20 novembro 1994

A mão que segura o berço não nina mais

Crianças deixam de ser depositárias de sonhos e tornam-se vítimas de um amor culpado e destrutivo


Há um mês, Pauline Zile, 24 anos, de Riviera Beach, Florida, apresentou-se à imprensa e à polícia como sendo a mãe com o coração destroçado pela perda de sua filha Christina, inexplicavelmente sumida em uma feira. Soube-se mais tarde que Christina fora de fato espancada até à morte pelo marido de sua mãe.

A história, por horrível que fosse, deixava pelo menos murmurar: não foi a mãe, foi o marido. Podia-se aparentemente esquecer que Pauline aceitara participar em uma farsa pública para desculpar seu homem, e –pior ainda– que ela devia então querer seguir vivendo com o assassino de sua filha.

O caso mais recente, Susan Smith, 23 anos, de Union, Carolina do Sul, não deixa esta escapatória. No 25 de outubro último, Susan declarou que seus filhos Michael de 3 anos e Alexander de 14 meses teriam sido raptados, com o carro dela, por um homem negro de quem forneceu descrição.

Seguiram-se conferências de imprensa, aparição na televisão com o marido e pai das crianças (de quem ela estava separada), batidas pelos campos da Carolina do Sul por policiais e voluntários, vigílias de prece nas diferentes igrejas de Union etc. Enfim Susan não aguentou e confessou que deixara ela mesma seu carro, com as crianças devidamente amarradas pelos cintos de segurança, deslizar nas águas escuras de um lago.

O marido e pai das crianças nada tinha a ver com isso; foi enganado como todos os outros. Parece que um atual namorado de Susan teria declarado que só aceitaria ficar com ela se não tivesse filhos. A imprensa e a opinião americanas jogam a carta eterna da perversidade humana ou do moralismo.

Mas os vizinhos de Susan não se convencem e seguem declarando que Susan adorava seus filhos. Provavelmente eles tem razão. E é bem por isso que o caso agita tanto a dita opinião pública. Se Susan fosse uma megera disfarçada, bastaria queimá-la (a cadeira elétrica substitui a fogueira). Mas se for uma mãe amorosa e assassina, as coisas se complicam.

Certamente nos próximos meses psiquiatras e psicólogos, forenses ou não, terão matéria. Contudo, a questão mais importante talvez não seja a hipotética dinâmica subjetiva que produziu o ato de Susan ou o de Pauline Zile. Talvez seja mais relevante considerar as reações que eles inspiraram.

A comunidade negra naturalmente protestou pelo racismo implícito na denúncia de Susan, e na imediata credulidade da comunidade de Union: para raptar criancinhas, só negro mesmo. Como sempre, o racismo consiste sobretudo, em delegar ao outro (ao negro de plantão, no caso) a parte mais preta de nossa própria alma.

Isso fica claro, por exemplo, quando nossas preocupações sociais se tingem de racismo (e negros malvados ameaçam o sono de nossas propriedades). Podemos apostar, neste caso bem brasileiro (quem disse que este país não é racista?), que as ditas propriedades são fruto de uma exploração que não reconhecemos, e cuja violência atribuímos às próprias vítimas. Em outras palavras, o receado latrocínio pelos negros é a caricatura da violência com a qual eles foram explorados e serve justamente para esquecer esta violência.

Do mesmo jeito, o suspeito negro de Susan Smith era perfeito para que não só Susan, mas todos pudessem esquecer qual é o lugar das crianças em nossa cultura hoje e quanto este lugar as torna vulneráveis à violência mais explícita. Em suma: para acreditar que os negros comem criancinhas, precisa estar com bastante apetite.

Tanto a conclamação de terror que estas condutas infanticidas parecem produzir, quanto a caçada racista ao famigerado negro testemunham de uma mesma tentativa: trata-se de ocultar, de esquecer algo que faz parte de nós. O quê? Que as crianças não são mais o estereótipo da busca da felicidade. Fazer a felicidade de filhos e filhas ou mesmo simplesmente planejar em vê-los ou vê-las felizes um dia não é, como já foi, em nossa cultura, o que nos faz sonhar.

Assim como criar crianças não é mais razão de ser. Preferimos estereótipos de felicidade para nós mesmos, imagens adultas de satisfação. Pauline preferiu o marido à filha e para Susan se suspeita que também tenha preferido sua liberdade solteira aos filhos.

Esta nova situação, que decreta o fim da infância como tempo privilegiadamente amado pelos adultos, não precisaria ser dramática. Ao contrário, poderia até constituir um excelente negócio para as crianças. Quem sabe parássemos de persegui-las com nossos sonhos e deixássemos viverem sua vida.

Mas não é assim. Vivemos numa época de transição; por isso, a contradição nos tortura entre nossas novas aspirações adultas e o antigo amor pelas crianças. As Paulines e Susans da vida parecem preferir ver suas crianças mortas do que amá-las menos do que a si mesmas. O próprio horror que estes contos da crônica inspiram na massa testemunha de uma exasperada declaração coletiva de amor, que é só uma expressão de culpa.

Conseguimos parar de amar as crianças como se fossem os únicos representantes de nossa felicidade, preferimos agora amar diretamente a nós mesmos, mas não conseguimos nos perdoar por ter assim mudado. Pauline e Susan, acredito, amavam suas crianças. Demais, como por culpa. Nós também estranhamos demais estes crimes, nos indignamos demais. E talvez seja pela mesma culpa.

O pai de Susan será certamente lembrado até não poder mais no processo: suicidou-se quando ela tinha sete anos. Os psiquiatras invocarão os nefastos efeitos do trauma. Mas este não concerne só a Susan. O suicídio do pai assume aqui quase uma dimensão mítica, como se fosse o símbolo de uma mudança pela qual os pais cessaram de ser pais, elos decisivos na cadeia das gerações, e decidiram ser simplesmente indivíduos.

Imaginamos um suicídio de desespero, por um fracasso, e acabamos supondo que um pai ou uma mãe só podem se matar legitimamente à condição de não mais depor seus anseios de uma vida melhor no futuro de suas crianças.

É frequente que sujeitos cujo pais ou cuja mãe se suicidou atravessem a vida lamentando não ter podido impedir o suicídio. Lamentam com razão não ter sido os depositários dos sonhos de seus pais, ou não tê-lo sido o suficiente para que os pais se contentassem de esperar de ver suas crianças felizes. Se os pais puderam se matar de desespero, se puderam parar de depositar esperança nos filhos, então o que conta para o órfão que sobrou é sua própria felicidade.

Por isso, elas podem facilmente se transformar em simples empecilhos no caminho da vida. Não seria razão suficiente para matá-las ou abandoná-las. A não ser que a culpa nos espreite, porque ainda as amamos. Precisará, neste caso, fazer desaparecer as crianças, ocultar assim o corpo de um delito que não é o assassinato, nem propriamente a mudança do amor. Na verdade não há delito, só perplexidade: a mão que segura o berço não sabe mais ninar, mas tampouco se autoriza a soltá-lo e acaba sacudindo a tal ponto que às vezes o nenê cai no chão.

06 novembro 1994

Toscani filósofo

Um grande sonho de nossa cultura nunca esteve tão prestes a se realizar: que, além e apesar de suas cores, crenças, culturas e tradições diferentes, os homens, enquanto indivíduos, se reconheçam enfim todos como membros de uma humanidade comum.

Mas o que há de comum? O que sobra, além do que parece nos separar em grupos distintos ou opostos? A premência da questão é grande, pois, libertando-nos do respeito aos valores ancestrais particulares, dinamitando as hierarquias estabelecidas e exaltando o indivíduo, nossa cultura complicou bastante a vida social. Como esta não pode mais se fundar sobre tradições de grupo, é preciso inventar um consenso idealmente universal. Mas qual?

Esta questão antiga recebeu duas respostas clássicas e não incompatíveis. A cristã: somos todos filhos de um só Deus; e a do espírito científico moderno: somos todos dotados de uma mesma razão.

Não parece que a resposta cristã tenha dado certo. A Bíblia conquistou novas terras para a cultura ocidental, mas não fundou consenso nenhum. Ao contrário, o espírito da Reforma triunfou, como era inevitável: uma religião onde Deus se endereça ao foro íntimo de cada um e não a um povo no seu conjunto só pode deixar cada indivíduo livre para interpretar a palavra de Deus, e enfim para imaginar o Deus que melhor lhe convém. Ótimo, mas sem muita chance de presidir um consenso social. Só nas culturas que resistiram ao expansionismo da nossa, por exemplo no mundo islâmico, a religião consegue ser o cimento da vida social.

O espírito moderno achou outra resposta à questão do que seria comum à humanidade inteira. Acreditou-se que a razão, como faculdade humana igual para todos, pudesse assumir a tarefa de organizar nossas condutas e os consensos necessários ao convívio. Não deu muito certo. Os doutores Kant, Habermas e Apel ainda estão sendo esperados na Bósnia e em alguns outros lugares. Também houve quem pensasse que a razão universal pudesse dar lugar a uma utopia coletiva discernível como alvo de nossa história. Como se sabe, não deu muito certo.

Um olhar simplesmente constatativo poderia nos ajudar a descobrir qual é hoje a nova universalidade que nossa cultura inventou: a única forma de controle social, o único efetivo agente regulador das condutas sociais que possa hoje ambicionar a palma da universalidade é o mercado, ou –melhor dito– o consumo.

É progressista e banal acusar desta circunstância os banqueiros de Londres, para falar como Mário de Andrade. Mas o consumismo não é o complô de sinistros especuladores. Antes de mais nada, ele é um grande movimento cultural. Talvez o maior na história de nossa cultura desde o cristianismo.

Graças a ele, mesmo vindos de horizontes disparatados, encontramos de novo uma convergência e portanto uma possibilidade de consenso social. Nem tanto ao redor dos objetos que o mercado propõe, ou do dinheiro que é seu equivalente universal, mas ao redor das imagens que temos em comum. São imagens da felicidade que o mercado nos promete ou, melhor, com as quais ele nos garante que acabaremos coincidindo se tivermos acesso aos bens que ele dispensa.

Se, como Toscani lembra, o gasto publicitário é maior em nossa cultura do que o gasto com a educação pública, então, antes de se indignar, é preciso reconhecer que a publicidade é hoje mais formadora de nossa subjetividade do que o ensino escolar. Ela é a maior expressão de nossa época, quantitativamente pelos investimentos que mobiliza, e qualitativamente por ser seu protótipo cultural, pois o consenso da razão contemporânea parece ser feito de imagens de sonho que nos convidam: sejam como nós. Imagens publicitárias.

É a dita cultura do narcisismo, onde o fundamento do laço social são estereótipos que todos queremos espelhar. Mandem para Bósnia: Valentino, Claudia Schiffer, McDonald's e, porque não, Benetton –quem sabe acalmem os espíritos. Os fundamentalistas islâmicos, que conhecem o problema, receiam acima de tudo o ingresso destes sonhos em seu mundo. Com razão: eles são a autêntica voz atual do Ocidente e de seu projeto universal.

Nunca então a vocação universal de nossa razão esteve tão perto de se realizar. Porque não celebraríamos este triunfo, como os missionários podiam exultar convertendo povos inteiros, ou os ilustrados constatando a queda dos preconceitos frente ao poder universal da razão?
De fato, a expansão do consumismo não nos garantiu a paz perpétua. Estamos permanentemente frustrados com os objetos e suas mágicas, pois evidentemente nunca coincidimos com as imagens sonhadas. Acabamos achando sempre que alguém, de perto ou de longe, mas sobretudo de longe, orquestra nossas frustrações.

Além disso, o consumismo é ao mesmo tempo o maior sucesso e a maior ameaça da história de nossa cultura: realizou um consenso quase universal, mas fundou este consenso em uma estereotipia dos sonhos, ou seja, do motor mesmo da autonomia do indivíduo e da invenção histórica. A razão do ocidente arrisca a se cristalizar em uma forma deteriorada de sociedade tradicional: um exasperante conformismo.

Há vários caminhos de revolta contra o momento atual de nossa cultura.

É possível, por exemplo, renegar a própria idéia de universalidade do humano, aspirar a uma volta a qualquer forma de tribalismo. Não é o caso de Toscani: sua tolerância, seu interesse para as diferenças são liderados por uma mensagem universal, como só nossa cultura, aliás, sabe produzir.

A estratégia de Toscani aposta na idéia que, reconhecendo e se servindo da própria potência do mercado e do consumo, seja possível promover um universal humano que não se reduza às imagens estereotipadas de falsa felicidade próprias à comunicação publicitária dominante. Por isso trata não de destruir, mas de modificar o instrumento cultural decisivo de nossa época: a publicidade. Toscani propõe valorizar as marcas (o que pode satisfazer o mercado) pela propagação de mensagens. As marcas poderiam valer e também vender por sua capacidade e sobretudo qualidade comunicativa. A sedução dos produtos passaria pelo interesse humano, político e mesmo intelectual das mensagens que os produtores comunicam.

Os próprios produtos, aliás, se encontrariam modificados: sua concepção não seria decidida pela suposta sedução das imagens que podem compor, mas pela inteligência do mundo que produziria uma nova comunicação. Cada empresa concorreria com as outras produzindo comunicação.

É bem possível que, em nossa cultura hoje, qualquer mensagem ou qualquer conjunto de mensagens só seja recebido como corolário de um estereótipo a mais. O homem Benetton seria diferente do "Marlboro man", seria mais um médico sem fronteiras do que um caubói, mas ainda seria uma imagem proposta aos nossos sonhos.

É também possível que a valorização das marcas não reserve um futuro melhor do que os estereótipos da publicidade dominante. Nos últimos anos, particularmente no vestuário, a marca é exibida, e não só para escrever publicamente nossa relação com a felicidade que sua publicidade promete. Frequentemente, aliás, ela é perfeitamente desconhecida.

Tudo acontece como se sua simples exibição a enobrecesse e nos enobrecesse com ela. Não seria totalmente louco imaginar um mundo onde ao consenso produzido pelos sonhos publicitários comuns se oporia uma divisão em clãs. Sem a mediação da imagem, as marcas funcionariam como tantas tatuagens tribais. Um mundo de torcidas organizadas.

Mas o momento talvez não seja para previsões pessimistas. Toscani trabalha para que, mesmo no mundo do consumo e das imagens, o imaginário narcísico não se torne o universal dominante. Inventa e produz justamente imagens que não possam ser recebidas como propostas feitas ao consumidor para que com elas se identifique.

O catálogo em Gaza é um exemplo: ninguém comprará Benetton por querer se parecer com a pobreza e a tragédia palestina. Para reconhecer que os palestinos são nossos semelhantes, tão humanos quanto nós, não será necessário recorrer à mediação de uma top model, ou seja descobri-los humanos porque sonham com os mesmos estereótipos que nós, bastará encontrá-los, na banalidade de seu cotidiano, não travestidos, só vestidos um pouco com a nossa mesma roupa.

Que ninguém se preocupe demais: o imaginário é tenaz e os caminhos da boa consciência são infinitos. Os palestinos de Gaza podem nos atrair não pelo sonho de sermos como eles, mas pela sedutora certeza de sermos, no fundo, o sonho deles. Do mesmo jeito, a contemplação do sangue de Sarajevo como o drama da Aids podem fazer apelo a um humanitarismo fácil que a pouco preço coroa nossa elegância com um toque de consciência civil.

Não pararemos tão cedo de sonhar coletivamente com a publicidade. E, se parássemos, qual nova universalidade nos espreitaria?

Toscani é um homem do século 18. A mensagem que lhe importa comunicar por suas imagens é um breviário do Iluminismo: universalidade do homem, crítica das religiões como fonte de preconceito, pacifismo racionalista, tolerância, fé na razão.

Mas o importante talvez é que se tente pelo menos demonstrar a possibilidade que a maior expressão de nossa cultura, a publicidade, comunique algo diferente das mascaradas de felicidade que parecem constituir hoje a razão do Ocidente.

Gaza cai nas malhas da Benetton

O território palestino é o novo cenário do fotógrafo Oliviero Toscani


Levou um certo tempo para acalmar as suspeitas legítimas da jovem mulher da segurança israelense da companhia aérea El Al no aeroporto de Tel Aviv. A história parecia incrível: viera a Israel e a Gaza para ver Oliviero Toscani, art-director da Benetton, que decidira fotografar seu futuro catálogo em Gaza, usando como modelos pessoas escolhidas nas ruas.

Teria sido uma conversa quase divertida, se não fosse a data. Era o 19 de outubro, à noite. Israel chorava as vítimas do atentado terrorista a um ônibus na avenida Dizengoff, em Tel Aviv, em que morreram 23 pessoas.

Enfim, a jovem mulher acreditava na minha versão dos fatos, mas queria saber como eu me situava. Havia em seus olhos uma espécie de dor profunda, um medo de traição. Me devolveu bilhete e passaporte. Agora eu podia falar.

Avancei até o balcão e segui para as formalidades da polícia. Não conseguira lhe dizer quanto eu sentia. E não podia evitar de me desprezar como um amante que covardemente abandonaria sua amada na hora do desespero. Me sentia culpado de ter ficado em Gaza, culpado por deixar Israel em sua dor e luto. Havia, neste sentimento espontâneo e excessivo, uma sinceridade acima de qualquer ideologia. Como se, na hora do perigo, reconhecesse instintivamente os meus. Mais quais meus? Se não sou judeu, porque seriam os meus?

Imagens do horror

Tudo começara um mês antes. Oliviero Toscani anunciou que viajaria a Gaza para fotografar o próximo catálogo Benetton. Usaria o povo da Palestina como modelo. Não queria propor o encanto de falsos sonhos de poder, glória e sex appeal, que a publicidade de moda geralmente promete a seus consumidores. Gaza é o símbolo de um fracasso da razão em conciliar diferenças, mas também, com o progresso da paz, um lugar de esperança. Qual melhor escolha para afirmar e confirmar o Iluminismo de Toscani? Aqui a razão triunfaria.

Naturalmente, era difícil prever que nossos dias em Gaza se situariam exatamente entre o trágico desfecho do sequestro de Nahshon Wachsman e o atentado assassino de Tel Aviv. No almoço do último dia, consternados na frente da televisão, olhávamos desfilar as imagens do horror na avenida Dizengoff. Toscani repetia: "Tudo errado, fazem tudo errado". Preferia pensar o horror como fruto de um simples erro da razão do que admitir que todas as cores talvez não sejam United Colors of Benetton.

A Renault vermelha

Para entrar em Gaza, é preciso trocar de carro. As placas israelenses não se aventuram do outro lado. O "checkpoint" Erez estava fechado quando cheguei, como estaria de novo no momento de nossa saída; fechado, entenda-se, aos habitantes de Gaza que desejam entrar em Israel. O governo israelense reage assim às agressões palestinas. Faz sentido, pois é provável que ativistas do Hamas (grupo radical islâmico) penetrem no país com o fluxo diário de dezenas de milhares de trabalhadores.

Mas a decisão alimenta uma espiral de ódio e ressentimento: quando os homens não podem atravessar a fronteira, a vida econômica de Gaza sofre imediatamente, assim como sofre seu orgulho de independência. Desvela-se a paródia da atual autonomia: a rede elétrica se alimenta em Israel, as telecomunicações dependem de Israel, não há passaporte, nem nacionalidade palestina. Ressurge então o espírito da Intifada, que dá crédito livre ao Hamas e enfraquece as chances de paz, com a autoridade de Fatah (principal facção da OLP - Organização para a Libertação da Palestina).

Esperei o carro previsto perto da entrada lateral do "checkpoint". Os marines israelenses eram cordiais, procuravam lembranças comuns de cidades italianas e ofereciam Heineken gelada. Aceitar era inevitável, assim como bebê-la ostensivamente. "Este bebe cerveja, é dos nossos!" Apesar disto, um palestino tentava chamar minha atenção. Perguntou enfim de onde eu vinha. Itália e Brasil caíram bem, ele tinha um tema na mão: a última Copa, a famosa final. O caporal israelense cortou seco a conversa, apostrofando-o: "Mas você fala bem inglês...". A nova partida ecoou como o começo de um interrogatório ameaçador.

O palestino recuou e os militares contra-atacaram, me perguntando se queria tirar umas boas fotos do "checkpoint". Os poucos palestinos que voltavam para Gaza foram então inspecionados com largos gestos abertos e posados. Parecia que ambos os lados estavam competindo por um gesto de cumplicidade e aprovação. Pareciam perguntar: "Com quem estás?" Não reconhecer os seus é difícil em Gaza.

Alberto, o representante de Benetton em Israel, encostou seu carro ao lado do "checkpoint", para que se pudesse melhor escutar o rádio. Era uma Renault Clio novíssima, vermelha. O brilho do objeto venceu: os soldados se agruparam ao redor do carro, deixaram de encenar para mim o controle de polícia e, para cima da fronteira, todos começaram a falar juntos, de cavalos a vapor, preços e coisas de carro. Era um presságio: como se um futuro de paz não devesse ser esperado de um diálogo entre culturas ou religiões diferentes e inimigas, mas de uma nova religião comum já pronta: a fantasmagoria do consumo.

Carona do consumo Em Gaza, muitos perguntariam: "Abrirá uma loja de Benetton aqui?" Como se só o acesso ao consumo pudesse, para além de qualquer palavra, significar o acesso de Gaza ao convívio das nações. Mas o próprio desejo de modernidade acarreta ódio e desconfiança. Pegar a carona do consumo implicaria aceitar ser, por um longo momento, um povo de segunda linha. É difícil, para quem adquiriu consciência de ser um povo em quase 50 anos de desastre e de luta. A modernidade desejada torna-se sempre persecutória, pois embarcar nela é também necessariamente ser frustrado dos bens que ela promete. O Hamas fatura.

Gaza não é o Irã nem o Iraque. No mínimo, os palestinos, dispersos no exílio, viajaram demais para cultivar uma incontaminada pureza cultural. Dividida entre as aspirações ou a "Realpolitik" de abertura da OLP (o acrônimo da sigla árabe, "Fatah", significa "abertura") e, por outro lado, o espírito do Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas (o acrônimo significa "ousadia, agressão, coragem"), Gaza não é uma diferença absoluta.

As pessoas escolhidas como modelos ocasionais pela equipe de Toscani eram convidadas a responder a algumas perguntas. Suas respostas eram extraordinariamente uniformes: "Não gosto de política, a economia está um desastre, mas temos uma sociedade muito boa, a paz é uma grande esperança, aceitamos ser fotografados para mostrar ao mundo que somos pessoas como as outras".

Eu me perguntava o que podia esconder a repetida declaração que "a sociedade é muito boa". Pois, de fato, via um povo dividido entre a necessidade e a vontade de oferecer uma nova imagem de si, pacífica, aberta, seduzida pela modernidade e, por outro lado, a defesa fundamentalista das tradições islâmicas ou o rancor dos excluídos. Mas a fratura é inconfessável.
O Hotel Marna House é um dos raros lugares, com o Beach Club da ONU, onde é possível, em Gaza, beber uma cerveja. Daí o desfile vespertino de homens notáveis. Sentados em mesas diferentes, muitos deixam a mão com o copo descansar distraidamente sob a mesa. Nem a cumplicidade de uma falta comum contra a tradição religiosa lhes permite assumi-la. Fatah e Hamas em cada um.

No pátio do hotel, Toscani, Frédéric Vassor –cameraman da equipe– e eu conversamos com Hassan Dahman, representante da OLP em Paris, temporariamente em Gaza. "Os estrangeiros", ele diz, "são bem vindos a Gaza. Queremos dar uma imagem do povo palestino diferente daquela da Intifada, das pedras e das armas". Vassor não perde a ocasião: "Vocês procuram uma nova imagem?". Reação imediata: "Não, não, a imagem é a mesma, o povo palestino não mudará, é o mesmo. É a propaganda que criou esta imagem de armas e pedras".

Seduzir é a palavra de ordem. Um pouco mais tarde falamos da reação israelense ao sequestro de Nahshon Wachsman. Dahman comenta: "Os israelenses montaram esta história de refém em Gaza. E com estas prisões, eles nos atrapalharam". Depois da morte de Wachsman, Fatah prendeu 300 militantes de Hamas. Dahman parece admitir que foi para satisfazer o governo israelense e mesmo pensar que Israel fomenta assim a divisão em Gaza.
Corão e metralhadora

De fato, à tarde, e ainda na manhã do dia seguinte, veremos desfilar manifestações coesas para forçar Arafat a soltar os militantes do Hamas. É péssimo ibope para a Fatah, certo. Mas o inimigo é mesmo Israel? Cansado de escutar bobagens, largo: "Os israelenses tinham toda razão de pensar que o refém estivesse em Gaza, dado que o Hamas tornou público em Gaza a fita na qual Wachsman pedia que as reivindicações dos sequestradores fossem satisfeitas. Parece-me que o Hamas fez tudo o que podia para incomodar a Fatah e o governo de Arafat". Dahman pulou na sua cadeira: "Não! Não! Eles não quiseram nos incomodar". E de repente: "Você não está gravando tudo isso, está?". Desliguei o meu gravador.

Toscani, provavelmente para se convencer, declarava: "Aqui haverá um futuro, será mais rápido do que parece". Mas o impasse é violento. Quanto mais Arafat negocia a paz para construir uma nação, tanto mais Hamas se afirma como única bandeira do orgulho nacional. O Hamas, aposto, não se apresentará nas futuras eleições. E sobre os muros de Gaza, a imagem do Corão aberto se espelha no desenho de uma metralhadora Kalachnikov.

Na tarde de terça, permaneço no hotel. Converso com um amigo de nosso intérprete. Impossível falar sobre o que nos separa; só quer ouvir o que nos aproxima. Explico-lhe as razões francesas para não aceitar que nas escolas públicas, na França, as jovens islâmicas portem o véu. Ele defende uma tolerância aparentemente mais ocidental do que a minha. Tento lhe responder que a tolerância não é uma escancarada indiferença, mas a defesa positiva de um valor. Portanto, ela pode implicar também uma oposição declarada contra qualquer cultura que aproveite dela sem praticá-la.

Ele me responde que a desconsideração dos infiéis, assim como o ódio indiscriminado que podia permitir, são, para eles todos, coisas de museu. Na manhã seguinte, após o atentado de Tel Aviv, nos encontramos na frente da televisão. Nós nos fixamos longamente em silêncio. Continuo sem saber ler seu olhar: medo da condenação injusta por um crime que ele renega, revolta pela desconfiança que talvez já leia em meu olhar, ou talvez também orgulho e desafio.
Pulôver e cafetã

No último dia, a equipe visita a casa dos órfãos que Arafat adotou. São mais de 50 crianças e adolescentes que perderam os pais quer seja no massacre de Sabrá e Chatilá, quer seja na batalha do Líbano. Pela primeira e única vez, Lloyd, o maquiador, será autorizado a colocar, não digo uma mão, mas pelo menos um pincel no nariz de uma adolescente. Nota discordante, na frente da casa: soldados palestinos vigiam e afastam, peremptoriamente, qualquer curioso. A abertura é envergonhada.

Mas, nesse fim de tarde, antes da saída, com a última luz do sol, há na equipe um sentimento geral de missão cumprida. O humanitarismo está satisfeito. Benetton deixa com os órfãos as peças-piloto trazidas assim como uma doação em dinheiro. Esquecemos as raras recusas e preferimos lembrar a disponibilidade até de idosos tradicionalmente vestidos que aceitaram colocar um pulôver por baixo do cafetã para mostrar ao mundo que a Palestina é parte dele.

Gaza parece perto de nós. Era o que Toscani queria. De repente, ele pergunta a duas adolescentes gêmeas onde elas nasceram. "Na Romênia", respondem. Volto para uma realidade feita, no passado, de campos de treino para militantes do terror, atrás da Cortina de Ferro; e ainda feita, no presente, de campos na Síria, talvez na Líbia, no Iraque, no Irã. O Hamas nas ruas e o Hamas em cada um mantém este povo refém de si mesmo.