25 março 2010

Injeções de obediência




A relação entre pais e filhos se transforma em luta de braço, e pais se desesperam de ser pais



NA SEMANA PASSADA, em Piracicaba (SP), Josiane Ferraz, 31 anos, acorrentou o filho à cama. Foi o jeito que ela encontrou para conter seu menino, de 13 anos, usuário de crack.

Sem grande esforço de memória e de pesquisa, lembro-me de que, faz um ano, em Cuiabá (MT), Neves e Cleuza de Souza acorrentaram seu filho de 13 anos, viciado, violento e incontrolável. Dois ou três anos atrás, um caso análogo aconteceu em Porto Alegre (RS), com um menino de 11 anos, também usuário de crack. Nos três casos, os pais procuraram ajuda: consultaram o Conselho Tutelar de sua cidade, dirigiram-se aos serviços públicos de saúde mental ou pediram a intervenção da polícia. Eles, simplesmente, não sabiam mais a que santo recorrer.
 
Neves de Souza, explicando sua decisão de acorrentar o filho, disse que "foi desespero". Josiane Ferraz, na semana passada, disse a mesma coisa: "É triste, mas é desespero de mãe de ver o filho nesse estado e agressivo a ponto de falar que vai matar a gente".

O medo de Josiane não é exagerado. Além de quebrar a casa na exasperação e na raiva, além de roubar tudo que possa ser vendido ou trocado por crack, os jovens viciados podem matar. Em novembro do ano passado, em Rincão dos Ribeiros (RS), um neto matou o avô com um golpe de faca de cozinha no pescoço. O neto tinha 21 anos, e o avô, 88. O neto pediu dinheiro, o avô negou.

É isso que aconteceu nos casos dos quais me lembrei, e é isso que acontece em inúmeros outros, que não chegam às páginas de crônica: os pais dizem não, mas, para os jovens, as vontades e as palavras dos pais são vontades e palavras quaisquer, sem autoridade própria.

"Você não vai sair, hoje." "Ah, é? Vou sair, sim, seu babaca, e ainda pego sua grana." Um pai vigoroso enfrenta o filho; uma mãe tenta acorrentá-lo enquanto dorme. Em ambos os casos, a relação entre pais e filhos se transforma em luta de braço, e os pais se desesperam de ser pais.

O que faz com que a gente reconheça a autoridade dos pais sem que ela tenha que se impor pela força? Respostas possíveis: a dívida com quem nos engendrou, o amor por quem nos amparou, o respeito pela experiência e pela suposta sabedoria dos mais velhos etc.

Agora, por que esses argumentos podem nos parecer estranhamente piegas? Simples: eles só fazem sentido num contexto social e cultural em que parecesse normal que condutas humanas não fossem orientadas nem por interesse nem pela coerção exercida pela força, mas por valores -ou seja, eles fazem sentido num mundo, por exemplo, em que a lei, para ser respeitada, não dependesse apenas da polícia. Esse não é bem nosso mundo.

E não pense que os pais recorram à força apenas em casebres insalubres e em casos extremos de filhos viciados além da conta. A tentação (ou mesmo a necessidade) de recorrer à força surge a cada vez que o afeto e as palavras são insuficientes para que os pais sejam ouvidos. Os pais arrancam a tomada do computador, escondem o celular, garantem que não abrirão a porta se os filhos chegarem depois de uma certa hora -sem contar aqueles momentos (mais frequentes do que a gente gosta de admitir) em que, de fato, pais e filhos se encaram, a um dedo do enfrentamento físico. E há outras formas de violência, mais "limpas".

A revista "Science" de 19 de março (327: 1515-1518) publicou uma pesquisa de Sheryl Smith e outros, que foi apresentada no caderno Ciência da Folha de 19/3 e que mostra o seguinte: para camundongos na puberdade, aprender é mais difícil do que para camundongos pré-púberes. Tudo indica que um receptor celular específico é responsável pela cabeça-dura dos camundongos adolescentes, e, presumivelmente, dos adolescentes humanos.

Quem sabe, supõe Smith, esse receptor tenha sido útil, ao longo da evolução, para que os adolescentes saíssem de casa e se tornassem independentes. Mas, hoje, o tempo de preparação para a vida adulta se estende à perda de vista e, com a convivência prolongada de pais e filhos, o receptor se tornou incômodo. Que tal inventar uma droga que silencie o tal receptor e torne nossos adolescentes tranquilos, atentos e obedientes como crianças? Se ela for possível, essa droga será inventada, patenteada e usada largamente. Não será mais preciso acorrentar meninos e meninas. Mas, no essencial, não mudará absolutamente nada. Continuaremos impondo a autoridade como violência real -em vez da corrente, a injeção ou o comprimido.

18 março 2010

O custo de nossa fé na redenção




Se não fosse tão difícil internarmos indivíduos perigosos, Glauco e Raoni estariam conosco


GLAUCO MAL me conhecia, mas eu o conhecia bem: ele era presença familiar no meu café da manhã, a cada dia, há muitos anos. Dos personagens que ele inventou, em suas tiras na Folha, quais são meus preferidos? Gosto muito do silencioso Nojinsk, de Zé do Apocalipse e do Casal Neuras, mas Geraldão e Geraldinho são os que mais me tocam, talvez por serem retratos milagrosamente exatos da voracidade que é, hoje, um traço dominante, em todos nós, adultos e crianças. Por sorte, vou poder matar a saudade, pois os dois personagens ganharam coletâneas em livros (LPM e Companhia das Letras, respectivamente).

O assassino confesso de Glauco e de seu filho Raoni é um jovem de 24 anos, que frequentava a Céu de Maria, igreja do Santo Daime fundada pelo próprio Glauco. O jovem é ou era dependente químico e sofre ou sofria de transtornos mentais graves; pelo que entendi, havia a esperança de que ele encontrasse, no ritual do daime, uma saída -da droga e da desordem de seus afetos e pensamentos. Isso não impediu que, na noite do assassinato, ele se confundisse com um profeta ou com o próprio Jesus Cristo.

Às vezes, o convívio social proporcionado por uma igreja ajuda um drogado a abandonar sua dependência ou um louco a conter-se e a reencontrar algum equilíbrio mental. Essas "recuperações" são, de fato, precárias e incertas.

Cuidado, não estou minimizando apenas o poder terapêutico do convívio religioso. Critico o otimismo que nos leva a acreditar na possibilidade de transformações definitivas -pelo encontro com um deus, pela prática de uma religião, pelo uso de psicofármacos ou pela psicoterapia.

Esse otimismo é, provavelmente, um efeito da ideia cristã de que não existe um pecado que não possa ser esquecido e perdoado se o penitente for sincero. Na lista dos santos, muitos foram grandes pecadores, transfigurados irreversivelmente por uma iluminação ou pelo arrependimento. E o exemplo dos santos serve para afirmar que somos todos livres: suscetíveis de transformações radicais. A fé na possibilidade de cada um se regenerar é um traço central de nossa cultura porque parece ser uma condição da liberdade: nada do que somos hoje é definitivo, podemos mudar.

Agora, se a redenção é sempre possível, a decisão de excluir e prender se torna, para nós, envergonhada e culpada. É quase inadmissível internar um indivíduo perigoso na intenção de proteger a sociedade dos atos que ele poderia cometer, pois, internando, negaríamos o mantra segundo o qual a conversão e a redenção do indivíduo são sempre possíveis ou, por que não, prováveis. Em outras palavras, é impossível sancionar a periculosidade de um indivíduo, pois precisamos acreditar que ele possa mudar (para melhor, é claro).

Logo antes do Natal de 2009, em São Paulo, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, Henrique de Carvalho Pereira, 21, foi golpeado brutalmente com um taco de beisebol por alguém que desconhecia. Seu agressor, em abril de 2009, tinha quebrado uma vitrina da mesma livraria, também a tacadas. Confuso, delirante e ameaçador, tinha sido preso e logo liberado, como se diz, após a assinatura de termo circunstanciado. Ninguém soube, pôde ou quis transformar aquela prisão em internação. Reconhecer que o homem era obviamente perigoso seria privá-lo da liberdade de mudar, não é? Pois é, se alguém tivesse reconhecido, sem culpa e sem vergonha, que é preciso internar um delirante de taco na mão, Henrique de Carvalho Pereira, em vez de permanecer em coma, ainda estaria circulando entre as estantes da Livraria Cultura.

Da mesma forma, o assassino de Glauco e Raoni deve ter dado mil sinais ameaçadores, que foram ouvidos por próximos, parentes, colegas e amigos. Segundo a polícia, há testemunhos que permitem afirmar que o assassinato foi premeditado, o que significa que, para alguém, a loucura do assassino não foi uma surpresa. Então, por que ninguém levou as ameaças a sério? Por que ninguém parou o assassino antes que matasse?

Pois é, se alguém tivesse dito ou até gritado que aquele jovem confuso era perigoso, dificilmente ele teria sido escutado. Ao contrário, os alertas seriam malvistos: você está querendo o quê? Prender o cara só porque está estranho, sem lhe dar uma chance de ficar melhor? Por esse caminho, continuaremos contando e chorando as vítimas.

11 março 2010

Em defesa dos habitantes das Falklands




As pessoas que vivem num território devem poder escolher a qual comunidade pertencem


NA SEMANA retrasada, durante a Cúpula da América Latina e do Caribe, o presidente Lula perguntou: "Qual é a explicação geográfica, política e econômica de a Inglaterra estar nas Malvinas? Qual a explicação política de as Nações Unidas já não terem tomado uma decisão dizendo: não é possível que a Argentina não seja dona das Malvinas e seja um país [a Grã-Bretanha] a 14 mil quilômetros de distância?".
 
Concluo que o Brasil está prestes a se lançar numa aventura militar audaciosa. Já devem existir planos para a invasão da Guiana Francesa: afinal, não se entende por que pertenceria à França, que está a 12 mil quilômetros de distância, enquanto basta olhar um mapa para constatar que é geograficamente brasileira (sem considerar que a bandeira da Guiana é verde e amarela).
 
Infelizmente, um ataque imediato comprometeria a entrega de nossas encomendas de armas francesas. Mas, se soubermos esperar, a guerra, tanto para os franceses quanto para os brasileiros, será uma ocasião maravilhosa de testar em combate os aviões Mirage (que, justamente, nunca foram testados).
 
Na espera da invasão da Guiana Francesa, a diplomacia brasileira poderá continuar se ilustrando. Bastará promover com coerência a tese defendida no caso das Malvinas: um território deve pertencer ao país que o engloba ou que lhe é mais próximo geograficamente.
 
A ilha de Pantelleria, erroneamente italiana, deve ser devolvida à Tunísia, cuja costa é bem mais perto da ilha do que a costa da Sicília.
 
Não faz sentido algum a ilha da Madeira ser portuguesa, visto que ela é situada na placa tectônica africana e mais próxima do Marrocos do que de Portugal.
 
O Marrocos deve também ser reintegrado na posse das Ilhas Canárias. Nesse caso, a Espanha está totalmente fora do páreo. Para disputar as Canárias ao Marrocos, só a Frente Polisário do Saara Ocidental.
 
Por que esses casos nos parecem ridículos, absurdos? Porque, em nosso foro íntimo, sabemos que as razões "geográficas, políticas e econômicas" de tal território pertencer a tal nação são irrisórias diante de um princípio que é infinitamente mais importante do que essas razões: as pessoas concretas que vivem num território devem poder escolher a qual comunidade de destino elas pertencem.
 
Há muitos casos em que a aplicação desse princípio é difícil e conflitiva, porque há territórios cujos habitantes não querem ou não podem constituir uma comunidade: Chipre é dividida entre gregos e turcos; a nação curda é dispersa entre Iraque, Irã e Turquia; fracassa a implementação da "solução de dois Estados" no Oriente Médio. E por aí vai.
 
Mas o caso das Malvinas é parecido com o da Madeira, o das Canárias etc. Desde o século 19, as "Malvinas" são habitadas só por pessoas que são e se consideram inglesas (sem minorias étnicas ou culturais). Como é possível desprezar a vontade explícita e coesa da população?
 
Na imprensa, sempre aparece esta perífrase: "As ilhas Malvinas, chamadas pelos britânicos de Falklands". É um enigma: tudo bem que Londres chame essas ilhas de Falklands, mas o que importa é que elas são chamadas de Falklands por todos os seus habitantes. Portanto o normal seria dizer: "As ilhas Falkland, chamadas pelos argentinos de Malvinas" (o que, acidentalmente, é bizarro, pois quem chamou essas ilhas de "Malouines" foram, no século 18, os franceses, originários do porto de Saint-Malô).
 
Espero que Argentina e Grã-Bretanha inventem jeitos de cooperar na exploração do petróleo das Falklands (se é que ele existe). Será no interesse de ambos e da própria população das ilhas.
No mais, no episódio que mencionei, o presidente Lula deve ter sido mal assessorado, pois, em regra, ele não é insensível ao destino das pessoas concretas. Em sua recente visita a Cuba, Lula não ousou defender os presos políticos cubanos; mais tarde, ele lamentou a morte de Orlando Zapata; anteontem, reviravolta: ele pediu respeito às decisões do governo cubano. Em suma, ele oscila entre uma bajulação do castrismo (saudade do que ele representou no passado) e a solidariedade com quem luta por direitos e liberdade.
 
Quem não mostrou solidariedade alguma foi o assessor do presidente, Marco Aurélio Garcia, que assim comentou, cinicamente, a morte de Zapata: "Há problemas de direitos humanos no mundo inteiro". Alguém dirá que é uma resposta "política", assim como seriam "políticas" as razões de apoiar as pretensões argentinas sobre as Falklands. Pode ser, mas, para mim, a única política que interessa é a que se preocupa com a vida concreta das pessoas.

04 março 2010

Lembranças e brigas




Sempre que evocamos os eventos passados, nossas lembranças são reescritas e corrigidas


TUDO COMEÇOU em 1990, quando George Franklin, um aposentado californiano, foi acusado de um infanticídio que ele teria cometido 21 anos antes.
 
Repentinamente, Eileen, a filha de George, declarou que, quando criança, ela tinha visto seu próprio pai matar uma menina de oito anos. Eileen explicou seu longo silêncio por uma amnésia: ela presenciara um evento tão horrível que, por duas décadas, ela reprimira radicalmente toda lembrança dos fatos. A jornada de George Franklin terminou sete anos mais tarde, quando um tribunal federal o soltou, considerando duvidoso o testemunho de Eileen.
 
O processo de Franklin inaugurou uma guerra que durou mais de uma década. De um lado, havia um grupo de psicoterapeutas que acreditavam no seguinte: eventos traumáticos podem ser totalmente apagados da memória e reconstruídos, mais tarde, com a ajuda e o incentivo de um terapeuta. Do outro (é esse lado que prevaleceu), havia estudiosos do funcionamento da memória, que, à força de pesquisas experimentais, mostravam que 1) os eventos traumáticos nunca são propriamente apagados da memória e 2) a "reconstrução" de uma lembrança perdida, ainda mais com ajuda e incentivo de um terapeuta, é quase sempre um processo criativo, ou seja, invenção.
 
Quem se interessar por essa guerra pode ler o clássico "Victims of Memory" (vítimas da memória), de Mark Pendergrast (Upper Access, 1996), ou "Remembering Our Child- hood" (lembrando-se da infância), de Karl Sabbagh (Oxford, 2009).
 
O fato é que, graças à dita disputa, o funcionamento da memória foi pesquisado ativamente. E o que me importa hoje é justamente uma propriedade de nossa memória que foi documentada durante o debate dos anos 90 e que explica por que seria inexato dizer que Eileen Franklin, por exemplo, mentiu. Aqui vai: a cada vez que evocamos ou aprimoramos nossa lembrança de um evento, nossas palavras modificam o evento aos nossos olhos, de tal forma que estamos prestes a jurar que ele aconteceu exatamente como diz nosso relato mais recente.
 
Um exemplo. Eu tinha ("tinha", no passado) uma lembrança infantil, dos meus dois anos. Como muitas lembranças da primeira infância, ela era uma simples percepção: a silhueta de uma criança correndo, destacando-se, em contraluz, diante de uma porta de vidro. Evoquei e descrevi essa lembrança pela primeira vez durante minha análise e, desde então, repetidamente, ao longo de minha vida, tentei "entendê-la", "recordá-la" melhor. Resultado, hoje, minha lembrança é a seguinte: a criança que corre sou eu (o que é curioso, pois a dita criança está bem em frente de meus olhos) - e sou eu aos quatro anos, não aos dois (a porta de vidro é, "claramente", a da sala do apê dos meus quatro anos). Além disso, posso dizer com convicção para onde estou correndo e por que estou extraordinariamente feliz (estado de ânimo que, aliás, não fazia parte da imagem inicial).
 
Não sei se algo disso corresponde ao acontecimento que deixou em minha memória a silhueta de uma criança em contraluz. Igual, é só por hábito profissional que me obstino a desconfiar de minha lembrança assim como ela se apresenta agora; se não fosse por essa desconfiança do ofício, aquela imagem enigmática de criancinha correndo em contraluz estaria mesmo completamente perdida - transformada, irremediavelmente, por todas as minhas narrações, explicações e interpretações.
Como os historiadores sabem há tempo, a cada vez que evocamos eventos passados, nossas lembranças são imediatamente reescritas e corrigidas por essa evocação.
 
Há uma consequência desse fenômeno, que todos verificamos, uma vez ou outra. Um casal briga ao redor de um acontecimento recente: "Você disse que.."; "Eu só disse aquilo porque você me provocou"; "Não, quem provocou primeiro foi você", e por aí vai. Imaginemos que ambos sejam de boa-fé e que cada um queira apresentar honestamente sua versão dos fatos; eles deveriam facilmente entender como surgiu o mal-entendido, não é?

Pois é, isso não acontece quase nunca. Ao contrário, em geral, a briga piora: o outro, que contesta minha versão e a contrapropõe a sua, é mentiroso, pois contesta não "minha versão", mas os próprios fatos, assim como eles, ao meu ver, foram impressos diretamente em minha memória. Moral da história: seria bom que o uso da memória nos inspirasse alguma prudência. Afinal, a cada vez que nos lembramos de algo, quer queira, quer não, transformamos nosso passado.