28 setembro 2000

Corre, Claudinei, Corre

Cathy Freeman vai tentar os 200 m rasos, que não são sua especialidade. Competirá sem pressão, tipo: se conseguir, melhor. A imprensa local crê num duelo entre Cathy e Marion Jones, a favorita. O marido da americana (CJ Hunter, campeão de arremesso de peso) testou positivo para anabolizantes. Isto não tem nada a ver com ela, mas é suficiente para pintá-la em cores sombrias, enquanto Cathy é toda sorrisos. O "Sydney Morning Herald" colocou-as em primeira página, com um subtítulo equivocado: "Same race, different circumstances". Eles queriam dizer "Mesma corrida, circunstâncias diferentes". Mas "race" significa também raça. Como Marion Jones é negra americana, lia-se: Cathy e Marion, mesma raça. O clima de reconciliação que preside a festa olímpica tem seus atos falhos.

O paralelo, na verdade, é furado. Na Austrália não houve importação de escravos africanos. O país, além de estar longe das rotas atlânticas, nasceu tarde demais para isso (o tráfico estava em seus últimos suspiros). Os aborígenes eram os habitantes imemoriais desta terra. Seu destino não é paralelo com o dos negros, mas com o dos índios sul e norte-americanos. Os jovens que carregam as medalhas e as bandeiras nas premiações estão vestidos como australianos do cerrado (o "bush"): akubra (é o chapéu de abas australiano), impermeável de tecido encerado e botas.

Os onipresentes voluntários estão também de akubra, mas com uma camisa cujos motivos evocam a arte aborígene. Os indícios apontam para o lugar onde a reconciliação pode acontecer: a terra do "outback", o retroterra quase deserto e selvagem. É o lugar onde é possível, sem idealizações baratas, reconhecer que os aborígenes sabem viver melhor do que os brancos. É o lugar onde a cultura aborígene impõe respeito. É também o lugar de um patrimônio compartilhado, de onde talvez australianos e aborígenes consigam hoje enxergar uma nação comum.

Ocorre que a Amazônia tem exatamente essa função para o Brasil. No entanto a reconciliação não está na ordem do dia. Basta conferir o lugar que coube aos índios nas festas dos 500 anos. Nada de estranho nisso tudo: o país tem uma tradição de exclusão antiga e estabelecida. Ele funciona a exclusão, assim como um motor, a gasolina. Falando nisso, Claudinei Quirino está na semifinal dos 200 m. Sua glória e dificuldade é que ele não é empurrado, como Cathy, pela vontade de inclusão de uma nação inteira.

Ao contrário, carrega nas costas o peso de uma persistente vontade de excluir. Por isso nesta madrugada terei ido lá gritar: "Corre, Claudinei, corre".

A seleção não jogou mal; ela é ruim



Então, se entendi bem, os jogadores da seleção de futebol foram mal escolhidos. Ou, se foram escolhidos direito, renderam muito menos do que era normal esperar. Também foram e seguem sendo paparicados, com hotéis de luxo e salários muito altos. Ou, então, o astral negativo do técnico influenciou todo mundo.

A saída precoce foi uma vergonha, um vexame, uma humilhação. Essas palavras apareceram ontem na imprensa. São expressões estranhas em Sydney, onde a imprensa e a torcida reconhecem e elogiam seus atletas derrotados.

Não somos menos generosos do que os australianos. É que parecemos não ter a menor dúvida de que, no futebol, o Brasil é o melhor. Portanto, perdendo, os jogadores nos humilham, desmentem nossa essência. Além disso, como só podem ser os melhores de todos, se perdem, é por safadeza.

Luxemburgo declarou: "Tivemos todas as chances do mundo para chegar à semifinal, mas jogamos mal". É uma frase engraçada, pois cada time tinha (e alguns ainda têm) todas as chances de chegar até a medalha de ouro.

Ele quis dizer que o Brasil era time forte para chegar à semifinal sem problemas, mas jogou mal.

Jogar mal é sempre apresentado como um acidente. Somos os melhores, mas às vezes (muitas vezes, ultimamente) jogamos mal.

Vi tenistas, depois de errar um golpe, olhar para a raquete procurando algum desajuste das cordas que explicasse o erro. Pois bem, a seleção joga mal, e todos -jogadores, técnicos, torcedores- olhamos para as chuteiras. Será que quebrou uma trava?

Pergunto: quantas vezes a seleção vai ter que jogar mal para que a gente comece a reconhecer que ela é ruim mesmo? E, mais difícil ainda, para que aceitemos a idéia de que a ruindade talvez não seja o resultado de escolhas erradas, mas o reflexo de um futebol que não é mais o rei dos gramados?

Decidimos que o futebol é um gene brasileiro. Até que essa crença mude, vai ser difícil melhorar.

Às vezes, famílias brasileiras com filhos adolescentes emigram para os EUA. Os filhos, que jogaram dez várzeas na vida, descem do avião com a idéia de que vão arrebentar na bola. Chegam em sua nova escola anunciando que são brasileiros como se fosse a mesma coisa do que campeão mundial júnior. Se não forem selecionados na hora para o time, o técnico é burro e americano não entende nada de futebol. Em geral, esses jovens passam para outro esporte, o que não constitui uma perda para o futebol nacional ou americano. Moral da história: para melhorar, é bom reconhecer que a gente é ruim.

Que tal comprar alguns jogadores africanos, para ver se anima o futebol nacional?

27 setembro 2000

Corre, Cathy, corre

Às oito da noite de segunda a Austrália parou. O estádio Olímpico estava lotado. As áreas de alimentação, onde sempre circulam pessoas à procura de uma cerveja ou de um peixe frito, ficaram desertas. Fora do estádio, no país inteiro, 10 milhões de australianos pararam na frente da TV para ver Cathy Freeman correr.

Em Sydney nenhuma prova era tão esperada quanto os 400 m rasos feminino. De nenhum australiano queria-se tanto que ganhasse, a ponto de que Cathy acendesse a chama olímpica, embora sua prata em Atlanta não justificasse a honra. A decisão foi contestada por alguns, certo, mas por medo que a pressão comprometesse a performance de Cathy.

Única em roupa de látex com capuz, Cathy partiu inconfundível, como uma extraterrestre ou a encarnação do espírito da terra, e correu com o estádio gritando de pé. Eu estava ao lado de crianças que não pararam um instante, como se os berros fornecessem oxigênio para ela: "Run, Cathy, run" ("Corre, Cathy, corre").

Ela correu e ganhou. Deu outra volta carregando, na mesma bandeira, cores australianas e aborígines. Impossível resistir à alegria do público que celebrava a vitória do símbolo da reconciliação.

O sonho de reconciliar a nação com seus indígenas, após 200 anos de horrores e abusos, estava presente desde a cerimônia de abertura, quando a menina loira pegou a mão do velho aborígine. Por outro lado, recentemente, o primeiro-ministro se negou a fazer um pedido de desculpas aos aborígenes pelos abusos. Problemática é a questão de eventuais compensações: por que a Austrália de hoje pagaria por pecados que não são dela? Debate-se sobre números: quantos foram massacrados? Discute-se sobre os riscos de dividir a nação e quebrar a unidade do território nacional, caso seja reconhecido um direito aborígene à autodeterminação.

A avó de Freeman foi uma criança das gerações roubadas, que foram arrancadas de seus pais para serem criadas como brancas e -pensavam os pretensamente ilustrados- salvas da barbárie. Freeman criticou repetidamente o governo federal.

Com esse passado e com seu nome que fala de liberdade, ela correu reto no meio do emaranhado mantendo as duas bandeiras juntas e, sobretudo, sentem os australianos, provando que a integração é possível -pois uma aborígene é a querida da nação.

Penso nos índios brasileiros e americanos, nas armadilhas do pós-colonialismo mais bem intencionado: é difícil atravessar esse emaranhado. A corrida de Cathy foi a felicidade de um momento de ilusão. Mas foi também a ocasião festiva de expressar uma vontade coletiva de justiça.

26 setembro 2000

O país do vôlei

No vôlei está dando quase tudo certo. Shelda e Adriana ganharam a prata. A final com as australianas foi parelha: dois sets, mas 12/11 e 12/10. Sandra e Adriana Samuel levaram o bronze. O vôlei de quadra masculino ganhou de Cuba por 3 a 0.

A dupla masculina de vôlei de praia joga a final. A equipe feminina está qualificada no primeiro lugar no grupo, como a masculina. O Brasil pode ter medalhas em cada especialidade do vôlei.
Estaríamos passando de país do futebol para do vôlei? De fato, seria agradável ser o país de um esporte no qual a gente ganha. Entre Atlanta e Barcelona, já há tradição suficiente para a mudança.

O estereótipo de paraíso tropical de sol e praias comporia a vinheta do país do vôlei na areia. Pelos cartões postais já parece que passamos na praia o tempo todo, seria só praticar um pouquinho: vai sair natural, como as peladas.

Além disso, o vôlei é um bom esporte para o Brasil, fácil de ser praticado nas escolas. Prosperou com o carinho dos torcedores e a dedicação de duas gerações de jogadores e jogadoras. E também graças à tranquilidade de poder jogar sem que, a cada derrota eventual, o Corcovado ameaçasse ruir. Por isso mesmo espero que a passagem do país do futebol à terra do vôlei não aconteça tão cedo.

Domingo de manhã, na praia de Coogee, um grupo de australianos organizava uma pelada. Estava sentado na mureta, vestindo uma camiseta da torcida brasileira. Vêm perguntar: "Brazilian?" e querem que eu jogue. Acham que recuso só por me sentir superior. Mal podem imaginar que toquei em minha primeira bola de futebol aos 16 anos, num colégio do arcebispado de Milão.

Não adianta: apesar da eliminação da seleção, brasileiro para eles segue significando bom de bola. Ainda ontem, um simpático motorista de táxi (e mal informado) não acreditava de jeito nenhum que a seleção brasileira estava voltando para casa.

Escrevi ontem que, se pararmos de pensar que somos por natureza o país do futebol, talvez seja possível treinar e jogar melhor.

Agora, todos conhecem a história do rapaz um pouco desmiolado que um belo dia parou de acreditar que ele era um grão de milho. Foi liberado e ia para casa. De repente volta ao hospital: "Eu sei que não sou um grão de milho, mas vocês informaram às galinhas?". Acontece também com o futebol: os outros acreditam em nosso delírio de grandeza.

Será que daqui a pouco, em qualquer praia do mundo, se formos identificados como brasileiros e convidados para um jogo de vôlei, vamos ter que lidar com a expectativa que um mestre enfim entrou em campo -tipo: vamos ver do que ele é capaz?

23 setembro 2000

A "Tosca" e os toscos

Os Jogos são a ocasião de um Festival Olímpico das Artes. Há de tudo: cerimônia aborígene, balé, ópera, ciclo de filmes, exposições de arte, teatro.
O programa é uma declaração que diria: "Sydney está orgulhosa de ser a sede da Olimpíada, mas a cidade não é só isso. A paixão pelo esporte é apenas uma faceta. Gostamos de outras coisas também, com toda a complexidade pós-moderna: mesmo respeito para a alta cultura, o folclore, o pop etc.".

Como o edifício da Ópera é (merecidamente) o símbolo da cidade, escolhemos assistir a uma representação da "Tosca" (que foi ótima). No máximo 30% do público era olímpico: delegações ou turistas em Sydney para os Jogos. Os demais eram habitués: pessoas de classe média (regra na Austrália) apreciando a arte lírica ou se convencendo de seu interesse pela ópera. À primeira vista, parecia o tipo de público que se encontra na Sala São Paulo ou no Cultura Artística para um bom concerto.

Ora, antes que o espetáculo começasse e nos dois intervalos entre os atos, as pessoas se reuniam no foyer na frente de duas televisões -cuja presença neste lugar era inesperada. Assistiam a fragmentos das provas de natação daquela noite, torcendo e festejando (ou lamentando) os resultados. Ao tocar da música que assinalava a hora de regressar aos assentos, todos voltavam felizes para o triste destino de Mário Cavaradossi e Tosca.

Pergunta: se houvesse uma Olimpíada em São Paulo, você acha que o público do Cultura Artística pediria TVs no foyer para torcer nos intervalos? Aposto que não. Claro, a maioria provavelmente seria bem feliz com essa possibilidade, mas quase todos achariam inaceitável misturar seu gosto pela alta cultura com um interesse para o esporte. O mesmo aconteceria na Europa e, em menor medida, nos EUA. A razão dessa autocensura não seria estética, mas social e política.

A cultura é um excelente instrumento de separação entre as classes. Para que funcione assim, naturalmente é necessário que o pessoal de baixo seja mantido afastado da alta cultura (o que é simples: basta complicar o acesso à educação e manter inacessíveis os preços dos eventos). Mas para tal fim também é útil manter a ficção de um gosto de elite que desprezaria, por exemplo, a vil paixão pelo esporte. A "Tosca" é nossa e quem gosta de esporte é tosco -não vamos confundir.

Um público de amadores de ópera que, nos intervalos, gosta e não tem vergonha de torcer na frente da TV é índice de uma maturidade democrática fora de série. A Austrália aparentemente é uma sociedade onde abrir e manter a diferença social não é uma preocupação dominante.

22 setembro 2000

O que faz correr Marie-José Perec?

Tudo indica que Marie-José Perec, a campeã olímpica francesa, não estará nos 400 m rasos. Era uma das favoritas da prova, que catalisa a atenção dos australianos por ser a especialidade de Cathy Freeman, a aborígine que acendeu a flama olímpica na cerimônia de abertura.

A versão oficial diz que Marie-José fugiu da Austrália porque foi ameaçada por um desconhecido em seu hotel. Os jornais insinuam que ela escapou por saber que não estava em forma. Faz sentido: Marie-José foi campeã em Barcelona e em Atlanta. Logo ela sumiu, deixando que Freeman corresse sozinha e ganhasse os Mundiais de 97 e 99. Reapareceu em julho e se qualificou para a Olimpíada com um tempo medíocre. Desde então, inscreveu-se em várias competições, mas nunca compareceu. Em Sydney, ficou escondida fora da Vila Olímpica.

Não sei o que há com Marie-José. No mínimo, sofre com a exigência louca de se mostrar à altura de um passado que a define, mas que ela não consegue repetir. É possível que não seja só isso.

Marie-José nasceu na cidade de Basse Terre, em Guadalupe. Por mais que essa Antilha seja território francês, é difícil acreditar que os antepassados de Marie-José (que é mulata) sejam gauleses.

Agora, cada evento olímpico começa com a apresentação dos atletas que competem. O nome é seguido de "representando..." e lá vai o nome da nação.

Será que cada atleta representa mesmo a nação pela qual está concorrendo? E se ele não se sentir assim? Que tipo de experiência é essa de orientar sua vida toda, durante anos, para uma competição onde se tratará de dar o melhor de si -representando uma coletividade da qual o atleta, no fundo, acha que não faz parte?

Há circunstâncias que ajudam a enlouquecer, como a falta de uma possível resposta clara quando se é confrontado com questões cruciais sobre sua identidade.

Alguns militantes da causa aborígene não queriam que Cathy Freeman corresse: por que dar prestígio para a Austrália opressora? Outros queriam que ela corresse protestando. Os australianos querem que ela encarne o novo multiculturalismo. Pressionada para declarar se ela corria para seu povo ou para a Austrália, Cathy respondeu habilmente: "Corro para mim mesma. Se ganhar, ficarei muito feliz. Estou certa de que muitas pessoas sentirão essa mesma felicidade". Ou seja, festeje quem puder.

Ao que parece, Cathy Freeman tem uma saúde (psíquica) de ferro. Com isso ela distancia seus entrevistadores. Marie-José, desta vez, talvez não tenha conseguido correr mais rápido do que a pergunta inevitável numa Olimpíada: você representa quem?

21 setembro 2000

Se é proibido perder, jogar fica difícil

Acabou há pouco o jogo contra o Japão. A seleção permanece na Olimpíada. Mas a campanha continua sofrida.
Anteontem, a seleção feminina de futebol ganhou da Austrália, mas no sufoco: 2 a 1 de virada e com um gol australiano anulado (por milagre).

Mesmo assim, na saída do estádio, um torcedor brasileiro enrolado numa enorme bandeira interrompe a conversa com um grupo de australianos, exclamando: "Vocês ainda têm tudo o que aprender sobre futebol!". Subentendido: aprender com a gente.

Antes, na arquibancada, dois australianos param um brasileiro de camiseta da seleção. Perguntam: "Brazil?". O torcedor confirma e logo convida seus interlocutores a contar as quatro estrelinhas azuis, "quatro vezes campeão do mundo", ele explica. Em suma, esse esporte é nosso.

Por isso mesmo, estou achando que, para nossas seleções de futebol, masculina e feminina, vai ser cada vez mais difícil jogar bem e ganhar.

Isso independentemente dos técnicos e da qualidade dos jogadores. Por quê?
Existe um nível de expectativa que é nocivo para os atletas. E é bem possível que, em matéria de futebol, a gente já o tenha atingido. Um exemplo. Todos os atletas australianos estão sob pressão: os olhos do mundo estão virados para cá, e o país pede medalhas. Mas, acima de tudo, sonhava-se com a abertura da Olimpíada.

A primeira prova era o triatlo feminino -um evento-espetáculo bem no meio do cartão postal de Sydney.

Esperava-se uma apoteose logo no início. Havia de fato uma chance de que as australianas ganhassem as três medalhas. Para isso se preparavam. Isso estava sendo antecipado. Ora, Loretta Harrop, favorita, chegou em quinto lugar.

Michelle Jones perdeu o ouro logo no sprint e ficou com a única medalha australiana.
Eis uma das dificuldades cruciais em psicologia do esporte. Por um lado, o atleta precisa de um alto nível de motivação (aqui as expectativas do público e, no caso, do país ajudam). Por outro, como já Freud tinha reparado, o excesso de investimento pode produzir uma inibição irresistível. Nada de muito patológico nisso. Reagimos todos assim: quando queremos alguma coisa em demasia, na nossa cabeça, ela se confunde com todas as coisas que quisemos muito e que nos foram proibidas.

Em consequência, fracassamos.

Ora, em matéria de futebol, parece que ganhar se tornou uma condição "sine qua non" da identidade nacional brasileira. Perder é crime de alta traição.
Com isso, vai ficar difícil jogar -não só nesta Olimpíada.

19 setembro 2000

Torcida brasileira

No jogo da seleção feminina de vôlei contra a Austrália, a torcida era firme. Cantou até o hino nacional em ritmo acelerado. Os australianos repetiam seu "Aussie, aussie, aussie/oi, oi, oi". "Aussie" é a abreviação de australiano e se pronuncia "ozie".
As brasileiras lideravam por 2 sets a 0 e 21 a 12 no terceiro, quando a torcida inventou: "Easy, easy, easy/oi, oi, oi!". "Easy" soa perto de "ozie" e significa "fácil". Escutando essa gozação, que dizia "Fácil, fácil, fácil /oi, oi ,oi..", a torcida australiana emudeceu. Enfim, a seleção jogou muito bem, ganhou (fácil) e promete.

Tomado pelo entusiasmo dos 500 torcedores, gritei, pulei e, no fim do jogo, fiquei no saguão para uma festa improvisada. Voltando para o hotel, resmungava desconfianças das emoções torcedoras.

A Olimpíada de Sydney pediu que a ONU decretasse a trégua olímpica e exigisse paz entre as nações durante os Jogos. Seria a ocasião de mostrar que desacordos e conflitos podem ser resolvidos no fair play do esporte.

Em vez de se armar para guerra, contentem-se com torcer. Argentina e Reino Unido poderiam ter decidido o futuro das Malvinas em três jogos de futebol. Quem ganha, leva. Pena que a coisa não funcionou em Berlim-36. Hitler poderia ter visto em Jesse Owens a superioridade dos negros e, assim, teria desistido da guerra e de sua política racial.

Em suma, torcer seria bom: uma maneira de evitar guerras.

É possível pensar o contrário. Ou seja, que a torcida não é uma catarse dos nacionalismos belicosos. Ao contrário, seria seu caldo de cultura. Quem pensa assim, nota também que a torcida nacional, fomentando a rivalidade entre nações, garante de fato a paz social. Quem se desespera ou exulta com a nação, esquece que ela é dividida, apaga as iniquidades sociais das quais ele é vítima.

Os excluídos podem torcer para um país que os ignora. A idéia seria: torcer evita a consciência dos conflitos sociais pela invenção de antagonismos nacionais.

Numa linha parecida, há as pesquisas de um tal Robert Cialdini, da Universidade de Arizona, para dizer que o torcedor é um fraco, que tenta obter respeito não por suas próprias façanhas, mas por conexão com sua seleção.

Mas as teorias nem sempre se aplicam. Esta noite a torcida brasileira não treinava sentimentos belicosos -a festa final incluiu na dança e no canto os torcedores australianos. Também não acho que o orgulho ocultasse as feridas sociais da nação no espírito da torcida. Ainda menos o torcedor brasileiro, que torce, em geral, na esperança de crescer graças à grandeza do país. Ele torce muito mais na esperança de que o país consiga, enfim, crescer.

18 setembro 2000

"Mate", amigo e irmão

Os australianos nos param na rua para saber se gostamos de Sydney. Perguntam com quais medalhas sonha o Brasil e logo nos desejam boa sorte.

São conversas de homem a homem, frequentes sobretudo na sexta e no sábado, quando um par de cervejas solta as línguas. Nessas investidas cordiais, eles nos chamam sempre de "mate".
"Mate" significa companheiro, amigo do peito: é o apelido dos homens australianos entre si. O termo tem sentido forte quando reivindica a importância de uma relação: "Farei qualquer coisa para ele, ele é meu "mate'". Mas parece também fraco por ser usado para se dirigir a estranhos: ""Mate", sabe onde está a rua tal?".

No Brasil há termos parecidos: "amigo", em São Paulo, e "irmão", no Rio, são usados, mas com menos frequência. Uso forte: "Fulano é um irmão para mim". Uso fraco: "Amigo, traz uma aguinha para a gente". O paralelo revela uma diferença. Os australianos chamam todos de "mate", e essa intimidade pressupõe a idéia de uma sociedade de iguais, onde todos são "mates". No Brasil, o mesmo uso é condescendente: chamamos o guardador de carros de amigo. A recíproca é inesperada e ameaçadora.

Há razões históricas para isso. A Austrália nasceu, pouco mais de 200 anos atrás, do projeto de transformar um continente inteiro em colônia penal. A Inglaterra do fim do século 18 não sabia o que fazer com seus criminosos -melhor dito, com seus pobres.

Os miseráveis da Revolução Industrial não eram bonitos de se ver na rua. Surgiu a idéia de levá-los para a praia australiana. Se morressem, não seria uma grande perda. Se conseguissem sobreviver, seria mais uma colônia para o império. Entende-se por que os australianos se consideram companheiros de naufrágio. Inventaram uma sociedade horizontal onde um dos passatempos consiste, como eles se expressam, em cortar as papoulas que crescem mais do que as outras.

No Brasil, a história é outra: a escravatura introduziu uma desigualdade da qual mal conseguimos sair. O privilégio pode ser detestado, mas é também invejável.

Enfim, para chegar a conviver como pares, precisaríamos levantar o peso do passado e tirá-lo de nossa frente. Deve ser por isso que hoje fui assistir à prova de levantamento de peso feminino (categoria 48 kg), na qual concorria Maria Elizabete Jorge. Nossa atleta se classificou em décimo -era o que ela esperava. Depois do último arremesso, despediu-se do público sorrindo e abanando. Deu entrevista confirmando sua vontade de continuar levantando peso. Ótimo, pois ainda há bastante entulhos no nosso caminho e precisamos de muitas Elizabetes.