07 junho 2007

"Zodíaco"



O anseio paranóico por um sentido enriquece nossa vida. Mas sempre sobram fios soltos

UM AMIGO querido (que morreu 20 anos atrás e foi meu parente durante um tempo) era engenheiro e mestre de obras. Ele viveu em vários lugares dos EUA e, quando eu o conheci, morava em Houston, Texas. Chamava-se Robert (Bob) Bond (nada a ver com Bob Bond, o artista gráfico).

Aprendi com ele um monte de coisas. Em particular, ele me ensinou a pescar. Mas é por uma outra razão que me lembrei dele assistindo a "Zodíaco", o filme de David Fincher (o diretor de "Seven") que estreou na sexta passada.

Nas horas vagas, Bob Bond era artista; ele produzia (e oferecia) suas obras só para amigos e próximos, um quadro para cada um. Todos seus quadros se chamavam, numa mistura de inglês e espanhol, "Fonction Passado" e se diferenciavam pela numeração. Eu, por exemplo, ganhei "Fonction Passado 11".

Bob Bond procedia assim: observava o destinatário do quadro durante um tempo e acumulava objetos descartados que (ao seu ver) tinham um relação com a história do sujeito. Logo, fixava esses objetos a um painel de madeira, pintava e, toque final, conectava os objetos entre si com um fio. O resultado final se parecia com a teia em que uma aranha teria preso, de maneira múltipla e complexa, os restos de uma vida.

Quando me entregou meu quadro, Bob explicou que o fio indicava que os elementos de nossas vidas são mais interligados do que parece.

Como havia, no quadro, alguns fios que permaneciam pendurados, desconectados, perguntei o porquê, e Bob me disse, com seu bom senso habitual, que, numa vida, sempre sobram "loose strings", fios soltos.

Pois bem, "Zodíaco" conta a história real de um policial, de um repórter e de um cartunista que, em San Francisco, nos anos 70, tentaram identificar (e prender, claro) um assassino em série, que se autodenominava Zodíaco.

O filme é a tocante história de três vidas arrebatadas pela procura da verdade ou, talvez fosse melhor dizer, pela paixão do sentido. Uma investigação policial (ainda mais no caso do Zodíaco, que deixava propositalmente pistas e mensagens cifradas) é um pouco como um trabalho de Bob Bond: uma vez achadas as peças, é preciso interligá-las. Quase sempre, aliás, quem investiga crava na parede documentos e lembretes, peças do quebra-cabeça na espera do momento em que se tornará possível enxergar o fio que as junta, resolvendo o enigma.

Nos primeiros anos de minha psicanálise, era isso que eu fazia. Meu quarto-e-sala parecia uma central de investigações: bilhetes com relatos de sonhos, pesadelos e devaneios, fragmentos de lembranças, intuições ou interpretações enchiam as paredes como indícios policiais dos quais esperava que revelassem, um dia, seus laços arcanos e, enfim, o sentido da minha vida.
Jacques Lacan, o psicanalista francês, dizia que o tempo inicial de uma psicanálise é uma espécie de paranóia, uma "paranóia dirigida".

O pensamento paranóico é animado pela convicção de que tudo é conectado, de que deve haver, em suma, uma solução do enigma, que nos diria por que somos quem somos e por que o mundo é como ele é.

Aparte: desse ponto de vista, os protagonistas de "Zodíaco" são estranhamente contidos; procurando um assassino chamado Zodíaco, nunca se aventuram na tentativa de encontrar a revelação do culpado na disposição dos astros.

De uma certa forma, o entusiasmo do pensamento é sempre um pouco paranóico. Mas Lacan dizia também que uma psicanálise dá certo quando a paranóia se esgota, e conseguimos enfim encarar a constatação, um pouco decepcionante e assustadora, de que nada se explica até o fim: há vasos de flores que caem na nossa cabeça sem ter sido empurrados por ninguém, nem por nós nem pelos outros nem pela providência divina nem por malefício diabólico.

Nisso, "Zodíaco", o filme, é perfeito, pois nos conta uma procura parecida com a nossa, até no detalhe (crucial) da frustração final. Não há conclusão definitiva, só indícios. Resta que a procura do sentido (que não foi encontrado) deu sentido, durante um tempo, à vida dos investigadores. Um pouco de paranóia enriquece nossa vida.

Agora, como diria Bob Bond, por mais que a gente teça nossa teia de aranha, sempre há fios soltos.

Saio de férias até julho. É um jeito de falar: na verdade, viajo para a terra de minha infância para tentar tecer o fio que talvez ligue alguns cacos da minha história.