26 outubro 2000

As crianças do divórcio

De 31 de outubro a 4 de novembro, acontecerá em Curitiba o Congresso Internacional de Ética e Cidadania. Apresentarei um relatório sobre as mudanças na família contemporânea.

É um tema ideal para um encontro no qual dialogarão juristas e psicanalistas. Pois, no caso da família, é possível verificar como as mudanças jurídicas pesam na transformação de nossa subjetividade.

Começarei por 1969, quando, na Califórnia, aceitou-se que maridos e mulheres se divorciassem sem pretextar adultérios ou crueldades físicas e mentais. Os legisladores ratificaram, assim, a opinião da maioria. Claro, há casamentos em que os cônjuges traem a confiança recíproca ou passam o tempo se jogando louça na cabeça. Mas, pensavam os californianos, na maioria dos casos, isso não é necessário para querer se separar. Chega de ter que inventar amantes e manchas roxas para convencer o juiz.

A lei autorizou, então, que dois adultos casados pudessem separar-se, desde que um deles, sem dramas e culpas, simplesmente não estivesse mais a fim. Você sabe como é, o tempo passa, o amor se perde, as crianças gritam, os cabelos do parceiro embranquecem e a pessoa se pergunta: não será a hora de viver dias mais agradáveis?

A lei californiana conquistou rapidamente o resto dos Estados Unidos e do mundo. Ganhou até nos lugares onde se divorciar continuou sendo complicado. Pois, de qualquer forma, a lei californiana promoveu um novo padrão de racionalidade em matéria de casamento. Tornou-se banal considerar que é legítimo (ou seja, justo, mesmo se não for legal) separar-se, quebrar uma família, quando um dos dois ou os dois acham que o laço perdeu a graça.

Faz sentido. Tentar ser feliz é um direito moderno. Por que deixaríamos que o casamento infernizasse nossa vida? Com a facilidade dos divórcios, surgiu a pergunta: como as crianças lidarão com essa experiência?

A psicologia produziu uma série de afirmações apressadas. Sem verificar, assegurou que seria muito melhor para os filhos lidar com a separação dos pais que assistir às suas brigas cotidianas e à sua constante infelicidade. Geralmente, acrescentou que, por mais que seja doloroso, o divórcio, para a criança, seria uma crise passageira.

Essas idéias eram palavras para justificar uma prática social que corresponde aos desejos dos adultos. J.Wallerstein, J.Lewis e S.Blakeslee acabam de publicar "The Unexpected Legacy of Divorce" (A herança inesperada do divórcio, Hyperion, NY), em que pesquisam filhos e filhas de divorciados ao longo de 25 anos. Demonstram que, para as crianças, o divórcio não é uma crise passageira, mas acarreta consequências que incidem sobre a vida adulta. Salvo casos de violência explícita, as crianças são mais felizes com uma família que se mantenha unida, mesmo que seja de briga em briga.

No livro, o divórcio é culpado por todo tipo de sequela nas crianças, desde depressões severas até dificuldades tardias na vida sentimental e amorosa. Os fatos são convincentes, mas faz falta uma explicação mais satisfatória que a trivialidade segundo a qual o divórcio seria traumático por produzir abandono ou, no mínimo, negligência por parte dos pais -muito preocupados em refazer suas vidas.

Ora, numa recente emissão de rádio consagrada ao livro, um sujeito telefonou para comentar: "Pois é, concordo com tudo, mas será que os pais não têm direito de ser um pouco felizes?".
A pergunta manifesta qual foi a mudança subjetiva ratificada pela lei californiana e desde então adotada pela consciência moderna. Ela diz que o projeto de ser feliz é mais importante do que qualquer obrigação -inclusive a de criar as crianças no quadro de uma família. Os pais que se divorciam transmitem esta opção a seus rebentos, que se tornam, portanto, os arautos da nova disposição subjetiva, assim resumida: o que mais importa é se dar bem.

A mudança em questão explica muito do que nos estranha na conduta das crianças do divórcio e, por extensão, dos jovens. Pois, quer seus pais sejam divorciados quer não, todos os jovens pertencem hoje à (primeira) geração do divórcio. São filhos da época em que a única obrigação institucional que sobreviveu na modernidade -a da família- cedeu, enfim, diante do ditado: procure sua felicidade individual!

Não é o caso de moralizar sobre essa mudança institucional e subjetiva. Seria apenas um exercício de nostalgia estéril e um pouco hipócrita. As autoras do livro sugerem uma série de medidas terapêuticas e preventivas para ajudar as crianças do divórcio. São idéias para limitar os danos, pois é duvidoso que possamos resistir a uma mudança já incorporada por nossa cultura.

Muitas vezes nos queixamos, porque nossos rebentos se engajariam pouco em causas nobres, se drogariam mais, tentariam prosperar sem suar nenhuma camisa e outros lugares-comuns da besteira parental. De fato, os ditos rebentos respondem ao que lhes foi transmitido quando decidimos que nosso anseio de felicidade, conforto e prazer não deve recuar- nem mesmo pelo bem deles.

19 outubro 2000

Saudosa maloca

Na próxima semana, vou a Porto Alegre para participar do congresso "Brasil: Descoberta/Invenção". De novo, os 500 anos. Comemorei a fatídica semana de abril em Porto Seguro, na Conferência dos 500 Anos dos Povos Indígenas. As questões levantadas naqueles dias seguem comigo.

Estamos vivendo a Década Internacional dos Povos Indígenas. Ela terminará com a Declaração dos Direitos Indígenas, que será votada na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 2002.
Um primeiro esboço da declaração é conhecido desde 1994. O eixo é a idéia de que a autonomia política e econômica de um povo é essencial para que ele possa preservar sua cultura.

Faz sentido. Afinal, os povos indígenas mantidos sob tutela política e à força de subsídios sociais tornam-se quase sempre miseráveis caricaturas de si mesmos. Seus usos e costumes, sua cultura e seu artesanato se reduzem a uma pacotilha de suvenires para turistas ecológicos.
Aproveitando minha estada em Sydney no mês de setembro, mergulhei um pouco no debate local sobre o presente e o futuro dos aborígines. Li várias defesas do separatismo, propondo que os aborígines constituam uma nação e um Estado à parte. Todos os autores afirmam que uma comunidade de cultura implica a autonomia, a soberania e a autodeterminação de uma nação.

Alguns contam com a Declaração de 2002 para que a reivindicação indígena possa ser levada a uma corte internacional, onde seria apoiada pelas Nações Unidas (que sancionarão a declaração). Entende-se que essa perspectiva dê alguns calafrios no governo australiano. Os governos americano e brasileiro também não achariam muito engraçado.

Mas, por mais que essas propostas pareçam incômodas aos governos e às maiorias culturais ocidentais, elas se fundam numa premissa com a qual todos parecem hoje concordar. Até quem se opõe ao separatismo reconhece que uma cultura deve ser preservada por algum tipo de autonomia e soberania. Ora, esse acordo automático me inspira um certo mal-estar.

Pois aparece, assim, um paradoxo: as idéias que alimentam o projeto de separatismo ou autonomia indígenas são obviamente opostas à colonização cultural dos povos indígenas. Mas essas idéias encontram um acordo quase unânime justamente por serem a fina flor da própria cultura ocidental.

Explico: as idéias de autodeterminação e soberania do povo são invenções da filosofia das luzes, aqui adaptadas à idéia de que a uma cultura deva corresponder uma nação -que nasce com o romantismo alemão. Em suma, os princípios pelos quais nos parece bom que os indígenas se separem e se autogovernem não foram transmitidos pelos anciães das tribos. Eles são importados.

Isso não muda minha simpatia para com os movimentos aborígine ou indígena. Mas corta o embalo: é chato descobrir que nossas melhores intenções podem ser culturalmente tão colonizadoras quanto uma integração forçada.

Nesse campo, o cúmulo é representado por nosso desejo de preservar as culturas indígenas. O cuidado com a preservação do passado, de seus monumentos e vestígios é uma paixão muito recente -nasceu na segunda metade do século 19. Ora, nosso desejo de preservar as culturas indígenas nasce porque, por considerá-las (erroneamente) como primitivas, achamos que elas sejam um resto de nosso passado. Queremos guardá-las intatas não por generosidade, mas como um álbum de daguerreótipos de família.

É bem possível que, com o pretexto de preservar, queiramos de fato forçar a permanência de nossos "protegidos" numa espécie de presente imutável, feito para satisfazer apenas nosso anseio nostálgico.

Alguém poderia responder: "Tanto faz! Preservando, damos a índios e aborígines uma chance para que vivam segundo sua cultura". Mas os fatos dizem outra coisa: as políticas de preservação das quais parecemos capazes podem ser tão genocidas quanto uma conquista. É o que percebemos quando visitamos reservas indígenas pelo mundo afora.

Quanto mais somos modernos, ou seja, quanto mais nos definimos pelas potencialidades de nosso futuro, tanto mais sofremos de nostalgia. Adoramos a nostalgia, porque ela nos confirma na ilusão de que temos uma identidade, embora perdida. Graças à nostalgia, acreditamos ser alguma coisa a mais do que nossa agenda de amanhã. Por isso, para nos "reencontrar", frequentamos pousadas sem luz elétrica, tomamos chás "orgânicos" e, no mesmo estilo, protegemos reservas indígenas.

Não é um acidente se essa preservação regularmente avilta o que queremos preservar. Precisamos da imagem de um passado feliz. Mas precisamos também que, vista de perto, essa imagem seja um pouco repugnante. Sem isso, não poderíamos continuar correndo. Ou seja, os índios são sábios, vivem de acordo com a natureza etc. Mas damos um jeito para que a maloca da reserva, de fato, feda a álcool e a abandono.

Azar dos índios: além de ter sua terra conquistada, vieram ocupar um lugar desconfortável da psique moderna -onde são idealizados, sob a condição de se perder na miséria.

02 outubro 2000

Encerramento

De fato, as medalhas de ouro são de prata coberta de folhas de ouro -seis gramas por medalha.

O Brasil estava antevendo cinco medalhas de ouro. Assim, perdemos 30 gramas de metal precioso. Não vamos fazer drama. Há de se convir que não é muito -sobretudo comparando com o ouro que, nos séculos passados, deixou o Brasil a destino da Europa.

Brincadeira à parte, não sei mesmo se é para reagir ao pouco sucesso nesta Olimpíada. Há a tentação de esquecer e pensar em outras coisas, que inelutavelmente parecerão mais sérias. Nesse caso, adotaremos a seguinte versão: os brasileiros melhoraram suas colocações em uma série de especialidades (isso é verdade). Apenas faltou um pouco de sorte.

Mas talvez essa seja uma boa ocasião para inventar uma política de cuidados com o esporte de competição, para que as alegrias oferecidas pelas vitórias futuras ajudem a criar e valorizar a imagem de uma comunidade de destino. Impor respeito geralmente ajuda a se respeitar a si mesmo.

Em Montreal-1976, a Austrália teve uma de suas piores atuações: nenhum ouro, uma prata e quatro bronzes. Em 24 anos -três gerações de atletas- subiu ao quarto lugar na classificação das nações (atrás de EUA, Rússia e China).

Como isso aconteceu? Imediatamente depois de Montreal, foi fundado o Instituto Australiano do Esporte (AIS), com o intento de reunir em Canberra todos os melhores atletas australianos, oferecendo-lhes a possibilidade de viver e treinar juntos e de viajar seguidamente para fora do país, confrontando-se com adversários internacionais. O Instituto se associou às diferentes federações, criando um programa de identificação de talentos, pelo qual são reconhecidos precocemente os fenótipos de possíveis atletas. É só uma indicação.

Hora de concluir. A cerimônia de encerramento foi melhor do que a de abertura -cheia de humor e ironia. Mas senti um mal-estar quando moças vestidas de Grécia antiga, caminhando hieraticamente em câmera lenta para sugerir valores sagrados, vieram passar a bandeira olímpica para o prefeito de Atenas. A música de fundo era tão óbvia quanto a tentativa de criar alguma significação elevada para o evento.

Tudo bem, o ideal olímpico é bonito etc. Mas a semântica de elevador sempre cheira a manipulação. Se as Coréias estiverem unidas em 2004, quando a juventude do mundo competirá em Atenas, não será por ter desfilado juntas em Sydney. O desfile terá sido a ocasião de expressar um anseio. Só isso. E já é bastante.

Os bons sentimentos, quando encenados ostensivamente, ficam melequentos e dão vontade de voltar logo para o mundo real.

01 outubro 2000

Balanço olímpico

O primeiro-ministro australiano, John Howard, fez três observações que me chamaram a atenção.

A primeira tenta recuperar politicamente um sucesso esportivo. Howard não é muito favorável à autonomia dos aborígines e à idéia de compensações pelos abusos passados. Ele interpretou a vitória e a popularidade de Cathy Freeman como a prova de que a comunidade australiana estaria menos dividida do que dizem.

Para entender o alcance dessa declaração, imagine que, depois da bela conquista da prata no revezamento 4 x 100 m, FHC venha e declare que o Brasil está unido e solidário, pois quatro homens correram juntos até as estrelas.

Escutando esta primeira observação de Howard, quase fico contente que a campanha do Brasil seja um meio fracasso.

A segunda declaração do premiê é mais interessante. Segundo Howard, os australianos, a começar pela crianças, não praticam esporte quanto se esperaria. Isso parece estranho, pois é cômodo considerar os resultados olímpicos como uma consequência da difusão democrática do esporte. Ou seja, se todos pudessem nadar, jogar tênis, teríamos mais campeões. Na verdade, não é bem assim. Os países socialistas no passado simultaneamente democratizaram a prática do esporte e promoveram o esporte de competição. Mas as duas coisas não vão necessariamente juntas.

Uma piscina em cada escola não é suficiente para produzir dez Gustavo Borges e, entre eles, por fatalidade estatística, um Ian Thorpe. Para produzir atletas ainda é preciso um incentivo econômico, técnico e popular.

Aqui a coisa complica. Todos queremos uma piscina em cada escola. Mas não concordaríamos com a idéia de que seja também uma prioridade incentivar o esporte de competição para ganhar mais medalhas. Há coisas mais urgentes, você dirá com razão.

Mas considere o seguinte. Por que um grupo de fiéis se cotiza para construir uma igreja, quando cada um deles mal consegue pagar as contas do mês? É que, sem igreja, eles não constituiriam uma comunidade e cada um deles seria ainda mais derrelito no mundo. Por que organizar exposições e subvencionar as artes quando há famílias passando fome? Por que erigir monumentos quando ainda faltam casas? É que, sem tudo isso, os sem-teto ficariam também sem história, sem cultura e sem Brasil. A mesma lógica vale provavelmente para o esporte de competição.

Justamente, Howard -foi sua terceira observação- disse que os Jogos estavam sendo psicologicamente ótimos para a Austrália. Pois é, não gostaríamos de poder dizer o mesmo para o Brasil?