19 outubro 2000

Saudosa maloca

Na próxima semana, vou a Porto Alegre para participar do congresso "Brasil: Descoberta/Invenção". De novo, os 500 anos. Comemorei a fatídica semana de abril em Porto Seguro, na Conferência dos 500 Anos dos Povos Indígenas. As questões levantadas naqueles dias seguem comigo.

Estamos vivendo a Década Internacional dos Povos Indígenas. Ela terminará com a Declaração dos Direitos Indígenas, que será votada na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 2002.
Um primeiro esboço da declaração é conhecido desde 1994. O eixo é a idéia de que a autonomia política e econômica de um povo é essencial para que ele possa preservar sua cultura.

Faz sentido. Afinal, os povos indígenas mantidos sob tutela política e à força de subsídios sociais tornam-se quase sempre miseráveis caricaturas de si mesmos. Seus usos e costumes, sua cultura e seu artesanato se reduzem a uma pacotilha de suvenires para turistas ecológicos.
Aproveitando minha estada em Sydney no mês de setembro, mergulhei um pouco no debate local sobre o presente e o futuro dos aborígines. Li várias defesas do separatismo, propondo que os aborígines constituam uma nação e um Estado à parte. Todos os autores afirmam que uma comunidade de cultura implica a autonomia, a soberania e a autodeterminação de uma nação.

Alguns contam com a Declaração de 2002 para que a reivindicação indígena possa ser levada a uma corte internacional, onde seria apoiada pelas Nações Unidas (que sancionarão a declaração). Entende-se que essa perspectiva dê alguns calafrios no governo australiano. Os governos americano e brasileiro também não achariam muito engraçado.

Mas, por mais que essas propostas pareçam incômodas aos governos e às maiorias culturais ocidentais, elas se fundam numa premissa com a qual todos parecem hoje concordar. Até quem se opõe ao separatismo reconhece que uma cultura deve ser preservada por algum tipo de autonomia e soberania. Ora, esse acordo automático me inspira um certo mal-estar.

Pois aparece, assim, um paradoxo: as idéias que alimentam o projeto de separatismo ou autonomia indígenas são obviamente opostas à colonização cultural dos povos indígenas. Mas essas idéias encontram um acordo quase unânime justamente por serem a fina flor da própria cultura ocidental.

Explico: as idéias de autodeterminação e soberania do povo são invenções da filosofia das luzes, aqui adaptadas à idéia de que a uma cultura deva corresponder uma nação -que nasce com o romantismo alemão. Em suma, os princípios pelos quais nos parece bom que os indígenas se separem e se autogovernem não foram transmitidos pelos anciães das tribos. Eles são importados.

Isso não muda minha simpatia para com os movimentos aborígine ou indígena. Mas corta o embalo: é chato descobrir que nossas melhores intenções podem ser culturalmente tão colonizadoras quanto uma integração forçada.

Nesse campo, o cúmulo é representado por nosso desejo de preservar as culturas indígenas. O cuidado com a preservação do passado, de seus monumentos e vestígios é uma paixão muito recente -nasceu na segunda metade do século 19. Ora, nosso desejo de preservar as culturas indígenas nasce porque, por considerá-las (erroneamente) como primitivas, achamos que elas sejam um resto de nosso passado. Queremos guardá-las intatas não por generosidade, mas como um álbum de daguerreótipos de família.

É bem possível que, com o pretexto de preservar, queiramos de fato forçar a permanência de nossos "protegidos" numa espécie de presente imutável, feito para satisfazer apenas nosso anseio nostálgico.

Alguém poderia responder: "Tanto faz! Preservando, damos a índios e aborígines uma chance para que vivam segundo sua cultura". Mas os fatos dizem outra coisa: as políticas de preservação das quais parecemos capazes podem ser tão genocidas quanto uma conquista. É o que percebemos quando visitamos reservas indígenas pelo mundo afora.

Quanto mais somos modernos, ou seja, quanto mais nos definimos pelas potencialidades de nosso futuro, tanto mais sofremos de nostalgia. Adoramos a nostalgia, porque ela nos confirma na ilusão de que temos uma identidade, embora perdida. Graças à nostalgia, acreditamos ser alguma coisa a mais do que nossa agenda de amanhã. Por isso, para nos "reencontrar", frequentamos pousadas sem luz elétrica, tomamos chás "orgânicos" e, no mesmo estilo, protegemos reservas indígenas.

Não é um acidente se essa preservação regularmente avilta o que queremos preservar. Precisamos da imagem de um passado feliz. Mas precisamos também que, vista de perto, essa imagem seja um pouco repugnante. Sem isso, não poderíamos continuar correndo. Ou seja, os índios são sábios, vivem de acordo com a natureza etc. Mas damos um jeito para que a maloca da reserva, de fato, feda a álcool e a abandono.

Azar dos índios: além de ter sua terra conquistada, vieram ocupar um lugar desconfortável da psique moderna -onde são idealizados, sob a condição de se perder na miséria.

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