17 julho 1994

O grande mito do mitólogo

O rebaixamento da realidade como alienante ilusão inibe a capacidade de inventar o futuro


Na introdução de seu notável "American Mythologies" (1), Marshall Blonsky cita um comentário de Roland Barthes sobre o famoso suicídio coletivo dos fiéis do Templo do Povo na Guiana.
Barthes salientava, na época, a "quebra dos códigos" produzida por um tal excesso quantitativo em um ato normalmente singular ou circunscrito a grupos restritos (dois amantes, uma família). Ele lamentava também não saber melhor no que a massa dos coitados suicidados acreditava, "como se –Barthes escrevia– as tentativas de interpretação hoje fossem tão interessadas pelas formas... que nos parece desnecessário considerar os conteúdos".

Blonsky lembra ter anotado na margem do texto de Barthes: "Mas você poderia ter encontrado! Poderia ter subido em um avião e, junto com a imprensa, entrevistado os sobreviventes, assim conciliando suas estratégias interpretativas com uma técnica empírica de recolher notícias."
Este debate por anotações nas margens é tanto mais significativo que Blonsky –um dos pioneiros da semiologia nos EUA– justamente com este seu último livro, deixa as fascinantes verdades formais e sai pelo mundo afora para interrogar os mitos contemporâneos em sua fonte. As viagens, os encontros (de Helmut Newton a Evtushenko, passando por Rosita Missoni, Ted Koppel, Armani, Umberto Eco etc) exploram uma realidade que, por mítica que seja, não é condenada como desprezível aparência.

Por isso, embora o título seja sem dúvida uma homenagem às "Mitologias" de Barthes (1957), os dois livros podem se contrapor paradigmaticamente. As "Mitologias" ofereciam uma série de interpretações rápidas e brilhantes pelo seu poder de desmistificação. Apesar de seu carinho complacente para com o cotidiano, o "mitólogo" –como Barthes mesmo denominava sua função– queria "desfazer a significação do mito" e revelá-lo "como impostura".

O autor das "Mitologias" (preciso chamá-lo assim, pois minhas observações valem para o Barthes de 1957 e imagino que ele teria feito as mesmas nos anos 70) nos deixa a impressão que, mesmo confortavelmente lançado a 150 por hora a bordo de um novo Citroen DS 19, nunca teria baixado a guarda, anotando sem parar sua reflexões mitológicas, de medo de ser inexoravelmente seduzido pelo mito DS.

Blonsky, ao contrário, se permite, por exemplo, achar bonito um pulôver de Missoni, acaba recebendo-o de presente em seu quarto de hotel e se aventura até a usá-lo pelo menos uma vez nas ruas de Manhattan. Como os pulôvers de Missoni, o Citroen DS 19 era fantástico. Posso testemunhar: dirigi um de Milão a Kabul, ida e volta (quando ainda dava para atravessar estas paragens). Será que esta cumplicidade com o objeto mítico compromete o trabalho do mitólogo? Pode ser, mas resta perguntar qual é o efeito e o alcance do trabalho do desmistificador.
Acontece que, relidas hoje, as "Mitologias" de Barthes parecem elas mesmas constituir um mito como aqueles que elas denunciam. Seu autor (mesma ressalva feita antes) é um herdeiro do flâneur de Walter Benjamin que é seduzido pela fantasmagoria moderna das mercadorias, mas não tem direito de comprar. Ele vem para festa, mas não dança, abstenção que o autorizaria a entender o que é verdadeiramente a festa.

Quem dançasse sacrificaria sua inteligência crítica e não teria como passar de colunista social. Este mito do intelectual mitólogo teria para mim como emblema um homem pálido de terninho tergal preto, lendo "Das Kapital" em baixo de um guarda-sol em uma praia italiana nos anos 60. O mito diz que, para pensar, precisa se afastar da massa e de suas paixões. O paradoxo, aliás, é que justamente quem assim se afasta, persegue e realiza a maior paixão de massa dos indivíduos modernos, que é a de se diferenciar.

Mas, sobretudo, o mito do mitólogo é solidário de um corolário básico da modernidade segundo o qual a verdade se articularia melhor no isolamento monástico, pois só poderia ser fruto de uma razão subjetiva não sujeitada à tradição, nem contaminada pelas aparências enganadoras de uma realidade traiçoeira e alienante.

Esta oposição de verdade e realidade contribui singularmente a um panorama cultural onde –como notava Barthes– o formal prevalece sobre os conteúdos; marxistas desprezando qualquer modificação sociológica da estratificação social em nome da estrutura de classe, psicanalistas sobrepondo fórmulas mágicas à complexidade das vidas ou teorizando quadros clínicos jamais encontrados, antropólogos estritamente primitivistas ou mesmo fóbicos de viagem. Cada um reconhecerá os seus.

Se a realidade contamina e obnubila a retitude do pensamento, jogar o jogo é alienante. Mas alienante em relação a quê? Qual incrível peso do ser, qual pretensa natureza humana ou qual tradição simbólica valendo como natureza seriam ocultadas por nossos envolvimentos imaginários?

A idéia de alienação surge curiosamente logo quando a modernidade se constitui. O indivíduo autônomo de nossos tempos não coincide mais com um conjunto preestabelecido de obrigações simbólicas, por isso ele é obrigatoriamente narcísico: sua consistência subjetiva em princípio não é o peso da herança recebida, mas o fruto de suas contínuas tentativas de se manter desejável aos olhos dos outros.

Alienante? Que o sujeito de uma sociedade tradicional possa nos achar alienados, extraviados da reta via das tradições por nosso narcisismo é normal. Devolveríamos a ele, aliás, o cumprimento, pois justamente pretendemos que nossa cultura nos libertou das tradições que alienavam nossa autonomia de indivíduos. O paradoxo é que nós mesmos passemos a nos estimar alienados e a alimentar o mito do desmistificador.

É o mal-estar da modernidade, pelo qual ela não consegue se livrar do espectro nostálgico de um mundo menos movediço, de mais fácil controle social, em suma de um mundo tradicional cuja estabilidade perdida –comparada com o jogo de espelhos da fantasmagoria moderna– faz figura de verdade ou de autenticidade. Preferimos denunciar nosso hedonismo narcísico como falso e alienante do que encará-lo como sendo nossa realidade e verdade cultural.

Para isso, há uma justificação: uma cultura narcísica parece incapaz de assegurar seu próprio controle social e ético.

Desconhecê-la como cultura ou então considerá-la como um simulacro enganador, eis o que permite moralizá-la, mas fazendo apelo a verdades, autenticidades e valores invocados como deuses antigos e assim reduzindo o cuidado ético a uma forma de nostalgia patética e ineficiente. O melhor exemplo permanece sendo o desfile dos congressistas no processo de impeachment, gritando: pela ética na política, voto sim!

O verdadeiro regulador ético, no caso, foi narcísico: a imagem que a televisão transmitia e sua apreciação pelos eleitores. Ora, não é nada certo que uma sociedade sem valores preestabelecidos, regrada por ajustes narcísicos, tenha que ser um deserto ético. De fato, é sobretudo certo que o rebaixamento de nossa realidade cultural como leda e alienante ilusão inibe nossa capacidade de invenção, propondo encontrar balisas na gaveta simbólica das heranças (nas quais de fato não acreditamos mais) e não, como se esperaria, na invenção (imaginária) do presente e do futuro.

Resta entender e encontrar, evidentemente, por quais caminhos e conflitos o jogo narcísico que nos constitui e reúne pode vir a dar alguma forma ética às condutas.

Mas, antes de mais nada –para que nossos anseios de transformação e controle social não sejam simples expressão do mal-estar moderno–, precisa desmistificar a desmistificação. E substituir ao mitólogo uma nova forma de flâneur, menos abstinente e desconfiado, assumidamente moderno. Blonsky, por exemplo.

As fábricas do imaginário contemporâneo que ele explora para nós talvez sejam lanternas mágicas, mas as sombras que elas projetam não nos alienam traiçoeiramente. Elas fabricam o único mundo do qual somos sujeitos, uma realidade que é também nossa verdade.

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