20 julho 1997

A invenção do clitóris

'O Anatomista' narra como Mateo Colombo descobriu o pequeno órgão feminino


Se você tiver o projeto de ler só um livro neste inverno, leia, então, "O Anatomista", de Federico Andahazi (Ed. Relume-Dumará, excelente tradução de P. Wacht e A. Roitman). Gostou de "O Nome da Rosa", de Umberto Eco? Adorará "O Anatomista". Acha "O Nome da Rosa" um pouco devagar, comprido demais e prefere o filme? Melhor ainda: "O Anatomista" é leve, rápido, ágil.
O livro chega ao Brasil já famoso, ajudado por um escândalo. Ganhou na Argentina o prêmio Fortabat. A senhora Fortabat não gostou da decisão do júri, pagou o prêmio, mas recusou-se a associar seu nome ao romance. Certo, o texto tem momentos eróticos, e supõe um papa, no século 16, satisfeito em recuperar a saúde graças ao sangue de meninas degoladas. De qualquer forma, a reação fortabatiana produziu um eco da própria história contada no romance, no qual o anatomista lida com censura e inquisição. Andahazi virou, assim, matéria do "New York Times", pulou para a lista dos mais vendidos na Argentina e seu livro foi comprado pela editora Doubleday por US$ 200 mil _recorde para uma obra sul-americana de autor estreante. O cinema já se interessa.

Mas, enfim, qual é a história? Trata-se de Mateo Realdo Colombo, anatomista italiano da Renascença que publicou em Veneza, em 1559 _ano presumido de sua morte_, um tratado de anatomia: "De Re Anatomica" (como informação: em todas as bibliografias, ele aparece como Realdo e não Mateo). O livro teve numerosas edições e foi influente. Colombo (que não era parente do navegador) entrou para história por uma intuição sobre a circulação do sangue e pela descoberta do clitóris: "O órgão que governa o amor nas mulheres". Armado dos poucos dados biográficos, Andahazi inventa e conta esta extraordinária aventura do anatomista italiano.
Antes de mais nada, a própria idéia de que haja uma descoberta do clitóris pode parecer estranha: como é possível que ela seja tão recente? Ou mesmo que venha a ser uma descoberta? Será que as próprias mulheres não conheceriam desde sempre seu corpo?

Todos nossos conhecimentos são sempre dirigidos por representações ideológicas. No caso, a obra anatômica de Realdo Colombo é um momento crucial na evolução de nossa representação do corpo: desde os gregos até o fim do século 18, a principal representação ocidental da diferença sexual é uma idéia de complementaridade. Mais exatamente, o sexo feminino é descrito, pensado e vivido como um sexo masculino virado para dentro (com a consequência de que a mulher é mais complementar do que o homem). A implicação desta representação é, por um lado, a tranquila familiaridade da diferença sexual: o outro sexo é só a luva revirada do nosso. Por outro lado, a representação situa o sexo feminino, evidentemente, como subalterno: a costela de Adão produziu o forro necessário para a espada.

Esta representação não é concebível como um "erro científico". O erro, aliás, seria pensar nossas representações, científicas ou comuns que sejam, como extravios em um suposto inexorável caminho da verdade. Esta é uma ilusão moderna: a idéia de que nossa ciência estaria acima dos tormentos da ideologia e, do alto de seu saber, olharia para trás, rindo de nossas passadas e primitivas convicções.

Um dos prazeres que o livro proporciona, aliás, consiste em descobrir representações que, colocadas na boca de Colombo, parecem ridículas. Por exemplo, a idéia de que _pela ausência de alma na mulher_ o sêmen feminino não poderia ser convertido em energia espiritual e, portanto, produziria doença se fosse retido dentro do corpo. Mas, voltando ao assunto, é verdade que, desde a representação da complementaridade dos sexos, houve uma mudança radical, embora progressiva: a descoberta da mulher como outro sexo, não complementar, mas diferente do masculino.

A bem dizer, não se trata tanto de uma descoberta, quanto de uma invenção. As representações que organizam nossa concepção do mundo _e, por consequência, nosso agir e nossas vidas_ sempre parecem ser "descobertas" conforme a realidade, pois, na verdade, a constituem. Por exemplo, na mesma época em que vagina era pênis revirado, a Terra era chata e não-redonda (astúcia da razão, foram dois Colombos que mudaram as duas idéias). O que importa não é saber se a Terra verdadeiramente é chata ou redonda: importa, ao contrário, entender como nossa relação com o mundo mudou com a ajuda da idéia de que a Terra é redonda. Ou seja, Colombo (o primeiro) talvez tenha descoberto que a Terra é redonda, mas, sobretudo, inventou uma nova relação do homem com o mundo.

Do mesmo jeito, Realdo Colombo inventou o clitóris para que o Ocidente pudesse começar a pensar a mulher como outra coisa além de um simples apêndice do homem. A obra-chave para reconstruir uma história das representações do corpo e do sexo é o livro de Thomas Laqueur, "Making Sex - Body and Gender from the Greeks to Freud" (Fazendo Sexo: Corpo e Gênero dos Gregos a Freud, Harvard University Press, 1990, que Andahazi, aliás, cita). Segundo Laqueur, a invenção de Realdo Colombo não teve efeitos imediatos. Foi necessário que se chegasse ao século 18 para que uma representação autônoma da mulher se impusesse.

De fato, no começo, a invenção do clitóris não levou ninguém a abandonar a idéia do forro. Alguns autores pareciam não se incomodar com a idéia de que, de repente, a mulher teria dois pênis: um, revirado, para o coito, e outro, pequeno, lá em cima, para o prazer. Provavelmente, o clitóris era tanto melhor assimilável pelos homens quanto mais ele era descrito como uma espécie de versão menor do pênis masculino. Afinal, tudo isso não colocava em perigo a supremacia de Adão. Ao contrário, podia transformar a mulher em uma espécie de hermafrodita. Com isso, os homens podiam dormir tranquilos. Não só a vagina é um pênis ao avesso, mas as mulheres também têm uma miniatura de pênis.

Pode-se duvidar, aliás, que, deste ponto de vista, a gente tenha progredido muito. Certo, desde o século 18 a mulher veio conquistando sua "paridade". Mas será que nossa visão de seu sexo mudou? As grandes representações, do receptáculo e do pequeno pênis meio atrofiado, continuam vivas, apesar dos inegáveis recentes efeitos do feminismo contemporâneo.
No entanto, mesmo antes disso, algo mudou (como aparece claramente em Freud, por exemplo): o sexo feminino, embora eventualmente representado ainda como versão segunda do masculino, tornou-se objeto de uma manifesta grande perplexidade. O que será que uma mulher quer? Como será que ela goza?

A representação contemporânea do sexo feminino é, por um lado, a mesma de sempre e, por outro lado, um fascinante mistério. É bem possível, aliás, que a representação do mistério seja mais uma estratégia masculina: nós temos um sexo, um gozo que se presume seja claro e definido, e vocês são misteriosas.

O que faz justamente o charme do romance de Andahazi é que, em seu relato, Realdo Colombo é um verdadeiro herói moderno. Pois, descobrindo o clitóris, ele, na verdade, não está tanto querendo reformar a anatomia, mas correndo atrás de um órgão que lhe daria, enfim, controle do gozo feminino e lhe permitiria "tocar uma mulher como um instrumento". O que o seduz é a possibilidade de fazer gozar qualquer mulher e _talvez mais importante ainda_ de fazê-la gozar de uma maneira familiar, como goza um homem, por exemplo.

O Colombo de Andahazi, entusiasmado pela descoberta, que faria com que as mulheres lhe obedecessem a dedo, no entanto, fracassa. Não diremos aqui como, pois só vale a pena levantar uma pergunta com a qual o leitor ficará de qualquer forma: o que é uma puta? É a mulher que ousa se entregar ou, então, aquela que não se entrega nunca? Os homens, aliás, não param de hesitar entre estas duas possibilidades, chamando de puta tanto a mulher fácil quanto aquela que a eles se nega.

Evidentemente, a homonímia dos dois Colombos, o da América e o do clitóris, inspirou Andahazi, assim como ela deve ter inspirado Realdo a se tornar descobridor. Andahazi, aliás, pretende que Realdo Colombo, em seu tratado, chame o clitóris, sua querida descoberta, de "oh, minha América, minha doce terra encontrada!".

De fato, li com cuidado o capítulo 16 do "De Re Anatomica" e não encontrei esta gloriosa metáfora. No entanto, esta frase é um verso de John Donne, escrito mais tarde, em uma famosa elegia para sua amada, cujo título é "Indo para Cama" (''Going to Bed''). Mesmo que a citação de Colombo seja inventada, ela é bem "trovata".

Na Renascença tardia, a América torna-se mesmo uma metáfora do desconhecido e, enfim, do corpo feminino. Também ela serve para entender a relação entre os dois Colombos. Pois se, entre as explicações do surgimento da modernidade ocidental, sempre são mencionadas as grandes descobertas geográficas, menos frequentemente é mencionada a revolução em matéria de amor que o século 13 e 14 acarretaram.

O único que viu esta relação não foi nem Weber nem Marx, mas Werner Sombart (seu monumental "O Capitalismo Moderno", publicado entre 1916 e 1923, merece ser lido e relido). Sombart entendeu que a liberdade de amar, ou seja, de escolher uma mulher segundo o amor, foi decisiva na constituição do mundo moderno. Pois implicou, por exemplo, que, para se tornar amável e seduzir, as condições de casta do amante não bastavam mais. Daí a necessidade de bens de luxo para se distinguir aos olhos da amada e para conquistá-la. Parece coisa de pouca importância, mas lembre-se que, em grande parte, a conquista da América inteira foi, sobretudo, uma grande procura de bens de luxo.

Resumindo: a procura de um mundo novo onde fazer glória e fortuna ou de onde trazer produtos que pudessem nos dar destaque se deu junto com a necessidade de responder aos recônditos desejos da mulher amada e de conseguir seduzi-la. Esta coincidência merecia dois Colombos.
Enfim: a modernidade incipiente é uma época de grande paixão anatômica. Pouco importa que esta atenção ao corpo humano estivesse ou não (deixemos a Inquisição decidir) a serviço da glória divina. De qualquer forma, o corpo começou a interessar quando o indivíduo veio percebendo que na vida podia e devia contar só consigo mesmo, com seu corpo individual, e não com a comunidade que já não lhe impunha mais seu destino. Daí a idéia de ver de perto o que havia por dentro da máquina. E, naturalmente, da parte sexual da máquina, pois as jóias do amor (sexuais e conjugais) também não eram mais garantidas pela instituição social, mas deviam ser procuradas pelo mundo afora. Colombo foi, então, um ilustre anatomista.

Ora, a Biblioteca de Medicina de Washington possui uma cópia da obra de Colombo em uma edição tardia, de 1593, feita em Frankfurt por P. Fisher. Nas páginas finais desta cópia _segundo o catálogo descritivo dos livros impressos antes de 1956 em bibliotecas americanas_, há várias anotações manuscritas. Uma, feita em Antuérpia, em 1596, com o título "De Coitu". Outra, também em Antuérpia e no mesmo ano, relata observações anatômicas (entenda-se: relatos de dissecação de cadáveres) feitas segundo as recomendações de Colombo. Estas notas são assinadas por um _acreditem se quiser_ doutor Franckenstayn (sic).

Eu quis, naturalmente, correr a Washington, perseguindo várias hipóteses. Primeiro, este exemplar único da obra de Colombo (com as anotações) poderia ter pertencido a Mary Wollenstonecraft Shelley, e dele ela teria tirado o nome do famoso médico romântico. A coisa poderia, aliás, estar documentada na Shelley's Room da Biblioteca Pública de Nova York.

Segundo, talvez a história mesma que ela conta tenha sido verdadeira e documentada nestas misteriosas anotações. Mas eu não tinha tempo. Quem sabe Andahazi retome o fio e nos dê, assim, uma nova história. De qualquer forma, há mesmo um fio entre a paixão anatômica da Renascença, a subsequente descoberta de Colombo e Frankenstein. São todos momentos da história do homem ocidental _obrigado, em troca de sua liberdade, a inventar a si mesmo a partir do próprio corpo.