27 novembro 2003

Em defesa de Michael Jackson

A mídia do mundo inteiro encheu as telas de nossos televisores com Michael Jackson acusado de praticar atos lascivos contra uma criança. Vimos o cantor preso, algemado e solto após pagar uma fiança de US$ 3 milhões.

O procurador, Tom Sneddon, declarou que interrogará as crianças que frequentaram a casa de Michael Jackson nos últimos anos, ou seja, pediu mais denúncias. Psiquiatras e psicólogos compareceram para nos explicar que um pedófilo vive na Terra do Nunca e faz de conta que é Peter Pan para aproximar-se de suas vítimas inocentes.

Tudo isso num clima quase festivo. A ponto de, na CNN, os próprios jornalistas se interrogarem: mas o que há com Michael Jackson (e conosco), que não conseguimos relatar os fatos sem cair na piada? Não encontraram resposta, mas tiveram a decência de perguntar.
Faz muitos anos que rimos de Michael Jackson.

No começo, era por sua transformação. Ele se parecia cada vez mais com o Peter Pan de Walt Disney, que, como se sabe, é branco. Rimos dele como rimos da mulher que passou por não sei quantas plásticas para ter as proporções da boneca Barbie. É o riso nervoso que surge quando nos lembramos de algo que nos concerne e que preferiríamos esquecer. No caso, a mulher-Barbie e Michael Jackson são nossa caricatura, pois, em alguma medida, sofremos do mesmo mal deles: queremos sempre ser outros.

Também rimos de Michael Jackson porque decidiu que seu sítio seria a Terra do Nunca (onde todos ficam eternamente crianças) e decorou sua casa como uma loja de brinquedos. Quando ele se casou com a filha de Elvis Presley, foi comentado que a idade mental dos dois juntos não fazia um adulto. Quando ele escolheu sua enfermeira como segunda mulher (e mãe de seus filhos), ironizamos que, na idade mental dele, só podia casar-se com quem cuidava de seus dodóis, ou seja, com uma mãe.

Como o próprio Michael Jackson disse, ele quer recuperar uma infância que não teve. Mas, por exemplo, o ano de meus 51 anos foi péssimo. Nem por isso tento recuperá-lo. A vontade de reviver uma infância perdida só surge numa cultura em que a felicidade das crianças é a fantasia de todos.

Como a infância é nosso protótipo forçado de felicidade, Michael Jackson quer ser criança. E, como vive num mundo racista, acha melhor ser criança branca. Engraçado? Pode ser, mas, de novo, o riso é nervoso.

Em 1993, o cantor foi acusado de molestar um menino de 12 anos. Ele preferiu entregar uma bolada de dinheiro a encarar o risco de um processo. Hoje, surge uma nova acusação análoga e outras espreitam. Duas observações.

O procurador Sneddon sabe que, na Califórnia, a exploração da prostituição é um crime grave. Houve pais e mães que, durante dez anos, conhecendo o episódio de 1993, mandaram seus rebentos para a Terra do Nunca, porque era "legal" que conhecessem o cantor ou (mais provável) na esperança de cobrar, mais tarde, alguns milhões como preço de seu silêncio. Ser cafetão ou cafetina de suas próprias crianças não dá cadeia?

Em boa clínica, é pedofílica uma fantasia (realizada ou não) na qual um adulto envolve uma criança em práticas sexuais que a criança não entende. É crucial, nessa fantasia, a diferença de saberes: a criança pratica ou sofre atos cuja significação sexual lhe escapa. É dessa desproporção que o pedófilo goza. Pedófilo exemplar é aquele padre do Estado de Massachusetts que mandava um menino satisfazê-lo oralmente, explicando-lhe que essa era a santa comunhão.

Não sou o psicoterapeuta de Michael Jackson. Mas os psiquiatras e psicólogos televisivos
também não são. E tudo indica que, nas festinhas de dormir todos juntos na Terra do Nunca, não se trata de pedofilia. Deviam acontecer coisas impróprias: toque aqui, que toco lá, mostre lá, que mostro aqui, iiiii!, vamos dar beijo de língua. Ou seja, entre os lençóis de Jackson, devia acontecer o que pode acontecer quando crianças se amontoam numa cama sem que haja adultos por perto.
Pelo que sabemos, Michael Jackson não é um pedófilo, mas uma criança que eventualmente brinca com o faz-pipi (o seu e o dos amiguinhos).

Obviamente, essa distinção não tem valor (nem deve ter) aos olhos da lei: o cantor tem 45 anos, e, portanto, suas brincadeiras, se confirmadas, constituem um abuso. Mas, quanto ao diagnóstico clínico, seria bom que os colegas televisivos se contivessem. A não ser que eles, sabendo que o povo gosta de assistir à queda de um astro, queiram liderar um linchamento.

Voltemos ao riso. Por que, de novo, desta vez, Michael Jackson suscita a hilaridade nervosa? É que ele nos lembra algo que, apesar de Freud, muitos ainda querem esquecer: existe uma sexualidade infantil. Na Terra do Nunca, brinca-se também com o faz-pipi. Que horror.

Alguém perguntará: por que defender um "babaca" como Michael Jackson? De fato, sua figura, por trágica que seja, me inspira pouca simpatia, e não sou fã de sua música. Mas, no meio de uma onda repressora e hipocritamente moralista que se expande pelos EUA afora, ao escutar a raiva fria do procurador Sneddon, lembrei-me de um breve texto, que aprendi do meu pai e que é de Martin Niemoller, um pastor que sobreviveu aos campos nazistas: "Primeiro, eles vieram pegar os comunistas, mas eu não era comunista e não falei nada. Depois, vieram pegar os socialistas e os sindicalistas, mas eu não era nenhum dos dois e não falei nada. Logo vieram pegar os judeus, mas eu não sou judeu e não falei nada. E, quando vieram me pegar, não sobrava mais ninguém que pudesse falar por mim".

20 novembro 2003

Os loucos, os delinquentes e a arrogância da razão

No dia 10, foram encontrados os corpos de Liana Friedenbach e Felipe Caffé.

Durante toda a semana, amigos e leitores me interpelaram, pedindo que refletisse sobre o assassinato ou que me pronunciasse sobre as questões que ele levanta. Sou a favor da pena de morte ou contra ela? E a redução da maioridade penal?

Digo logo: sou contra a pena de morte, mas não porque acredite que a prisão possa reformar os assassinos de Liana e Felipe. Meu tênue argumento é o seguinte: prefiro manter nossa diferença. Eles matam, nós não matamos; somos diferentes deles.

Quanto à redução da maioridade penal, posso concordar com a maioria dos brasileiros, pela razão que já expus: minha fé na possibilidade de reeducar é limitada, seja qual for a idade do assassino. A adolescência é uma invenção cultural graças à qual nossa sociedade prolonga o tempo de "formação" de seus membros até os 20 anos. Essa convenção social não demonstra que a adolescência seja uma época em que um sujeito estaria mais disposto a ser reformado.
Mas, no fundo, pouco me importa debater essas questões. Tampouco estou a fim de encontrar explicações psicológicas ou históricas e sociais pelos atos dos algozes de Liana e Felipe.

Muitos comentários que li e escutei nos últimos dias me inspiram uma vaga desconfiança, pois me parecem sobretudo manifestar que não sabemos aceitar a radical alteridade do mal.
Nos últimos 30 anos, nossa razão produziu um enorme esforço de compreensão do gesto criminoso. Bibliotecas inteiras explicam (sem justificar, mas explicam) a crueldade do assassino ou a violência do estuprador: é a culpa dos genes, das infâncias infelizes, das injustiças sociais. As explicações celebram a engenhosidade de nossa razão e alimentam seu otimismo arrogante: repararemos as injustiças, compensaremos com carinho pedagógico as infâncias infelizes, curaremos os estorvos genéticos. O mal, em suma, é uma anomalia que entendemos e que, portanto, saberemos corrigir.

Talvez esteja na hora de duvidar dessa perigosa arrogância de nossa razão. E de aceitar que há loucuras e há crueldades que escapam ao nosso entendimento e que não podemos emendar.
Primeiro, as loucuras. Em outubro, a Human Rights Watch, uma ONG pela defesa dos direitos humanos, publicou um relatório sobre a doença mental nas prisões americanas, "U.S. Prisons and Offenders with Mental Illness" (Prisões dos EUA e Delinquentes com Doença Mental, acessível on-line, http://www.hrw.org/reports/2003/usa1003/).

Constata-se o seguinte: nos EUA, há mais "doentes mentais" nas prisões do que nos (periclitantes) hospitais psiquiátricos. O editorial da Folha de 10 de novembro salientava os resultados da pesquisa.

Essa situação (que não deve ser muito diferente no Brasil e, em geral, no mundo ocidental) é um efeito da arrogância de nossa razão.

Desde o começo dos anos 60, a instituição psiquiátrica de internamento foi desmantelada, por duas razões, à primeira vista, ótimas. Os progressos da farmacologia levavam a esperar que os pacientes mais graves seriam contidos pelos remédios. Ao mesmo tempo, o clima da época era de otimismo subjetivo: nenhum transtorno resistiria ao diálogo e à inclusão generosa. O presidente Kennedy, em 1963, ao assinar a lei que instituía os centros comunitários de saúde mental, afirmava que a segregação seria substituída "pelo calor da comunidade cuidadosa e capaz". Quer fosse pela química, quer fosse pelo carinho, ninguém ficaria a ver ou a alucinar navios.

Aconteceu, ao contrário, que as ruas das grandes cidades se povoaram de figuras errantes, à deriva, miseráveis ou ameaçadoras.

Claro, nos EUA como alhures, faltaram os investimentos em centros comunitários etc. Mas resta que as duas esperanças, da farmacologia e da mão estendida da comunidade, manifestavam a mesma vontade de negar a existência de transtornos, de sofrimentos ou simplesmente de configurações da personalidade que podem ser inconciliáveis com a convivência social.

A prisão toma conta, hoje, dos sujeitos que não soubemos disciplinar nem à força de drogas nem à força de palavras e gestos de inclusão.

Vamos às crueldades. A prisão moderna nasceu do mesmo devaneio da razão que fechou o hospital psiquiátrico.

Vale a pena revisitar "Vigiar e Punir", de Michel Foucault. Dois séculos atrás, decidimos que não era o caso de infligir suplícios públicos aos criminosos, até porque o espetáculo poderia nos enternecer. Afinal, a modernidade nos convida a reconhecer em cada homem nosso semelhante: como não ter compaixão pelos açoitados, queimados e desmembrados em praça pública? Melhor guardá-los num lugar fechado e apostar que a disciplina da prisão, a longo prazo, os reeducará e os tornará aptos a voltar ao nosso convívio. Tanto mais que o projeto de reformar seus espíritos confirma nossa idéia de que, no fundo, somos todos humanos.

As boas intenções morreram na praia. A prisão deveria celebrar a onipotência da razão mostrando a prodigiosa mudança dos extraviados, que reencontrariam seu caminho. Só mostrou nossa capacidade de isolar os delinquentes. Alguém tem uma proposta melhor?

Talvez a gente invente um dia soluções diferentes para as crueldades que não podem conviver conosco. Só espero que as invenções futuras não sejam ditadas pela arrogância pedagógica de nossa razão.

Pois há formas de loucura que a razão não pode conter. E há formas de ódio que a razão não pode reeducar.

13 novembro 2003

"O Presente" do MixBrasil

Começa hoje, em São Paulo, o festival de cinema MixBrasil. Na sua programação, será apresentado "The Gift", "O Presente", documentário de Louise Hogarth.

É uma obra enxuta e corajosa.

Eis o fato: na comunidade gay, sobretudo entre os jovens, a prática do sexo seguro está declinando, e aumenta o número de novas contaminações pelo vírus da Aids.
Podemos culpar as campanhas públicas de prevenção: será que não foram (não são) claras? Será que, não querendo assustar, foram omissas? Ou será que pediram demais e produziram cansaço? Depois de décadas em que até o sexo oral era "proibido" sem preservativo, talvez as pessoas achem na contaminação um pretexto para, enfim, transar livremente.

Podemos culpar o sucesso dos remédios antivirais que produziram a ilusão de que a Aids seria uma doença crônica controlada, sem perigos maiores. Hogarth mostra propagandas na imprensa americana em que os remédios anti-Aids são promovidos à força de imagens de sujeitos soropositivos francamente desejáveis. A realidade é outra: o tratamento está longe de ser definitivo, é penoso e tem riscos e sequelas.

Podemos culpar a própria comunidade. Como conta no documentário o jovem Doug, é mais fácil se sentir "in" sendo um garoto muito "cool" que transa sem perguntar e sem exigir camisinha.
Mas o impacto do filme vem de outra constatação: a contaminação pelo vírus da Aids se tornou para alguns, se não para muitos, um atrativo propriamente erótico. O "barebacking" (cavalgar sem sela, termo que designa a transa anal sem camisinha) não é efeito de um descuido acidental num transporte de paixão. Tampouco se trata de um erotismo de roleta-russa, em que o risco apimentaria os encontros. Ao contrário, a contaminação é procurada como se fosse a fonte de um gozo específico.

Desde o fim dos 90, a (crescente) comunidade de "barebackers" criou um código próprio. "O presente", "the gift", é a contaminação. Há os "bugchasers" (os caçadores de bicho, o bicho sendo o vírus da Aids) e os "giftgivers" (os doadores, que oferecem o presente). Há as "conversion parties": as festas de conversão em que um soronegativo convida uma série de soropositivos a penetrá-lo e contaminá-lo. "Charged" ou "loaded cum" é o esperma que contém "o presente".

No começo dos anos 80, na comunidade gay, circulou brevemente a proposta de tatuar os soropositivos, de forma que seus parceiros fossem imediatamente informados e tomassem as precauções necessárias. A idéia foi recusada como forma abjeta de discriminação. A ironia é que, hoje, a tatuagem volta, mas não como marca de exclusão. Ao contrário, o símbolo convencional que designa o perigo biológico de contaminação é tatuado por sujeitos soropositivos perto do púbis como um incentivo sexual. Pela mesma razão, alguns escrevem no bíceps "HIV-poz".

Outros escrevem "HIV-neg" e saem à caça do vírus para poder, enfim, barrar o "neg".

Quando começou a epidemia de Aids, minha preocupação não era só com a contaminação. Atormentava-me a perspectiva de que, para uma ou várias gerações de jovens, gays ou não, a vida sexual viesse a ser um pesadelo. Receava que a necessidade de preservar a vida acabasse com o sexo. Ou seja, que o risco epidêmico forçasse o desejo a obedecer estritamente à finalidade da reprodução: transem só para fazer filhos e casem virgens.

Mas isso não aconteceu. A preservação da vida, por mais que seja o valor dominante da sociedade moderna, não arregimentou o sexo. Durante duas décadas, inventaram-se jeitos, carinhos, situações e palavras que, mesmo evitando o risco, não desvirtuassem completamente o desejo.

Aparentemente isso não foi suficiente. Sobra hoje uma revolta que não é só contra os limites impostos pela epidemia de Aids.

Os "barebackers" proclamam que existe um presente mais importante que o famoso presente da vida. Mas eles não são apenas apóstolos da morte. Para entender sua escolha, é preciso considerar que, em nossa cultura, o ideal do bem-estar, da prevenção e de uma longa existência saudável se tornou princípio ético preponderante.

É nesse quadro que os "barebackers" descobrem e procuram um gozo desesperado no próprio ato de comprometer a vida.

Se não fosse pela vontade de festejar a abertura do festival MixBrasil e de comentar "O Presente", a coluna de hoje seria sobre "Matrix Revolutions". O curioso é que, no fundo, os "barebackers" são filhos da mesma revolta que anima Neo, Trinity & co. Eles querem transar fora da matriz: "de verdade".

PS:
1) O filme de Hogarth e esta coluna não tratam de uma realidade exótica da Costa Oeste dos EUA ou de Nova York. Escrevo na segunda, dia 10 de novembro. Às 22h em ponto, entro na primeira sala "Gays e Afins São Paulo", no bate-papo do UOL. Um internauta propõe o seguinte apelido: "Sem Camisinha/Ativo". Você acha o quê? É uma informação marginal ou o essencial da fantasia sexual proposta?

2) "O Presente" (62 min.) será apresentado sexta, dia 21, no Centro de Testagem e Aconselhamento de Santo Amaro, SP; sábado, 22, e domingo, 23, no Centro Cultural Banco do Brasil. O festival, como é de costume, viaja: em Brasília, o filme passará nos dias 1º/12 e 4/12 e, no Rio, no dia 11/12.

06 novembro 2003

Quem matou Sylvia Plath?

Está em cartaz nos EUA "Sylvia", o filme de Christine Jeffs que reconstitui os anos produtivos e finais da vida de Sylvia Plath, a poeta americana que se tornou famosa depois de seu suicídio, em 1963. A data de estréia no Brasil ainda não é conhecida.

Resumindo: Sylvia, jovem bostoniana de classe média, órfã de pai desde os oito anos, estudante brilhante, ganhou uma bolsa para uma pós-graduação em literatura na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Lá, em 1956, encontrou Ted Hughes, jovem poeta inglês. Casaram-se e viveram seis anos oscilando entre os Estados Unidos e a Inglaterra, atrás de empregos e inspirações. Uma filha nasceu em 1960, e um filho, em 1962.

Nesse período, Ted Hughes publicou, ganhou prêmios e consolidou sua fama de poeta. Para Sylvia, escrever era mais difícil, e a coisa piorou com o nascimento dos filhos. Quando, em 1960, ela publicou seu primeiro livro, "The Colossus", só houve uma resenha.

No meio disso, Ted Hughes, embora apaixonado por sua mulher, arrumou uma amante. Talvez Sylvia fosse "intensa" demais. Talvez, simplesmente, ele gostasse de pular a cerca: era o que Sylvia (frágil, possessiva e ciumenta) pensava.

Em 1962, o casal separou-se. Sylvia passou o inverno europeu sozinha com os filhos, em Londres, escrevendo como nunca. Em fevereiro de 1963, não aguentou mais e abriu a torneira do gás.
Quem matou Sylvia Plath? O filme evita atribuir o malogro de Sylvia a algum agente maléfico, seja o marido infiel, seja a fria mãe da poeta. Também não se aventura no terreno minado da psicopatologia. Sylvia carregava consigo um passado de depressões e de tentativas de suicídio, mas é tarde para entrevistar Ruth Beutscher, a psiquiatra que repetidamente tentou ajudá-la. E, mesmo que fosse possível, nada prova que ela teria uma resposta.

Ficamos com a visão tocante de uma infelicidade angustiada e intolerável que está ao alcance de todos: um desespero que, num canto mais ou menos recôndito da mente, cada um poderia despertar e alimentar.

Quando Sylvia morreu, a colega Anne Sexton, que era mestre em cinismo amargo, comentou: "Escolha boa para a carreira". Claro, não acho que o suicídio de Sylvia Plath tenha sido maquiavélico. Mas o ato foi mesmo um sucesso profissional e amoroso.

Como efeito do suicídio de Sylvia, o marido foi condenado a tomar conta das crianças que durante anos tinham absorvido muitas das energias da poeta enquanto Ted escrevia e palestrava. O suicídio também transformou Ted Hughes (que, dos dois, era, até então, o poeta de sucesso) em revisor e editor dos manuscritos inéditos de sua mulher, a começar por "Ariel", que Sylvia deixou em cima da mesa de trabalho. Até 1963, talvez alguns soubessem que Ted Hughes, poeta inglês, era casado com uma americana "bonitinha" que também escrevia poesia. No fim dos anos 60, qualquer um que gostasse de literatura sabia que Sylvia Plath era uma grande poeta e, se alguém evocasse o nome de Ted Hughes, seria por ele ser "o marido de Sylvia Plath".

Sem discutir a qualidade da produção de Sylvia, o fato é que o suicídio lhe conferiu uma extraordinária credibilidade. É assim: se ela se matou, supõe-se que, em seus versos, haja algo forte, perigoso de tão verdadeiro. Ou seja, nós, leitores, validamos espontaneamente o argumento costumeiro de qualquer adolescente que ameace se suicidar: aí, na frente de meu cadáver, vocês vão ter que me levar a sério.

Sem suicídio, talvez Sylvia Plath fosse mais um nome nas antologias de poetas americanas da segunda metade do século 20.

Confesso que nunca fui um grande fã de sua poesia. Se tivesse que escolher uma poeta americana da mesma época, preferiria certamente Anne Sexton.

Só que Anne Sexton, delirante, detestando os efeitos da thorazine em seu corpo, também se suicidou, embora mais tarde, em 1974.

Como fica? Poeta boa tem que se matar?

Nada disso. Há uma longa lista de excelentes poetas americanas do século 20 que não se mataram: Adrienne Rich, Muriel Rukeyser, May Swenson, Denise Levertov, Elizabeth Bishop (minha preferida é Adrienne Rich, de quem recomendo "An Atlas of the Difficult Life"). Ora, com a exceção de Bishop (conhecida no Brasil porque viveu muitos anos em Petrópolis e traduziu poetas nacionais para o inglês), só leitores patenteados de poesia conhecem os nomes dessa lista. Enquanto muitos, se não todos, ouviram falar de Sylvia Plath e Anne Sexton.

Parece que a radicalidade da escolha suicida funcionou, para nós, como uma garantia de alguma qualidade de seus textos. Apostamos que sua poesia lide com uma questão crucial também (se não sobretudo) porque elas se mataram.

Ora, a questão mais importante talvez não emane de suas obras, mas de nossa reação a suas mortes. É a seguinte: em qual sensação constante de inautenticidade e de falsidade vivemos para que o suicídio nos apareça facilmente como o sinal de que alguém levou a vida a sério?

Estranho paradoxo: o suicídio funciona como prova da "autenticidade" de quem se matou. Mas que existência é a nossa, se, para nós, a morte pode ratificar a qualidade da experiência de uma vida?