24 julho 1994

Vestida de feliz, a criança é a caricatura da felicidade impossível

Como amamos as crianças! Nenhuma passa perto sem levar uma carícia. Mas por que as amamos tanto? Não é nada natural. Em nossa história passada, não as amamos sempre do mesmo jeito, nem tanto assim.

A infância, como mostrou Philippe Ariès ("História Social da Criança e da Família"), é uma invenção moderna. Este tempo separado da vida adulta, protegido pelo amor parental, miticamente feliz, surgiu em nossa cultura há apenas dois séculos, quando o individualismo triunfou no Ocidente.

É neste momento –também lembra Ariès– que a morte cessou de ser vivida como um acidente ao qual sobreviveriam a cadeia das gerações e a ordem social, para se tornar a irremediável e trágica desaparição dos indivíduos. Para quem a morte é o fim de tudo, só as crianças trazem consolo, representando alguma promessa de imortalidade.

Do mesmo jeito, naquele momento-chave de nossa cultura, a idéia de felicidade mudou de rumo: aos poucos parou de se alimentar na calma de uma ordem estabelecida ou na visão futura de novas relações sociais, para ser um direito do indivíduo. Direito cujo exercício não é nunca perfeito, e que se torna um dever para os herdeiros: nossas crianças.

Não estranha então que Freud (embora convencido de estar descrevendo um universal trans-histórico) nos dê esta explicação do amor moderno pelas crianças: as amamos como ectoplasmas de uma perfeição que os avatares da vida já nos recusaram. Delas esperamos que nos ofereçam a imagem de uma plenitude e de uma felicidade que não é, e nunca foi a nossa, mas graças à qual podemos amar a nós mesmos. Olhamos para elas como para uma foto de nossa infância onde queremos parecer felizes. E para isso as protegemos, cuidamos e satisfazemos.
A criança é a caricatura da felicidade impossível: vestida de feliz, isenta das fatigas do sexo e do trabalho, idealmente despreocupada.

Pois bem, será que hoje nosso amor para as crianças é ainda aquele que surgiu com a modernidade? Será que a infância que nossa cultura inventou ainda existe e resiste? Já Ariès, nos meados dos anos 70, duvidava que a infância por ele trazida à luz ainda durasse.

As aparências podem ser significativas: não vestimos mais as crianças de crianças, mas de "adultos em miniatura", como assinala Olivier Mongin no seu artigo (à pág. 6-7). Dir-se-á que particularmente aqui no Brasil são os adultos que se vestem como crianças. De fato, as crianças se fantasiam de adultos de fim de semana. Desses, elas adotam os modos, as pretensões e o incômodo imperativo de aproveitar a vida.

As coisas mudaram aos poucos; nosso olhar procurava a sossegada imagem de uma felicidade infantil em um mundo encantado, feito de vestidinhos de renda e blusas de marinheiro. Depois, desejosos de garantir à criança um acesso à vida adulta, mesmo ao custo de comprometer o mundo de Oz, passamos a vesti-las de terno e gravata ou de saia plissée.

Hoje –síntese hegeliana– elas seguem a imagem da felicidade dos adultos: roupa esporte e fantasias de Xuxa. Ao instantâneo desbotado do nenê sem sexo, à foto amarelada do homenzinho e da mulherzinha de blazer, se substituiu um cartão postal que se parece com o folheto publicitário de um pacote de férias, vôlei na praia e promessas eróticas.

Na mesma linha, o ideal proposto à criança não é mais o porto seguro de um quadro familiar ordenado pelas gerações, nem a antecipação de uma adaptação ao mundo dos grandes, mas, como mostram Alfredo Jerusalinsky e Eda Tavares (leia artigo à pág. 6-5), é a identificação com o super-herói cuja única dependência é com um objeto mágico. Como não constatar que a felicidade que queremos contemplar nelas é a caricatura de nossos devaneios? As queremos paradoxalmente livres de nós, assim como sonhamos ser livres de nossos pais, e possuidoras de objetos, pois atribuímos aos objetos o valor de talismãs.

A nova forma de amor consiste em suma em querê-las independentes de penosas obrigações (contrariamente aos grandes), mas (como os grandes) dependentes dos objetos de satisfação que tentamos colocar ao alcance de sua mão. Não é de estranhar que isso as destine com frequência à adição. Pois a equação simbólica não escapa a ninguém, que vai do cinto de Armani ao martelo de Thor e acaba na heroína (o alcalóide).

Também não seria de estranhar que as crianças, de repente, possam se tornar tão assassinas e cruéis quanto nós. Pois os "adultos em miniatura", para serem felizes, devem manter da infância justamente a isenção daqueles estorvos que nos fazem tão pouco amáveis aos nossos próprios olhos; o peso do dever e da dívida com as gerações anteriores, a hesitação do juízo moral, o rigor da Lei. Em suma, queremos que sejam anões de férias sem lei. E podem acabar sendo.

Se precisasse datar esta nova forma de amor, pela qual as crianças são convidadas a uma rebeldia que lhes outorgue a felicidade que queremos para nós, sem dúvida o fim dos anos 60 seria o momento. Neste sentido, maio de 68 obedeceu, paradoxalmente, ao mandato do narcisismo parental: sejam realistas, peçam o impossível (que não conseguimos para nós).

Interessante que, no Ocidente, a UTI da satisfação afogou o movimento em um mar de objetos, pílulas e drogas. No Oriente, onde este recurso não se deu e onde o conflito foi agudo entre as culturas tradicionais e a irrupção deste novo amor pelas crianças, exportado pela triunfante mundialização de nossa cultura, se soltaram bandos de adolescentes assassinos (a Revolução Cultural chinesa, ou os Khmer vermelhos).

Certamente, a heroína não é a cola de sapateiro e no filme "O Bom Filho" (The Good Son) não é uma criança de rua. De qualquer forma, o fato marcante do novo amor parental para os "adultos em miniatura" é o número crescente de crianças dele excluídas. Só dois exemplos, brasileiros, que, à primeira vista, parecem contradizer a idéia de amor narcísico indiscriminado pelas crianças.

A prostituição infantil é, neste país, quase endêmica (pouco importa a discussão ao redor dos números). Deixemos de lado também as besteiras que pretensos clínicos puderam sugerir a este respeito sobre a eventual pedofilia dos clientes. A prostituição infantil no Brasil não é um prato fino e proibido para clientes tortos e exigentes.

Ao contrário, ela se oferece barata nas zonas mais populares; se destina ao consumo cotidiano: cerveja com menina. Preferiríamos acreditar que o cliente seja um perverso desregrado. Pois é inaceitável para nós que um corpo infantil seja objeto de desejo sexual. Isso é um corolário da infância moderna: por amar narcisicamente as crianças, por querer que sejam imagens de uma apatetada felicidade afastamos delas um desejo sexual que o Antigo Regime lhe reconhecia sem hesitações. E, embora a situação mude, a regra continua valendo.

O "adulto em miniatura" que amamos, agora deveria nos oferecer a imagem de uma felicidade também sexual, mas preferimos que a farsa se jogue entre anões. Assim não hesitamos em incentivar patéticas reuniões dançantes e shows no escuro entre estupefatas e angustiadas crianças de sete, oito, nove anos. Mas ainda resistimos a conceber que as mesmas crianças possam ser objeto sexual de um adulto. A coisa sujaria o encanto da festa. Como é possível, então, que neuróticos como a gente possam reconhecer em um corpo infantil um corpo sexual?

Segundo exemplo. Em um livro notável, "Death Without Weeping" (University California Press, 1992), Nancy Scheper-Hughes relata seu longo trabalho de campo na zona da mata de Pernambuco. No centro do livro está a descoberta da aparente ausência de luto nas mães das pequenas vítimas da mortalidade infantil. Scheper-Hughes constata que o luto só se manifesta se a criança vier a morrer tendo ultrapassado os primeiros tempos críticos. Ou, como se expressam as mães, quando ela tiver manifestado uma obstinada "vontade de viver".

Eis um amor materno que não parece narcísico. Será um resto do passado? Ariès, justamente, descreve, para o Antigo Regime, uma relação com mortalidade infantil similar a que Hughes verifica.

Há, para dar conta desses dois exemplos, o recurso possível à tese da Belíndia, do Brasil duplo, arcaico e moderno (cara a Roberto da Matta, por exemplo). As crianças da classe média para cima seriam narcisicamente amadas e cada vez mais como caricaturas de adultos felizes. E as crianças daí para baixo, restos arcaicos do passado, seriam amadas como antes da invenção da infância. Sua morte seria uma perda social, mas não narcísica. seus corpos poderiam ser objetos de desejo sexual pois a sexualidade lhes seria reconhecida.

Ora, acontece que frequentemente, e não só no Brasil, em condições de miséria extrema, o amor parental parece seguir caminhos diferentes do amor narcísico. É dispensado o luto da morte dos mais jovens, torna-se possível a erotização do corpo infantil, e também a exploração da criança no trabalho ou simplesmente sua venda ou abandono. E isso em circunstâncias e lugares onde o recurso à idéia de um resto social arcaico é impossível.

Como, então, a miséria real teria o poder de mudar nossa relação às crianças, ao ponto que o amor que lhes é destinado não pareceria mais obedecer às regras de nosso moderno amor narcísico por elas?

Não é por falta de narcisismo parental. É por excesso. Em uma sociedade tradicional, o que decide a dignidade subjetiva não é o real. Você é marquês mesmo se muito mal servido pela natureza ou financeiramente arruinado. Em uma sociedade individualista, ao contrário, um real ingrato pode privar facilmente o sujeito de qualquer dignidade. Por exemplo: um defeito físico ou a miséria real podem e de fato comprometem o investimento narcísico parental.

O amor pelas crianças em uma sociedade tradicional é incondicional, embora menos espalhafatoso: elas são amadas como garantias e apostas na reprodução social, como descendentes. Nosso amor narcísico, ao contrário, impõe condições. Pois a criança que, por razões reais, não pudesse corresponder aos nossos devaneios, não é mais nada. Seu corpo, desinvestido narcisicamente, se oferece ao sexo, sua morte não nos afeta, pois, de qualquer forma, ela não poderia mesmo, realmente, ser o espelho miniaturizado de nossa felicidade.

Dir-se-á que esta hipoteca sobre o amor para as crianças só se verificaria nas margens do império, aqui no Brasil, por exemplo, onde as crianças podem ser prostituídas, abandonadas, assassinadas.

Ledo engano: o Brasil, ao contrário, é um revelador. O Primeiro Mundo se diferencia de nós –neste caso– só por suas tentativas desesperadas de resistir a esta trágica implicação cultural.
Assim decretam-se em todo lugar estatutos e direitos da criança e do adolescente, para protegê-los de um amor tão louco que se torna precário, suspenso à condição que o jovem realmente possa satisfazer nosso narcisismo.

Assim faz-se –como nos EUA– do estupro de criança o crime da década. Procuram-se, até por memória assistida, lembranças de atrocidades cometidas por pais indignos, padrastos e madrastas. A suspeita paranóica e o medo aliviam e permitem afastar uma violência que é provavelmente a nossa própria contra as crianças que se aventurassem a não ser as de nossos sonhos. E será que o mundo permite que as crianças realizem nossos sonhos?

Ora, nenhum aumento estatístico da criminalidade contra as crianças parece justificar a preocupação parental. Único dado significtivo: aumentou sim, nos últimos anos, a independência das crianças, cada vez menos integradas em quadros familiares, cada vez mais sozinhas. Efeito dos tempos, da instabilidde dos casais, do mercado do trabalho, certo, mas também de um narcisismo parental que cada vez mais vê na criança o adulto. Com a implicação que sabemos, ou seja, a vontade de abandoná-la se ela não corresponder a uma espera em última instância impossível.

Assim, enfim, cultiva-se a pena e a indignação frente à imagem do miudinho faminto, destroçado, abandonado e perdido (isso também começou em 68: lembram de Biafra?). Chorar seu triste destino, assisti-lo, salvá-lo é uma verdadeira catarse social, pela qual provamos que ainda conseguimos amar a todas as crianças, mesmo as menos avantajadas. O anseio assistencial é uma vasta defesa contra um amor das crianças que, na verdade, é cada vez menos universal. Pois, se as crianças não são amadas por ser descendência, mas por ser a imagem de nossa felicidade, com efeito, que me importa a criança do vizinho? Só é amável a minha.

Em suma, as crianças estão mal na foto. Sobretudo porque a foto na qual gostaríamos que sorrissem é nossa última foto de férias. E precisaria que estivessem à altura de se dar as férias que nós nunca conseguimos viver. Para elas, o peixe brandido deveria ser de verdade, a moça ao lado deveria ter sido mesmo uma tórrida aventura, o sol deveria ter brilhado o tempo todo. Se não for assim, por que amá-las?

Mas não tem problema: logo a engenharia genética resolverá de vez os embaraços de nossa pedagogia, e nos oferecerá, como crianças, clones felizes, construídos à imagem e semelhança de nossos sonhos.

19 julho 1994

Com quanta culpa se faz a modernidade

É próprio do sujeito moderno o drama entre a autonomia como traço cultural dominante e o esquecimento do passado que ela pede


Nos últimos tempos, a imprensa -americana e nacional- não pára de interrogar nosso próximo futuro: como será nossa vida nas "superhighways" da informação? E regularmente aparecem comentários humanísticos indignados: o cabo ótico estaria preparando um futuro assombroso. Por quê? O que preocupa os críticos é a expansão planetária de uma "nova" modalidade das relações, que seria necessariamente indiscriminada e superficial: todos dialogarão com todos e sem se dizer nada de essencial.

O convívio eletrônico cai sob as mesmas críticas que sua versão caipira, o Tele-Amizade, ou seu antecessor francês, o Minitel, o diálogo humano acabaria oscilando entre uma sexualidade de sauna californiana anos 70 e, do lado mais soft, uma arte de conversação digna de preciosidades molierianamente ridículas.

Essas críticas são infundadas (basta ter frequentado um pouco o Internet americano para constatá-lo). Mas importa sobretudo que a modalidade das relações tão receada não é nem mais nem menos do que a regra das trocas humanas no mundo ocidental urbano. Isso, Simmel já notou nos anos 20 e a Escola de Chicago de sociologia repetiu: o individualismo moderno produz promiscuidade (por tornar possível a grande circulação e concentração de seres juridicamente iguais, embora diferentes) e distância (pois nenhum indivíduo quer se confundir como vizinho).

O convívio eletrônico, deste ponto de vista, é solidário de nossa cultura; ele só expande a socialidade moderna além do quadro topográfico urbano; graças a ele, poder-se-á ser cidadão e citadino da urbe mundial individualista mesmo ficando na famosa ilha deserta.

Deixamos de lado o dandismo hiperindividualista de quem cultiva sua diferença até não querer trocar a pena de ganso por um 486. Resta escolher entre duas óticas: ou ficar com Bill Gates, inventando as potencialidades ainda insuspeitadas de nossa modernidade, ou então resmungar sobre a profundidade perdida das conversas de cuia-na-mão na lauda solitária. Mas qual profundidade perdida?

Grande parte dos escritos contemporâneos sobre modernidade são saudosistas. Sobretudo quando a chave de leitura é o individualismo, como traço dominante de nossa época.

Há, primeiro, um mal entendido. Uma sociedade individualista (cf. I. Dumond, "Ensaios Sobre Individualismo") é uma associação de humanos que valoriza antes de mais nada o indivíduo, sua autonomia, sua diferença. O termo não comporta nenhum juízo moral. Ora, nós sempre ouvimos "individualista" como um sinônimo de egoísta, interesseiro. E acabamos assim interrogando a modernidade a partir de um preconceito.

Mas o mal entendido não surge por acaso. Nossa cultura individualista já nasceu culpada, e continua convencida de ser uma progressiva degeneração, um declínio do que teria sido, no passado, uma idade de ouro onde o bem comum seria o supremo valor para todos.

A sociedade dos indivíduos chora a comunidade perdida (aviso: foi republicada em 93 por Transaction Pub, a excelente tradução americana de F. Tônnies, "Comunidade e Sociedade", que, seja lembrado, não queria ser um livro nostálgico). O cristianismo, por exemplo, contribuiu decisivamente à formação individualista, chamando os prosélitos a um contato direto com Deus além de seus vínculos de tradição, família e lugar.

Ora, desde os seus inícios, ele se preocupa em promover uma moral comunitária de amor para o próximo, como se quisesse prevenir os efeitos "maléficos" do laço social que ele mesmo contribuiu a instituir. Aliás, o cristianismo preservou a comunidade que ele mesmo comprometia, hipostasiando-a no reino dos céus.

Do mesmo jeito, a cada arrancada individualista da modernidade, corresponde, em poucas décadas, a um florecer de utopias comunitárias, quase compensatórias. Foi assim na Renascença, com as utopias clássicas, foi assim no século 19, depois das Luzes, com os anseios comunitários sociais.

Tudo acontece como se fôssemos membros de uma sociedade individualista, mas permeados de uma moral comunitária. Certo, uma cultura que prefere o indivíduo ao bem comum tem dificuldade em elaborar um critério ético para a conduta de seus membros. Dumkheim (na "Divisão Social do Trabalho") teria dito que uma sociedade individualista não tem "consciência coletiva".

Mas esta inevitável incerteza ética não explica por si só nosso incurável saudosismo. Poderíamos escolher o caminho razoável de uma laboriosa confrontação, delegando às vezes ao diálogo e às vezes à força a decisão –sempre provisória– do certo e do errado (Gianni Vattimo ou Habermas serviriam de guias). Mas o individualismo prefere estar com saudades: urbano por princípio, sonha com a casa de campo e a moral austera da pequena comunidade agreste. Vagamente teísta e fiel de um deus sob medida, lamenta corais de igreja. Decidido a se reinventar livre cada dia, lamenta o esquecimento das lições do passado. Americano de espírito, chora a Europa perdida ou americanizada, etc (ao ponto que, às vezes, a nostalgia força a barra, e a coisa dá em farsa ou em horror totalitário).

Otavio Souza me escreve uma carta neste sentido, comentando as crônicas americanas publicadas nesta coluna (de janeiro a março de 94). Eu descrevia os EUA como uma sociedade ligada só pelo respeito da lei positiva, em perda de ideário comum, onde as particularidades se agrupam ao redor de interesses e traços reais. Esta é, com efeito, uma boa síntese aparente de uma cultura individualista realizada. Será que implicaria explícita ou implicitamente um juízo de valor, uma espécie de lamento da era dos ideais comunitários? Provavelmente sim. Otavio tem razão.

Há uma dificuldade cultural para pensar e inventar nossa modernidade sem saudades de um velho tempo, onde, aliás, enquanto indivíduos, não aguentaríamos um segundo. Pois somos a única cultura construída ao redor da paradoxal injunção de esquecer e recusar o que nos é transmitido. Em outras palavras, somos sujeitos fundados no recalque de nossa dívida com o passado e com a tradição. A liberdade que assim ganhamos é necessariamente culpada e produz fantasmas de idades douradas onde, sem culpa, obedeceríamos a uma tradição bem regrada.

Em suma, o individualismo engendra um mal estar propriamente neurótico –que parece aumentar com seu progresso. A psicanálise, que responde a este mal estar específico de nossa cultura, já se deu conta que a saída não é a simples (ou complicada) reconstituição do que foi esquecido. Até porque o próprio do sujeito moderno é justamente o drama que se joga entre a autonomia como traço cultural dominante e o esquecimento do passado e da tradição que ela pede: querer suprimir esta tensão é tão irrisório quanto querer resolver os problemas da modernidade por uma volta à vida tribal.

Entre a posição de censor da modernidade em nome do passado esquecido e a de vira-lata do "no man's land" urbano, entre saudades e niilismo, talvez haja um caminho. Este começa constatando que a autonomia individualista, com todas as suas consequências, é nossa forma paradoxal de obediência à cultura à qual pertencemos. O que nos deixa, em lugar de uma tradição, a tarefa de ir inventando nossa história. Sem ironia mesmo: aproveitem (um pouco)!

17 julho 1994

O grande mito do mitólogo

O rebaixamento da realidade como alienante ilusão inibe a capacidade de inventar o futuro


Na introdução de seu notável "American Mythologies" (1), Marshall Blonsky cita um comentário de Roland Barthes sobre o famoso suicídio coletivo dos fiéis do Templo do Povo na Guiana.
Barthes salientava, na época, a "quebra dos códigos" produzida por um tal excesso quantitativo em um ato normalmente singular ou circunscrito a grupos restritos (dois amantes, uma família). Ele lamentava também não saber melhor no que a massa dos coitados suicidados acreditava, "como se –Barthes escrevia– as tentativas de interpretação hoje fossem tão interessadas pelas formas... que nos parece desnecessário considerar os conteúdos".

Blonsky lembra ter anotado na margem do texto de Barthes: "Mas você poderia ter encontrado! Poderia ter subido em um avião e, junto com a imprensa, entrevistado os sobreviventes, assim conciliando suas estratégias interpretativas com uma técnica empírica de recolher notícias."
Este debate por anotações nas margens é tanto mais significativo que Blonsky –um dos pioneiros da semiologia nos EUA– justamente com este seu último livro, deixa as fascinantes verdades formais e sai pelo mundo afora para interrogar os mitos contemporâneos em sua fonte. As viagens, os encontros (de Helmut Newton a Evtushenko, passando por Rosita Missoni, Ted Koppel, Armani, Umberto Eco etc) exploram uma realidade que, por mítica que seja, não é condenada como desprezível aparência.

Por isso, embora o título seja sem dúvida uma homenagem às "Mitologias" de Barthes (1957), os dois livros podem se contrapor paradigmaticamente. As "Mitologias" ofereciam uma série de interpretações rápidas e brilhantes pelo seu poder de desmistificação. Apesar de seu carinho complacente para com o cotidiano, o "mitólogo" –como Barthes mesmo denominava sua função– queria "desfazer a significação do mito" e revelá-lo "como impostura".

O autor das "Mitologias" (preciso chamá-lo assim, pois minhas observações valem para o Barthes de 1957 e imagino que ele teria feito as mesmas nos anos 70) nos deixa a impressão que, mesmo confortavelmente lançado a 150 por hora a bordo de um novo Citroen DS 19, nunca teria baixado a guarda, anotando sem parar sua reflexões mitológicas, de medo de ser inexoravelmente seduzido pelo mito DS.

Blonsky, ao contrário, se permite, por exemplo, achar bonito um pulôver de Missoni, acaba recebendo-o de presente em seu quarto de hotel e se aventura até a usá-lo pelo menos uma vez nas ruas de Manhattan. Como os pulôvers de Missoni, o Citroen DS 19 era fantástico. Posso testemunhar: dirigi um de Milão a Kabul, ida e volta (quando ainda dava para atravessar estas paragens). Será que esta cumplicidade com o objeto mítico compromete o trabalho do mitólogo? Pode ser, mas resta perguntar qual é o efeito e o alcance do trabalho do desmistificador.
Acontece que, relidas hoje, as "Mitologias" de Barthes parecem elas mesmas constituir um mito como aqueles que elas denunciam. Seu autor (mesma ressalva feita antes) é um herdeiro do flâneur de Walter Benjamin que é seduzido pela fantasmagoria moderna das mercadorias, mas não tem direito de comprar. Ele vem para festa, mas não dança, abstenção que o autorizaria a entender o que é verdadeiramente a festa.

Quem dançasse sacrificaria sua inteligência crítica e não teria como passar de colunista social. Este mito do intelectual mitólogo teria para mim como emblema um homem pálido de terninho tergal preto, lendo "Das Kapital" em baixo de um guarda-sol em uma praia italiana nos anos 60. O mito diz que, para pensar, precisa se afastar da massa e de suas paixões. O paradoxo, aliás, é que justamente quem assim se afasta, persegue e realiza a maior paixão de massa dos indivíduos modernos, que é a de se diferenciar.

Mas, sobretudo, o mito do mitólogo é solidário de um corolário básico da modernidade segundo o qual a verdade se articularia melhor no isolamento monástico, pois só poderia ser fruto de uma razão subjetiva não sujeitada à tradição, nem contaminada pelas aparências enganadoras de uma realidade traiçoeira e alienante.

Esta oposição de verdade e realidade contribui singularmente a um panorama cultural onde –como notava Barthes– o formal prevalece sobre os conteúdos; marxistas desprezando qualquer modificação sociológica da estratificação social em nome da estrutura de classe, psicanalistas sobrepondo fórmulas mágicas à complexidade das vidas ou teorizando quadros clínicos jamais encontrados, antropólogos estritamente primitivistas ou mesmo fóbicos de viagem. Cada um reconhecerá os seus.

Se a realidade contamina e obnubila a retitude do pensamento, jogar o jogo é alienante. Mas alienante em relação a quê? Qual incrível peso do ser, qual pretensa natureza humana ou qual tradição simbólica valendo como natureza seriam ocultadas por nossos envolvimentos imaginários?

A idéia de alienação surge curiosamente logo quando a modernidade se constitui. O indivíduo autônomo de nossos tempos não coincide mais com um conjunto preestabelecido de obrigações simbólicas, por isso ele é obrigatoriamente narcísico: sua consistência subjetiva em princípio não é o peso da herança recebida, mas o fruto de suas contínuas tentativas de se manter desejável aos olhos dos outros.

Alienante? Que o sujeito de uma sociedade tradicional possa nos achar alienados, extraviados da reta via das tradições por nosso narcisismo é normal. Devolveríamos a ele, aliás, o cumprimento, pois justamente pretendemos que nossa cultura nos libertou das tradições que alienavam nossa autonomia de indivíduos. O paradoxo é que nós mesmos passemos a nos estimar alienados e a alimentar o mito do desmistificador.

É o mal-estar da modernidade, pelo qual ela não consegue se livrar do espectro nostálgico de um mundo menos movediço, de mais fácil controle social, em suma de um mundo tradicional cuja estabilidade perdida –comparada com o jogo de espelhos da fantasmagoria moderna– faz figura de verdade ou de autenticidade. Preferimos denunciar nosso hedonismo narcísico como falso e alienante do que encará-lo como sendo nossa realidade e verdade cultural.

Para isso, há uma justificação: uma cultura narcísica parece incapaz de assegurar seu próprio controle social e ético.

Desconhecê-la como cultura ou então considerá-la como um simulacro enganador, eis o que permite moralizá-la, mas fazendo apelo a verdades, autenticidades e valores invocados como deuses antigos e assim reduzindo o cuidado ético a uma forma de nostalgia patética e ineficiente. O melhor exemplo permanece sendo o desfile dos congressistas no processo de impeachment, gritando: pela ética na política, voto sim!

O verdadeiro regulador ético, no caso, foi narcísico: a imagem que a televisão transmitia e sua apreciação pelos eleitores. Ora, não é nada certo que uma sociedade sem valores preestabelecidos, regrada por ajustes narcísicos, tenha que ser um deserto ético. De fato, é sobretudo certo que o rebaixamento de nossa realidade cultural como leda e alienante ilusão inibe nossa capacidade de invenção, propondo encontrar balisas na gaveta simbólica das heranças (nas quais de fato não acreditamos mais) e não, como se esperaria, na invenção (imaginária) do presente e do futuro.

Resta entender e encontrar, evidentemente, por quais caminhos e conflitos o jogo narcísico que nos constitui e reúne pode vir a dar alguma forma ética às condutas.

Mas, antes de mais nada –para que nossos anseios de transformação e controle social não sejam simples expressão do mal-estar moderno–, precisa desmistificar a desmistificação. E substituir ao mitólogo uma nova forma de flâneur, menos abstinente e desconfiado, assumidamente moderno. Blonsky, por exemplo.

As fábricas do imaginário contemporâneo que ele explora para nós talvez sejam lanternas mágicas, mas as sombras que elas projetam não nos alienam traiçoeiramente. Elas fabricam o único mundo do qual somos sujeitos, uma realidade que é também nossa verdade.