomes musicais, cantata, scherzos etc. Quando os terminava, ficava a fim de lhes pedir (aos arranjos) que cantassem, assim como Michelangelo perguntou "Por que não falas?" à sua estátua do Moisés (Santiago corrige a lenda, preferindo o Davi).

As flores dos arranjos logo murcharão, mas o importante é que elas desabrochem na hora efêmera da festa, mostrando o esplendor de cada flor e a harmonia do arranjo. Como um arranjo, uma vida não se justifica por sua duração, nem pela lembrança, nem pelo aplauso dos outros, ela se justifica por sua harmonia intrínseca.

Se for assim, o Santiago que conhecemos pelo filme de João Moreira Salles justificou sua vida. Nota: nas últimas semanas, errei duas vezes: ao escrever que "Goldfinger" era o primeiro James Bond com Sean Connery e ao corrigir, dizendo que era o segundo. É o terceiro. O fato é que "Goldfinger" foi, na minha história, o primeiro grande propagandista de uma justificação hollywoodiana da vida. Hoje, preferiria justificar minha vida tocando Beethoven, de fraque, numa casa deserta, com Santiago.

16 agosto 2007

Antidepressivos, aspirinas e urubus


Os antidepressivos são uma espécie de aspirina psíquica, capaz de aliviar qualquer tristeza?

A FEBRE se manifesta numa longa lista de moléstias: gripe, infecções bacterianas, insolação e por aí vai. Em todos esses casos, a aspirina combate a febre, mas não cura a enfermidade em que ela se manifesta. Para isso, cada enfermidade tem remédios próprios (quando tem): antibióticos, sulfamídicos, cortisona etc.

Pergunta: segundo a psiquiatria, os antidepressivos atuais são um remédio específico para uma moléstia chamada "depressão"? Ou são uma espécie de aspirina psíquica, capaz de aliviar a tristeza e a morosidade que se manifestam numa variedade de situações de vida e de quadros clínicos? Ou será que podem ser as duas coisas?

Pois bem, graças a um amigo, Célio G. Marques de Godoy, que me indicou o artigo, li uma pesquisa publicada recentemente no "New England Journal of Medicine" (2007, vol. 356, 17). A pesquisa testa a "eficácia do tratamento auxiliar com antidepressivos na depressão de pacientes bipolares". Uma explicação: na clínica psiquiátrica, os transtornos bipolares são um quadro bem distinto da depressão. Neles, o sujeito alterna fases depressivas com fases de euforia maníaca; as fases depressivas são mais longas do que as maníacas, mas a alternância é crucial para o diagnóstico. Em suma, um bipolar em fase depressiva se parece com um deprimido, mas isso não significa que ele sofra da mesma "moléstia".

Na pesquisa, trata-se de saber se, num quadro diferente da depressão, os antidepressivos podem funcionar ou não como uma aspirina que aliviaria qualquer tristeza. A resposta, no caso dos transtornos bipolares, é negativa: os antidepressivos não funcionam como a aspirina com a febre. No entanto, eis o conselho paradoxal dos pesquisadores: se um paciente bipolar já estiver tomando antidepressivos, melhor que continue, embora a pesquisa mostre que eles não parecem aliviar sua fase depressiva. Por que a recomendação?

Pois é, literalmente, porque NUNCA SE SABE. Essa incerteza faz a felicidade dos urubus, que faturam com o uso dos antidepressivos como se fossem aspirina. Mas ela é também o retrato fiel do estado de nossa clínica e de nossa ciência. Vamos lá:

1) Os antidepressivos atuais foram descobertos quando alguém administrou um derivado da hydrazina a pacientes tuberculosos. O efeito inesperado (e único) foi que eles ficaram mais alegres.
2) Mais tarde, descobriu-se que a mesma substância aumentava (pouco importa como) a quantidade de um neurotransmissor no cérebro (a serotonina).

3) Supondo que essa alteração fosse responsável pelo bom humor dos pacientes tuberculosos, decidiu-se experimentar o uso de substâncias análogas em pacientes deprimidos.
4) Para isso, foi necessário construir um padrão de comportamentos e afetos que identificassem os deprimidos; nasceu assim "a depressão". De fato, entre 30 e 40% dos sujeitos que correspondem a esse padrão se beneficiam com o uso dessas substâncias.

5) Por que não todos? a) A definição padrão da depressão é comportamental, afetiva e discursiva, não química, pois é difícil verificar o nível de serotonina no cérebro das pessoas; b) portanto, é possível que muitas depressões sejam conformes ao padrão comportamental e afetivo estabelecido, mas que se expressem por alterações químicas diferentes da insuficiência de serotonina; c) conclusão: reagiriam positivamente a antidepressivos só aqueles deprimidos que expressam quimicamente sua depressão pela diminuição da serotonina no cérebro. Como identificá-los? Só experimentando.

6) Assim como haveria depressões que não se expressam pela insuficiência da serotonina, é também possível que haja, fora da depressão, tristezas e morosidades que se expressem por uma falta de serotonina. Nesses casos, os antidepressivos ajudariam. Como identificá-los? Só experimentando.

Em suma, o uso dos antidepressivos é empírico. Compara-se à administração de antibióticos específicos diante de um quadro no qual nenhuma cultura bacteriana pudesse nos dizer se o paciente é infectado ou não pela bactéria que o antibiótico está atacando.

É uma razão para condenar os antidepressivos? Não. Mas é bom saber que nossa ciência e nossa clínica os administram balbuciando. Correção da coluna passada: "Goldfinger" não é o primeiro James Bond com Sean Connery; é o segundo. Agradeço os leitores que me assinalaram o erro.

09 agosto 2007

Antonioni


Com ele, aprendi que, no amor, é bom não confundir verborragia com comunicação

DOIS ANOS atrás, assisti a "Eros", filme em três episódios de diretores diferentes: Michelangelo Antonioni, Steven Soderbergh e Wong Kar-wai.

Quase saí bem antes do fim. "Eros" começa com o episódio de Antonioni, que me pareceu de uma mediocridade constrangedora: os atores estão perdidos no set, as legendas são preferíveis aos diálogos e, como se não bastasse, há uma série de estereótipos intoleráveis.

Uma mulher nua em cima de um cavalo é uma metáfora erótica tão defunta que só deveria ser utilizada como farsa (exemplo de uma boa farsa: o nado sincronizado à la Esther Williams na cena primorosa dos Oompa-Loompas no lago da "Fantástica Fábrica de Chocolate" de Tim Burton).

Enfim, por sorte ou obstinação, agüentei firme e fui recompensado pelo episódio de Kar-wai, que é uma obra-prima.

A razão de meu constrangimento era simples: a obra de Antonioni, que morreu na semana passada, aos 94 anos, é das que mais me tocaram e me formaram. Deparar-me com um filme medíocre e assinado por ele (embora, presumivelmente, orquestrado por outros) forçava-me a interrogar o passado: o que eu acharia, hoje, dos filmes de Antonioni de 30 ou 40 anos atrás?
Decidi revê-los. Foi uma aventura de várias noites, que recomendo a todos: únicos e inconfundíveis, os filmes de Antonioni não envelheceram. Sua obra, além de ser cinematograficamente genial, continua valendo como uma extraordinária educação sentimental.
Em matéria de educação sentimental, aliás, ela só compete com a obra de Ingmar Bergman, que também acaba de perder seu jogo de xadrez com a morte. Antonioni e Bergman têm em comum um respeito extremo pela intimidade humana.


Talvez seja porque ambos tiveram que redescobrir a dignidade da vida depois da grande "aventura" coletiva da Segunda Guerra e a redescobriram na trama dos sentimentos.

Meus Antonionis preferidos se dividem em dois blocos. O primeiro inclui "A Aventura" (1960), "A Noite" (1961) e "O Eclipse" (1962) e foi chamado, na época, de "Trilogia da Incomunicabilidade". Nunca entendi por quê. Continuo não entendendo. Os personagens de Antonioni só podem parecer pouco comunicativos aos olhos de uma cultura que confunda a verborragia com a comunicação, o falar com o dizer.

Tome "A Noite": poucos filmes ou livros nos dizem de maneira tão simples e correta o que é um casal e o que é um amor. E poucos amantes, cinematográficos ou literários, conseguem, como Giovanni (Marcello Mastroianni) e Lidia (Jeanne Moreau), em "A Noite", dizer tudo o que é preciso e NADA MAIS.

Com Antonioni, aprendi que há uma ética da troca amorosa. Por exemplo, num momento do filme, Lidia some pelas ruas de Milão, durante uma tarde inteira. Quando, enfim, ela se manifesta com um telefonema, a discrição de Giovanni não é um drama da "incomunicabilidade", é a reserva de quem, no amor, preserva o respeito pela complexidade do outro.

O cinema é uma boa parte de nosso repertório amoroso. Pois bem, no amor, como num set de filmagem, é necessário, de vez em quando, avisar: "Silêncio! Ação!". Qualquer casal, em crise ou não, que seja tentado pela idéia de sentar e "discutir a relação" poderia (com bastante proveito) sentar e assistir à "Noite".

Meus outros Antonionis preferidos são "Blow Up", de 1966, (misteriosamente traduzido como "Depois Daquele Beijo") e "Profissão: Repórter", de 1975. Esses dois filmes foram a melhor resposta que minha geração recebeu a seus anseios vagos e frustrados por uma "outra" vida, diferente da mesmice acomodada que receávamos para o futuro.

"Goldfinger", o primeiro James Bond com Sean Connery, saiu em 1964, dois anos antes de "Blow Up". "Goldfinger" é o exemplo perfeito da resposta padrão à nossa questão adolescente: podem sonhar todos com a fabulosa vida de agentes secretos, criminosos, detetives e por aí vai. Pistola por pistola, dez anos depois, alguns, inspirados pela mesma proposta hollywoodiana, caíram na clandestinidade armada.

A resposta de Antonioni é mais sutil e diz que, claro, não é possível romancear a vida sem "ser outro constantemente" (a frase é de Fernando Pessoa, mas é também o recado de "Profissão: Repórter"). Agora, para romancear a vida, não é preciso encontrar destinos grandiosos. Basta enxergar o detalhe que sempre está presente num canto escuro da realidade cotidiana, ao alcance de uma ampliação fotográfica.

02 agosto 2007

As nossas histórias e "A História"


"A História" é abstração: as nossas pequenas histórias concretas são seu verdadeiro tecido

ASSISTI A "Bobby", de Emilio Estevez, que acaba de estrear. O filme conta o dia da morte de Robert F. Kennedy a partir das pequenas histórias de quem, por uma razão ou outra, estava, naquelas horas, no Hotel Ambassador de Los Angeles (que foi o lugar do atentado). É uma ocasião imperdível e tocante para pensar um pouco sobre a relação entre "A História" e nossas pequenas histórias.

Por exemplo, o assassinato de John F. Kennedy, em novembro de 1963, em Dallas, Texas, foi numa sexta-feira, por volta do meio-dia.

Sei disso porque lembro que eu estava em Milão, na casa dos meus pais, e ia sair com meu melhor amigo; a notícia chegou na hora do jantar.

Logo, o grupinho político ao qual eu e meu amigo pertencíamos (o Círculo Piero Gobetti) convocou uma reunião de urgência (no retrospecto, a urgência parece engraçada).

Redigimos uma declaração "oficial", de cujo teor eu me esqueci totalmente, mas que foi impressa em cartaz no dia seguinte. Passei a noite de sábado com meu amigo, colando cartazes pelas ruas, no frio. Como o cartaz não era autorizado, fomos presos, na madrugada. É a melhor lembrança que tenho de meu amigo do peito daqueles dias.

Eu também me lembro do exato momento em que aprendi que Martin Luther King tinha sido assassinado, em Memphis, Tennessee, no começo de abril de 1968: estava sendo apresentado a meus sogros, em Houston, Texas.

Do dia do assassinato de Robert Kennedy, em junho de 1968, não me lembro. Provavelmente não está ligado a nenhum pequeno evento de minha própria história.

Estava em Paris no dia da greve geral de 22 de maio de 1968. Mas saí da cidade, de carro e com dificuldade (era difícil encontrar gasolina), antes da manifestação favorável a De Gaulle, que foi em 30 de maio. Sei disso porque sei onde estava e com quem quando me disseram que a manifestação do dia 30 tinha acontecido, promovida (fato doloroso) por um dos meus ídolos literários, André Malraux.

Depois disso, nada até o fim de agosto de 1968: no dia em que os tanques soviéticos entraram em Praga, estava no barzinho do porto de Panarea, na Sicília, onde, naquele ano, eu passava minhas férias de verão (que eram também uma espécie de lua-de-mel).

Alguns grandes eventos da "História" me permitem datar minhas pequenas histórias. Reciprocamente, há datas de grandes eventos das quais me lembro porque estão ligadas a momentos cruciais de minha pequena história.

Tudo bem, eu uso meu teatro íntimo para me lembrar das datas dos grandes eventos e, reciprocamente, sirvo-me dos grandes eventos para me lembrar de algumas datas de minha vida. Mas qual é a diferença e qual a relação entre minhas histórias e "A História"?

Poderíamos dizer assim: os eventos da "História" são aqueles que interferem na vida de muitos, enquanto nossas histórias só concernem a nós e a um número restrito de próximos.
Agora, por mais que sonhemos, às vezes, com o progresso da razão, o fim da luta de classe ou a marcha providencial para o juízo final, "A História" não tem dinâmica própria.

Ela é só a resultante das infinitas pequenas histórias da gente. Sirhan Sirhan, o assassino de Robert Kennedy, disse, na época, que ele se sentia compelido a agir pela "História": Robert Kennedy tinha apoiado Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e o assassinato aconteceu no aniversário do começo da guerra. Por outro lado, Sirhan era um sujeito desequilibrado e influenciável. Sem os percalços de sua pequena história pessoal, ele nunca teria cometido o ato que o propulsou para o palco da "História".

Além disso, "A História" não tem interesse intrínseco. Ela só vale porque, de uma maneira ou de outra, ela mexe com nossas pequenas histórias. "A História" pode dizer, por exemplo, que, se Robert Kennedy não tivesse sido assassinado, Nixon não teria sido eleito e a guerra do Vietnã teria terminado mais cedo.

É provável. Mas dizer que "a guerra do Vietnã teria terminado mais cedo" é uma abstração. O que importa é que Joe, Jack, Ho, Nguyen etc. teriam ficado em casa, teriam amado, criado seus filhos e por aí vai -é isso o que importa.

Quando contamos "A História", esquecemos que ela não é nada se não uma abstração de histórias concretas. E, quando pensamos nas pequenas histórias, inclusive nas nossas, esquecemos que elas são o verdadeiro e único tecido da "História".