18 janeiro 1998

A geopolítica do prazer


Brasileiro assume a imagem de ardente para ocupar o lugar dos sonhos dos outros


O século 20, o século dos antibióticos, do telefone, do homem na lua etc., será também lembrado como o século do sexo. Alguns dirão que foi o século da liberação sexual. Outros que foi o século, não da repressão, mas da opressão sexual. Ambos terão razão.


Os comportamentos sexuais ficaram certamente mais livres. Na maior parte dos países ocidentais a lei hoje proíbe muito pouco: a violência contra menor de idade, o estupro, às vezes a prostituição e só. A medicina do século 19 travara uma guerra contra as condutas sexuais que não servissem à reprodução. Culminou com a monumental "Psychopathia Sexualis", de Krafft-Ebing, traduzida em todas as línguas, sabiamente guardada nas estantes mais inacessíveis das casas burguesas. Este catálogo tragicômico dos desvios de conduta sexual só serviu, neste século, para inspirar a masturbação de legiões de jovens ocidentais que nela aprenderam o que podia ser sexo.


A tentativa de patologizar as condutas sexuais veio morrer na praia da psicanálise. Mas morreu como? Foi uma troca pela qual a sexualidade se encontrou liberada para uma dupla condição: de se tornar, por um lado, objeto infinito de nossas preocupações e, por outro lado, uma obrigação. Começamos, assim, a trocar a repressão das condutas com a opressão produzida pelo imperativo de falar de sexo e sobretudo de sermos sexualmente felizes e satisfeitos. O verdadeiro doente sexual deste fim de século não é nem o impotente nem a frígida; a eles perdoa-se com comiseração. O verdadeiro doente sexual é o desinteressado.


A revolução sexual foi uma exacerbada necessidade de falar do sexo e de colocá-lo no centro de nossas vidas. Ou ainda uma idealização da sexualidade como via régia para ser feliz e, por consequência, uma inédita valorização de qualquer prática que acarrete a esperança de satisfação maior. Isto facilitou a vida dos praticantes que puderam aos poucos sair do armário e seduzir novos adeptos, mas não mudou a vida sexual da maioria. Só impôs a todos um mandato de satisfação sexual: goze!


O retrato da sexualidade brasileira oferecido pela pesquisa do Datafolha confirma e se insere neste rápido diagnóstico da sexualidade ocidental no fim de século. Por exemplo, a maioria dos brasileiros parece topar a idéia que a principal função do sexo seja o prazer e não a reprodução. Resta que, com isso, o sexo se torna facilmente uma função obrigada do prazer. O que pode ser no mínimo incômodo.


Ginga
Um dado marcante da pesquisa é a discordância entre a opinião que os entrevistados têm de si e sua visão dos "brasileiros". "O brasileiro" é bem mais liberado sexualmente e interessado por sexo do que os brasileiros entrevistados.


A situação evoca singularmente minha adolescência na Itália: o país inteiro aparecia como um maníaco "latin lover", engomando cabelos para seduzir turistas austríacas, alemãs ou suecas que invadiam nossas praias na esperança de saborear o macho italiano.


As duas situações -Itália e Brasil- permitem uma explicação comum: as misérias históricas e sociais produzem uma dificuldade de identificação nacional. Portanto, torna-se bem-vindo, como modelo de identidade, o cartão-postal segundo o qual somos todos gingões, interessadíssimos por bunda, ou mulatas prestes a ser arpoadas na praia do Arpoador.


A defasagem entre exotismo sexual nacional e sexualidade vivida poderia, assim, ser colocada na conta do subdesenvolvimento: uma comunidade nacional pouco valorizada na praça global aceita com complacência qualquer imagem positiva. Frequentemente o que lhe é proposto é uma vinheta de desbunde que se origina em uma forma domesticada de racismo. Os outros nos concebem como seres animalescamente entregues a desejos ardentes ("trepa com eles/ elas que é bom e barato, mas não faz negócio que é outra história"). Assumimos este cartão-postal que passa a ser nossa própria imagem, porque -o sexo sendo um ideal global moderno- somos seduzidos pela ilusão de ocupar assim o lugar dos sonhos dos outros.


Em suma, a idealização sexual parece se distribuir geopoliticamente, obedecendo às facilidades do turismo sexual norte-sul mais do que ao espírito nacional dos prestigiados.


Mas não é só isso. De fato, é provável que, se a mesma bateria de questões fosse repetida em outros contextos nacionais e culturais, o resultado -embora talvez menos contrastado- seria o mesmo. Ou seja, os entrevistados se diriam menos interessados por sexo do que o grupo nacional ou cultural ao qual pertencem tomado coletivamente. Eles reconheceriam, assim, ao mesmo tempo sua realidade sexual, mas também a pregnância coletiva do ideal moderno de felicidade e satisfação sexual. A prova disso, por exemplo, está na inevitável associação da alegria da festa com o gozo sexual. Sem isso, a farra não tem graça e, logicamente, a farra acompanhada por esta obrigação perde graça. Os beijos de fim de noite na Oktoberfest têm o mesmo gosto de vômito de cerveja do que na praça Castro Alves.


Dois países
Na descrição de sua vida sexual efetiva, os brasileiros se revelam simpaticamente banais.
Mágica demonstração da sinceridade dos entrevistados, a duração das relações coloca todos de acordo: meia hora basta. A grandíssima maioria se diz satisfeita e está feliz com seu parceiro para quem dá nota alta. A metade acha bom uma vez por semana. Muitos praticam sexo oral e anal, mas não sempre, ou seja, não como fins em si. Pouquíssimos parecem precisar da ajuda de bebida, drogas, revista ou vídeo eróticos etc.


Surge da pesquisa a imagem de um país surpreendentemente conservador. Com exceção da masturbação e das relações antes de casar, que estão liberadas, a opinião dos brasileiros em matéria de homossexualismo, aborto, prostituição e virgindade é careta.
A isso se acrescenta que só uma minoria parece ter acesso a suas próprias fantasias e uma persistente maioria (silenciosa) responde à questão sobre as 14 práticas sexuais com um abstrato e árido "nunca fantasiou".


No entanto, uma leitura mais cuidadosa dos números revela um divórcio entre os entrevistados, segundo níveis de instrução e de renda. Não estou me referindo ao fato previsível de que as pessoas mais instruídas se mostrem mais esclarecidas e tolerantes. Bem mais interessante, os mais desfavorecidos parecem transar um pouco mais frequentemente, mas sem fantasia (papai-e-mamãe todo dia é a imagem caricatural -o que poderia explicar, aliás, a maior fertilidade). Os ricos e instruídos, ao contrário, talvez transem menos, mas fantasiam bem mais.


Ao que parece, nossos filhos estão na escola para perder a inocência reprodutiva e parte de sua potência sexual natural, tornando-se masturbadores cheios de idéias. É a degenerescência das classes médias e altas. A ela responde o pobre e ignorante, próximo do bom selvagem, fiel à fisiologia, que prefere coito sem rendas e bordados.


Por esta diferença estereotipada, confirma-se que o imperativo que coloca o sexo no centro de nossas vidas e preocupações como fonte obrigatória de nossa satisfação é eminentemente cultural. Quanto mais somos expostos à cultura de massa (o que é o caso das classes médias e altas), tanto mais o sexo importa para nós.


Ora, por um lado, quem procura sua felicidade no sexo estará disposto a testar modalidades originais. Por outro lado -e mais importante-, a cultura é o reservatório das fantasias sexuais. A diferença apontada pela pesquisa justamente mostra que a configuração de uma fantasia sexual não é tanto o efeito de circunstâncias de vida. As fantasias são sugeridas pelo imaginário cultural. Elas são induzidas. A variedade de suas formas e sua relevância na vida sexual crescem com a cultura do sujeito.


Tirem disso as consequências que quiserem segundo seu ponto de vista moral -desde um pedido de censura até a defesa da Internet em cada sala de aula.


Santo Graal
Como era previsível, as mulheres gozam menos do que os homens (só 31% têm orgasmo garantido). Desde os anos 70, com o famoso "relatório Hite" (Shere Hite, "The Hite Report - A Nationwide Study of Female Sexuality", MacMillan, Nova York, 1976), o imperativo social de fazer gozar as mulheres é palavra de ordem.


O gozo feminino tornou-se o Santo Graal moderno. Todo mundo procura, ninguém sabe onde está e, mesmo quando acontece, a gente se pergunta se foi mesmo. As mulheres, em suma, são as mais oprimidas pela obrigação de gozar e, enfim, se sentir satisfeitas. Pois, por elas não disporem de ejaculações que confirmem o fato, o gozo das mulheres foi aparentemente escolhido como símbolo social do gozo ao qual todos aspiramos e que ainda nós não conseguimos. Uma carga pesada.

Nota: Com relação às 14 práticas sexuais, mulheres parecem fantasiar menos do que homens. Salvo no caso de fazer sexo com dois ou mais homens, em que são majoritárias. O psicanalista deve assinalar um detalhe que a pesquisa necessariamente negligencia: as mulheres não fantasiam menos, mas de uma maneira diferente que dificilmente se enquadra nos enunciados de cenários (sejam 14 ou mil).