31 março 2011

"Fazer" uma doença


A desventura pode até ser terrível, mas console-se: se você for vítima ou culpado, você vai aparecer na foto

VÁRIOS LEITORES pediram que eu insistisse no mesmo tema da semana passada: por que a culpa é um de nossos jeitos preferidos para dar sentido ao mundo? Como é possível que, diante de uma desgraça, o fato de sentirmo-nos culpados constitua, para nós, uma espécie de conforto?

Todos conhecemos as expressões usuais pelas quais, por exemplo, Fulano ou Fulana podem eles mesmos admitir que "fizeram um câncer" -e não foi porque fumaram dois maços de cigarros por dia durante a vida inteira, nem porque, verão após verão, deitaram no sol para bronzear a pele, sem protetor algum. Nada disso: a expressão "fazer uma doença", em geral, indica outro tipo de responsabilidade. Mas vamos devagar.

Não é raro que a primeira reação de quem recebe um diagnóstico maligno consista em procurar uma intenção escusa da qual ele poderia ser a vítima. Envenenaram a água da cidade; o ar é repleto de resíduos daquela fábrica cuja chaminé solta fumaça a cada noite; há um dentista que tem consultório acima do meu, ninguém sabe quantos raios-x ele faz por dia, será que ele isolou sua sala do jeito certo ou será que a radiação chega até aqui?

Na mesma linha, Deus ou o diabo podem ser os mandantes de minha desgraça. Deus, porque ele quer colocar à prova minha fé, como ele já fez com Jó. O diabo, porque ele é príncipe aqui na terra e todo o mal vem dele.

Essas reações parecem ter o mesmo propósito dos delírios paranoicos: elas acusam um agente externo (Deus, o diabo ou os vizinhos) para que o mundo ganhe sentido, ou seja, no caso, para que o mal que se abate sobre a gente tenha uma explicação. "Adoeci porque alguém me quis mal": graças a essa crença, não sofro por acidente nem por acaso, mas sou vítima de uma vontade que me castiga ou me testa. O que se ganha com isso? Antes de responder, mais uma observação.

Em geral, quando temos intenções que preferimos esconder de nós mesmos, uma boa solução é atribui-las a outros. Portanto, não seria de todo estranho que a gente acusasse Deus e todo mundo por males que nós mesmos causamos.

Desse ponto de vista, reconhecer que nós somos os primeiros culpados de nossa desventura seria um progresso. Algo assim: até que, enfim, o cara se tocou, não foi Deus, não foi o demônio, nem a usina química no morro atrás da casa, foi ele mesmo que "fabricou" sua doença.

Geralmente, a explicação deste "fabricar sua doença" passa quer seja por uma poética do estouro (emoções contidas e silenciadas tiveram que se expressar e explodiram numa neoplasia), quer seja por uma poética da erosão (as mesmas emoções reprimidas foram atacando o corpo como a famosa gota que cava a pedra, não pela força, mas caindo repetidamente).

Tanto faz: o que me importa dizer é que entre acusar a Deus e todo mundo e acusar a nós mesmos não há progresso algum.

A posição de vítima (Deus, o diabo e os vizinhos me querem mal) e a posição de culpado (eu fabriquei minha doença porque meu inconsciente é meu verdadeiro inimigo), ambas são chamadas a "explicar" o mal que nos assola, porque, aparentemente, preferimos sofrer de um mal explicado a sofrer de um mal aleatório. Por que isso? Simples: tanto se eu for a vítima escolhida por Deus e pelo mundo quanto se eu for a vítima de mim mesmo, apesar de doente, eu me manterei nas luzes da ribalta.

Em suma, agimos e pensamos como se nosso sofrimento pudesse ser aliviado por uma compensação narcisista: a desventura é terrível, mas, ao menos, como vítima ou como culpado, sairei na foto. Não é uma consolação?

Talvez. Mas é uma consolação custosa, porque, nessa foto em que sou vítima ou culpado, a desventura é o que me define, o que me resume.

De fato, qualquer sofrimento seria um fardo mais leve se ele pudesse aparecer como quase sempre é: um mal sem sentido, que não faz parte de nenhum plano e não é fruto de nenhuma vontade escusa, nem da nossa.

Teste de boa saúde: estamos bem quando podemos ser atropelados sem ter que considerar que alguém tentou nos matar ou que nós mesmos nos jogamos nas rodas do caminhão, empurrados por impulsos inconfessáveis.

Um amigo querido morreu de um câncer que ele não fabricou e que não lhe foi imposto nem por Deus nem pelo diabo nem pelos vizinhos. Ele dizia: os males reais são suficientemente graves para que a gente não se esforce para lhes acrescentar mil sentidos imaginários.

24 março 2011

O prazer e a culpa





Os jovens são levados a pensar que é só frustrando seus próprios desejos que ganham o amor dos adultos


ADMIREI A reação dos japoneses diante do desastre -terremoto, tsunami, contaminação nuclear. Nas declarações oficiais e nas palavras das vítimas, a catástrofe é apenas um acidente: pode haver responsáveis por falhas na prevenção, na segurança ou nos socorros, mas a catástrofe em si não tem sentido algum. Será que nós, ocidentais, seríamos capazes da mesma atitude? Não sei.
A peste assolou repetidamente a Europa do século 14 ao 18. A primeira grande epidemia, de 1347 a 1352, matou um quarto da população europeia. Para que o horror não induzisse ninguém a pensar que o universo era sem sentido, duas reações populares: 1) perseguir judeus e bruxas, supostamente responsáveis pelo contágio, 2) juntar-se aos flagelantes, penitentes que erravam pelo continente se fustigando até o sangue.

Para o flagelante, a peste era um castigo pelos pecados do mundo; portanto, punir-se por eles talvez fosse o jeito de tornar a peste desnecessária.


Naqueles quatro séculos, a Europa se cobriu de igrejas que eram construídas como oferendas para que a epidemia se acalmasse; nelas, homens e mulheres faziam promessas, pedindo para serem poupados.

Ainda hoje, na calamidade e no medo, a promessa que acompanha o pedido feito a Deus ou aos santos sempre propõe uma renúncia: o pedinte se engaja a se privar de algo, do sexo ao chocolate. Funciona assim: 1) meu prazer e meu gozo são sempre culpados, 2) portanto, qualquer mal que me assole se explica como punição de minhas culpas, 3) a renúncia aos meus prazeres pode me redimir e estancar a punição.

Como chegamos a fazer esse estranho uso dos prazeres, ou melhor, da renúncia aos nossos prazeres? Três respostas, não excludentes (e insuficientes).


1) Bem ou mal, educar implica conter, impor frustrações e renúncias. Com isso, a aprovação dos educadores sempre parece proporcional à aceitação das renúncias pelos educandos. Ou seja, os jovens podem ser levados a pensar que é só frustrando seus próprios desejos que eles ganham o amor dos adultos.


2) No fim do primeiro milênio, cada vila europeia vivia no medo de bandos errantes. Quando eles se aproximavam, o povo se reunia na igrejinha e rezava. Isso não impedia nem saques nem estupros. O que pensar quando os bandidos iam embora? Deus não nos protege porque não existe? Deus existe, mas não dá a menor para a gente? Devia triunfar a versão que conciliava o desastre com a existência de Deus: o próprio Deus mandou os bandidos para nos punir de nossos pecados.


3) Talvez seja menos angustiante viver num mundo que faz sentido do que num mundo que não teria sentido algum. Por exemplo, como é que você aguentaria o pensamento da morte futura sem o conforto da ideia de que ela está incluída numa ordem cósmica ou num plano divino?


Infelizmente, esse conforto tem um custo alto, pois o jeito mais fácil de garantir a existência de um sentido do mundo consiste em me atribuir a culpa por todos os males. Ou seja, minha culpa e meu esforço para me redimir "provam" que existe uma ordem (justamente, a que eu ofendia quando me entregava a meus prazeres).


Corolário: se meus prazeres culpados são a causa dos males, não preciso responder "adequadamente" às calamidades, bastará modificar minha conduta de modo que minhas ofensas sejam perdoadas.



Além de dar sentido ao meu mundo, a culpa me oferece a ilusão de agir de maneira eficaz: como o flagelante, posso esperar que minha renúncia ao prazer suspenda a punição. De repente, doenças e catástrofes talvez parem diante de minha conduta meritória. Em vez (ou além) de procurar as condições de prevenir um terremoto ou de debelar um câncer resistente, rezarei noite e dia e me fustigarei em penitência. Se, de qualquer forma, o terremoto vier ou o câncer triunfar, será porque não me açoitei o suficiente.

Pois bem, não acredito que, em nossa cultura, esse bizarro uso dos prazeres e da culpa tenha mudado substancialmente nos últimos sete séculos. Continuamos fundamentalmente inimigos do nosso prazer.

Prova disso: há, hoje como no século 14, bandos errantes que denunciam nossos tempos "hedonistas" e nossa voracidade por prazeres e gozos. São os flagelantes verbais: criticam o prazer para fomentar a culpa. É o jeito (custoso) que eles acharam para dar sentido ao mundo. 

17 março 2011

Intervir ou não


Os injustiçados, mundo afora, esperam a chegada da cavalaria. E a cavalaria, bem ou mal, somos nós


NA FOLHA de 6 de março, um médico líbio, Mohammed Ahmad, entrevistado pelo correspondente Marcelo Ninio, desabafa: "É um massacre, estão atingindo civis, estão nos atacando de todas as direções. Por que a comunidade internacional não intervém?".

A Líbia é apenas um exemplo. A cada dia, junto com as notícias, chega até nós o grito dos que estão sendo perseguidos e exterminados, dos que apodrecem nas masmorras, dos que, indefesos diante de poderes abusivos e absolutos, estão sendo pisados, escravizados, torturados. Eles colocam sua última esperança na improvável chegada da cavalaria. E a cavalaria com a qual eles sonham, bem ou mal, somos nós -somos também nós.

Vamos brincar de Pôncio Pilatos? Ou vamos à luta pelos injustiçados que moram longe de nossa rua, de nosso país e de nossa cultura? E, nesse caso, quais injustiçados escolheremos?

Por temperamento, sou intervencionista -embora muito menos hoje do que no passado, talvez por confiar menos na minha força física. De qualquer forma, se vejo uma briga, tendo a me meter -para afastar os que estão brigando e também para tomar partido. Mas tomo partido como?

Admito que, na maioria das vezes em que decidi me meter, eu realmente não tinha como saber de que lado estava a razão. Por isso mesmo, os supostos "nobres" motivos de minha escolha permanecem sob suspeita. Por exemplo, escolhi o lado do mais fraco: é uma opção generosa, mas quem garante que o mais fraco tinha razão? E se, de fato, eu tivesse escolhido o lado dos que mais se pareciam comigo, como se a razão só pudesse estar com alguém que tivesse a minha cara?

A dificuldade de intervir decorre de contradições que são inseparáveis do próprio espírito da modernidade ocidental.

a) Acreditamos na universalidade da espécie humana; para nós, ser "homem" é mais importante do que pertencer a uma nação ou a uma etnia. Em tese, o que acontece na Líbia ou em Ruanda nos é próximo e nos concerne tanto quanto o que acontece no quintal de casa -portanto, interviremos, não é?

b) Certo, interviremos e pesaremos na balança em nome de nossos valores. Apoiaremos quem quer democracia e escutaremos o grito da mulher que tenta fugir de sua tribo porque não quer que seu sexo seja mutilado ou da adúltera que será apedrejada.

Mas o fato é que a defesa dos valores nos quais acreditamos será hesitante e, de uma certa forma, culpada pelo seguinte sofisma: se todos, por diferentes que sejam de nós, são tão homens quanto a gente, qual seria o mérito especial de nossos valores, salvo o mérito (duvidoso) de eles serem os nossos?

c) Desde o começo da modernidade, acreditamos também que o que acontece no mundo não é efeito da vontade divina, mas da ação dos homens. Por exemplo, não somos dominados pela Providência, mas pela vontade de tiranos contra quem podemos, portanto, nos rebelar.

Há uma contrapartida: assim que a razão moderna reconhece que tudo vem dos atos e das intenções dos indivíduos, ela se torna desconfiada e paranoica. Em suma, a notícia boa é que podemos modificar o curso da história, a notícia ruim é que somos sempre suspeitos de modificá-lo pelas piores razões.

Somos condenados a uma alternativa entre duas posições igualmente incômodas. Quem não intervém é um covarde que renega sua humanidade e deixa os indefesos sem defesa e os injustiçados sem justiça.

Quem intervém é provavelmente um aproveitador que, sob o manto de uma certa grandeza moral, está promovendo interesses escusos ou, no mínimo, impondo ao mundo seus valores particulares. Algumas consequências disso? Aqui vai.

Desde o sítio de Sarajevo, em 1992, até o massacre de Srebrenica em 1995, a imprensa ocidental denunciou a covardia das potências que não impediam o genocídio. Depois dos bombardeios da Otan em 1998, os mesmos comentaristas denunciaram o imperialismo das potências que se atreveram a intervir.

Se amanhã as botas dos soldados da Otan ou mesmo da Liga Árabe pisarem o chão da Líbia, aposto que Mohammed Ahmad será entre os primeiros a se indignar e eventualmente a lutar contra o ocupante estrangeiro.

Nota: Quem puder (o filme está em poucas salas, infelizmente) assista a "Restrepo", documentário de S. Junger e T. Hetherington. É uma extraordinária lição de sobriedade na hora de pensar em intervenções militares "civilizatórias".

10 março 2011

"Cisne Negro", o Carnaval e as mães


Se conseguimos viver plenamente, é graças a autores e intérpretes que nos revelam nosso lado B


"CISNE NEGRO" é a história, muito bem contada, do desabrochar de uma loucura. Mas amei o filme por outras razões. Aqui vão duas delas.

1) Revi "Cisne Negro" no domingo e, na volta do cinema, assisti ao Carnaval na TV.

Gosto da exuberância de alegorias e fantasias, e o que mais importa no Carnaval talvez seja a paixão das escolas ao preparar o desfile, mas resta que, na televisão, o espetáculo do carnaval e de seus bastidores consegue a façanha se ser, ao mesmo tempo, vulgar e careta. Como é possível?

É que, no espetáculo televisivo, a transgressão da folia consiste numa tremedeira de carnes (vagamente sugestiva de um exercício sexual), acompanhada de uma dose diurética de cerveja. Ou seja, o Carnaval na televisão é um programa infantil, pois é assim que as crianças imaginam a transgressão: vulgar como xixi-cocô e careta como suas suposições sobre o que acontece entre adultos na hora do sexo.

Só para confirmar: as crianças encaram com prazer o tédio de uma noite de desfiles em família, na frente da televisão. Elas acham reconfortante supor que o lado B dos adultos seja parecido com a visão infantil da transgressão: comilança, bebedeira, bunda e peitos. Só falta um pum final.

Na verdade, fora esse momento anual de regressão coletiva, espera-se que, para os adultos, a transgressão seja uma excursão em territórios mais tenebrosos e mais aventurosos. Espera-se que o lado B da gente não caiba no Carnaval televisivo e que sua descoberta peça mais do que alguns litros de cerveja.

1) Nada torna a vida interessante tanto quanto a descoberta de nossa própria complexidade; 2) Talvez a função mor da cultura seja a de nos dar acesso a partes de nosso âmago que normalmente escondemos de nós mesmos; 3) Conclusão: se conseguimos viver plenamente, é graças a autores, atores, intérpretes etc. que nos revelam nosso próprio lado B (e C e D).

Agora, será que o artista poderia levar espectadores ou leitores para territórios que ele não tiver primeiro desbravado nele mesmo?

Alguns pensam assim: só quem ousa se aventurar pelo seu próprio lado B consegue revelar aos outros o lado B que eles escondem de si mesmos. Nina, a estrela do "Lago dos Cisnes", não poderia arrebatar seu público sem se entregar corajosa e perigosamente a seu lado obscuro, sem se entregar ao cisne negro nela.

Outros pensam que, para encarnar o cisne negro, Nina não precisa sentir sua lascívia na pele. Bastaria ela atuar e dançar (como dizia Diderot) com a inteligência, e não com o coração. Mas como ela poderia dançar e atuar o cisne negro com a inteligência sem conhecer e entender o que ela precisa expressar?

Seja como for, quem acha que seu lado obscuro é feito de carnes trêmulas e cerveja deveria fazer um esforço sério para sair da infância. Nesse esforço, Nina e "Cisne Negro" seriam de bastante ajuda.

2) Homens e meninos, mesmo quando aspiram à perfeição, convivem razoavelmente bem com falhas e fracassos. É porque acreditam firmemente que, mesmo imperfeitos, eles nunca deixarão de ser tudo o que suas mães pediram a Deus.

Mulheres e meninas, ao contrário, sentem que, mesmo alcançando a perfeição, não serão o que suas mães pediram a Deus. A explicação clássica disso é que elas, pelo simples fato de serem mulheres, nunca preenchem a expectativa materna tanto quanto um filho varão. Paradoxo: as mulheres aspiram à perfeição mais do que os homens porque tentam merecer uma aprovação materna que é quase impossível.

Há uma outra explicação do sentimento feminino de não corresponder às expectativas maternas. Essa explicação, mais inquietante, diz que, para uma mãe, o triunfo de uma filha (profissional ou amoroso) sempre apresenta ao menos um defeito: o de não ser o triunfo dela mesma, da própria mãe.

A mãe de Nina espera que o sucesso da filha compense suas frustrações de bailarina que renunciou à carreira. Também acusa a filha de ser a causa dessa renúncia. Qual será o melhor bálsamo para a ferida: o sucesso ou o fracasso da filha?
Muito frequentemente, as mães rivalizam com as filhas. Essa rivalidade é especialmente óbvia e feroz quando, de um jeito ou de outro, oferecendo pelúcias ou preparando chazinhos, uma mãe tenta manter a filha parada numa eterna infância.

ccalligari@uol.com.br

03 março 2011

Grandes e pequenos desejos


Estamos tão acostumados a desejar pequeno que desejar grande nos parece ser uma patologia


OS ADOLESCENTES de hoje me parecem desejar de maneira tímida. Como já escrevi, surpreende-me que eles desejem pequeno.

De fato, poderia estender essa constatação aos adultos de hoje. Não que eles deixem de desejar (isso só acontece em raras depressões graves), mas há, aparentemente, uma preferência contemporânea generalizada pelos desejos pequenos. Cuidado: um desejo não é pequeno porque seu objeto seria pouco relevante.

Tomemos, por exemplo, "Maria está a fim de cerejas" e "Antônia quer o fim de todas as guerras". Será que o desejo de Antônia é grande e o de Maria pequeno? Nada disso.

Melhor nunca comparar desejos por sua suposta "nobreza" -até porque essa tal "nobreza" pode esconder motivações bem mais torpes do que uma saudável vontade de cerejas. Então, como diferenciar desejos grandes e pequenos?

Pois bem, há desejos fluidos, suscetíveis de infinitos deslizamentos, como se, de alguma forma, o objeto desejado fosse indiferente. Esses são desejos pequenos.

Por exemplo, estou a fim de uma calça nova. Entro na loja e o tamanho 39 está em falta. Olho ao redor de mim e acabo comprando duas camisas que não têm nada a ver com a calça que eu desejava.

Quero rever "Cisne Negro", mas a sessão está lotada; nenhum drama, compro ingresso para "Bruna Surfistinha" (incidentemente: me dei bem, amei o filme). Também posso querer o fim de todas as guerras e, ao ver na TV uma ação do Greenpeace, decidir que de agora em diante só me importa o destino das baleias. Nesse caso, por se revelar facilmente substituível, o fim de todas as guerras é um desejo pequeno.

Há um outro tipo de desejo, mais incômodo, que não admite a substituição. Quero circum-navegar a Terra de veleiro, quero vingar meu pai, quero produzir uma obra, construir um império, rezar em silêncio no deserto, comer cerejas a cada dia: se eles forem insubstituíveis, se sua insistência moldar nossa vida, esses desejos são grandes porque eles nos definem.

O desejo pequeno é ideal para uma sociedade que conta com o consumo para alimentar a produção e organizar as diferenças sociais. Desejos substituíveis garantem que a gente seja sempre levemente insatisfeito e levemente desejante, esvoaçando de objeto em objeto como uma abelha num campo de flores.

Quanto ao desejo grande, que já foi ideal dominante, ele é hoje raro na prática, mas (anúncio de uma mudança dos tempos?) a sedução que ele exerce está crescendo.

Como Mônica Waldvogel (no "Entre Aspas", da Globo News, na última quinta) e o crítico da Folha Inácio Araújo (na Ilustrada de domingo), reparei que a safra do Oscar deste ano é peculiar: quase todos os filmes indicados ilustram desejos grandes.

Estamos tão acostumados a desejar pequeno que desejar grande (e pagar o preço disso) nos parece ser um comportamento patológico (o cara enlouqueceu, está obcecado) ou, então, sinal de crise (os EUA devem estar muito mal se eles precisam idealizar esses heróis que desejam grande).

Penso o contrário: patológico é desejar pequeno. E, se os Estados Unidos estão gostando de heróis que sonham grande, talvez eles estejam saindo da futilidade dos anos 90: o sinal não seria de crise, mas de saída da crise.

Recentemente, vários leitores e leitoras me perguntaram por que não escrevi sobre "Cisne Negro", que (alguns notaram) é um prato cheio para um psicanalista. Pois é, amei o filme e concordo com a ideia do prato cheio, mas acontece que, no filme, o que me comoveu não foi tanto o desabrochar da loucura quanto o heroísmo do desejo de perfeição da protagonista -um desejo grande.

Falando em desejo grande, "Bruna Surfistinha", que estreou na última sexta, é outro exemplo. O filme de Marcus Baldini não é uma apologia nem uma crítica moralista da prostituição: é um filme sobre o difícil e tortuoso caminho de alguém que quis ser livre. É a história de um desejo grande.

DESPEDIDA
Quase na hora em que Moacyr Scliar estava nos deixando, alguém postou no Twitter uma frase minha: "A literatura é o catálogo das vidas possíveis". Pois bem, pensei, os escritores deveriam ter o direito de continuar vivendo em qualquer uma das histórias que estão sendo e serão escritas por outros até o fim dos tempos. Numa delas, um dia, aliás, espero me reencontrar com Moacyr, para rir, contar casos insólitos e evocar lembranças de Porto Alegre.