30 dezembro 2004

Afeto e família

Um pouco antes do Natal, o presidente Lula anunciou a campanha que o governo planeja para o ano que vem.

Em 2004, foi promovida a idéia de que "O Melhor do Brasil É o Brasileiro", o qual não desiste nunca.
A campanha de 2005 se propõe a corrigir a "falta de afeto" e a "desagregação da estrutura familiar".

Difícil desaprovar, não é? Quem ousaria sugerir que a gente seja mais frio, distante ou cínico, em suma, menos "afetivo"? Ou que criemos nossos filhos sem lar, num mundo celibatário desprovido de pernis e árvores de Natal?

Mas não deixa de ser curioso que logo um governo brasileiro proponha uma campanha em favor de afeto e família. Estamos quase no septuagésimo aniversário de "Raízes do Brasil". Nesse livro seminal da sociologia brasileira, Sérgio Buarque de Holanda mostra como, no Brasil, afeto e família prevaleceram sobre espírito cívico e sentimento de cidadania. Conseqüência: uma tradição política clientelar e paternalista, dominada pelo princípio "para os amigos e os parentes, tudo; para os outros, inimigos e estranhos, o rigor da lei". Com efeito, família e afeto são os valores centrais de qualquer gestão mafiosa do poder (releia ou reveja "O Poderoso Chefão").
Como fica, então? No Brasil, família e afeto fazem falta ou abundam e transbordam, invadindo o campo da vida pública?

Cuidado, não sou contra a família nem contra os afetos. Mas prefiro desconfiar das ideologias, sobretudo quando são objetos de campanhas.

As ideologias, promovidas de maneira abstrata, estabelecem parentescos desagradáveis. Por exemplo, a idéia de que afeto e família nos ajudariam a combater o cinismo do mercado é simpática, mas a mesma idéia poderia ter sido a bandeira do ruralismo moralizador e assassino que, em 1975, levou Pol Pot a exterminar os cidadãos de Phnom Penh. Ou que animou a cólera de Deus (não foi seu melhor momento) na hora de destruir Sodoma e Gomorra.

É mais prudente (um resto de marxismo não dói) considerar que as ideologias são concretas: seu valor não é absoluto (tipo: "a família é um bem em si"), mas varia segundo a conjuntura política. Ora, acontece que, hoje, o mundo ocidental vive uma época de revalorização dos afetos do lar. É possível subir nesse bonde, mas é útil lembrar-se de que, a essa altura, ele já carrega outros passageiros: Tradição-Família-Propriedade ocupa um assento no fundo e, bem na frente, estão sentados George Bush e seus fundamentalistas evangélicos.

No meu campo de trabalho constato o seguinte: nos anos 60 e 70, a psiquiatria, a psicologia e, em geral, a cultura criticavam a família como berço da loucura. Em 68, o primeiro filme de Ken Loach, "Family Life", foi um verdadeiro ato de acusação contra a família. Em 1970, Laing e Esterson publicaram "Sanity, Madness and the Family" (saúde mental, loucura e a família). A família era a grande responsável pela repetição dolorosa do mesmo e da mesmice, uma jaula em que se debatiam os anseios e os desejos de mudança, em particular os dos jovens.

Durante os anos 70, historiadores e sociólogos, inspirados no ensino de Michel Foucault, descreveram a família como um refinado instrumento de domínio: o "sistema" se reproduzia delegando a tarefa de subjugar os corpos e as almas à família, única instituição capaz de controlar a vida cotidiana ("La Politique des Familles", de Jacques Donzelot, é de 77).

Naquelas décadas, na saúde mental, vivia-se uma contradição aguda: tratava-se de fechar os asilos e, portanto, era necessário devolver os pacientes aos cuidados de suas famílias. Mas as famílias apareciam como o caldo em que se originava o sofrimento dos pacientes. O que fazer?

Hoje, a cena mudou. Na bibliografia recente, há muito pouco sobre a família como produtora de loucura. Em compensação, abundam os manuais para que a família, valorizada e devidamente instruída, possa se tornar a terapeuta de seus membros doentes.

Estávamos certos em 1970? Ou estamos certos agora? Um pouco dos dois.

A família é um sistema de controle e repressão. Como mostrou Freud, em regra, educamos nossos filhos como nossos avós teriam gostado de educar nossos pais: haja conservadorismo. Além disso, a família é um emaranhado de amores, ódios e invejas capazes de enlouquecer a muitos. Mas a família é também um amparo sem o qual seríamos indivíduos perfeitamente isolados, conformes ao figurino de nossa cultura, mas desesperados e provavelmente incapazes de viver em sociedade.

Então, família sim? Ou família não? Alternativa furada. Aliás, as palavras de ordem extremas e jacobinas seriam sempre ridículas, se não fossem perigosas. É o caso de "Morte à família!", que, nos anos 70, presidia à miséria de experiências comunitárias em que os filhos eram criados coletivamente, sem que fosse reconhecida sua ascendência paterna. E é também o caso do apelo à família como se fosse a única fonte de valores, apelo que anima os ideólogos da direita americana e agora, aparentemente, os da esquerda brasileira.

Moral da história: não discordo da campanha anunciada, mas gostaria que, na hora de pegar um bonde andando, a gente fosse menos ingênuo.

23 dezembro 2004

Sentimentos mais ou menos natalinos

É Natal: espera-se que a gente se abarrote, festeje em família e, naturalmente, compre e ofereça presentes. Também é esperado que sejamos generosos. A onda sazonal de bons sentimentos pode parecer hipócrita: um momento anual de altruísmo para resgatar o esquecimento do resto do tempo. Tanto faz, melhor no Natal do que nunca.

Mas cuidado: para o ideal da generosidade natalina, distribuir panetones, por exemplo, é ótimo, mas não é suficiente. Confira o repertório das histórias de Natal: o espírito desta época do ano supõe que a gente enxergue os outros, ou seja, reconheça que, antes de serem necessitados, eles são nossos semelhantes.

No Natal ideal, não basta jogar dinheiro pelo vidro do carro entreaberto, olhando para a frente. No Natal ideal, quem tenta chamar a nossa atenção, do outro lado do insulfilme, deve nos aparecer como um dos nossos.

Em princípio, reconhecer que todos os outros são nossos semelhantes, por diferentes que sejam suas condições de vida, não deveria custar esforço nenhum. É um pacto fundamental de nossa cultura: pressupomos a humanidade comum de todos, não obstante a diversidade.

Esse pacto nos leva a calçar um pouco os sapatos do outro, e a compaixão evita que os únicos árbitros de nossa vida social sejam o rigor da lei ou a violência. Se o vizinho abaixa seu som antes das 22h, é porque, embora não sejamos convidados à sua festa, ele reconhece que somos tão humanos quanto ele; ou seja, ele "sabe" o que significa estar triste, cansado ou mesmo, simplesmente, a fim de ouvir uma música diferente da que está berrando pelo seu alto-falante naquele dia.

Almoço quase sempre na rua. Com freqüência, leio e escrevo numa mesa de bar, na calçada. Há os engraxates que me propõem seus serviços e, como eu recuso, pedem um pão de queijo; há o sem-teto da esquina que quer comprar cigarros; há aqueles que chegam com longas e confusas histórias de ônibus para voltar para o Norte ou de remédios para a mãe doente. Que eu possa ou não oferecer ajuda naquele dia, que acredite ou não na história que me é contada, de qualquer forma, escuto, olho, troco palavras. Nenhum mérito nisso; não é uma decisão moral, apenas o efeito de minha voracidade: não quero perder nada da variedade da vida. Gosto das pessoas, porque sempre me reconheço (ao menos em parte) na diversidade dos destinos. Nisso, sou apenas, banalmente, moderno.

Você poderia pensar que essa coluna é uma exortação natalina a enxergar os miseráveis ao redor de nós. Digo, enxergá-los nos encontros concretos, em que a pobreza e o desamparo têm rosto e revelam uma humanidade parecida com a nossa.

Agüente mais um pouco, pois não se trata exatamente disso.

No sábado passado, à noite, sentei-me a uma mesa na calçada de uma sorveteria paulistana. No meio de meu sorvete, recebi um telefonema inesperado e triste; alguém, de muito longe, me trazia notícias difíceis. Eu escutava com os ombros para a frente, como um boxeador fechando a guarda. Durante essa conversa tensa, percebi que alguém parava na minha frente e ouvi uma voz feminina: "Moooçô, me dá um trocado?". Estranhei; parecia-me impossível que minha interlocutora não percebesse meu estado. Continuei na minha. De novo: "Moooçô, me dá um trocado?". Levantei o rosto: era uma jovem mulher com uma criança no colo. Ela encontrou meu olhar, mas não me viu. E, na lengalenga mecânica de quem acha chato ter que repetir, insistiu: "Moooçô, o trocado?".

Não sei nem quero saber se sua necessidade do momento era ou não mais importante do que o desamparo em que me deixava minha conversa telefônica. De toda maneira, era intolerável constatar que ela não me enxergava. Os sinais de meu estado de espírito não a atingiam. Para ela, eu era tão abstrato quanto são abstratos os pedintes no farol para os motoristas que os ignoram e os afastam com um gesto, como se fossem moscas.

O bairro Cinco, em que eu morava nos anos 70, em Paris, era o xodó dos moradores de rua por causa da concentração de restaurantes baratos para uma clientela "progressista". Quando saía de casa, sempre havia alguém para pedir um franco. As palavras que me eram endereçadas, mesmo que fossem proferidas nas brumas do álcool, afirmavam primeiro nossa humanidade comum. Caso eu estivesse de cara fechada, diziam assim: "Quelque chose qui va pas, mon vieux? O que foi, algo que não está dando certo?".

As diferenças eram extremas. Não era raro que os moradores de rua do bairro Cinco comessem ração para gato ou para cachorro. Mas aquela pequena troca discursiva afirmava que, apesar das diferenças, a gente estava num barco comum. Eles não renunciavam à sua humanidade, porque me declaravam que reconheciam a minha.

Ora, algo em nosso tecido social deve estar mais doente do que imaginamos ou do que eu imagino. Pois parece que, nos dois extremos das diferenças sociais, se manifesta uma mesma capacidade de não enxergar a humanidade do outro.

Sem o amparo do sentimento de uma humanidade comum, não há convivência possível entre diferenças. Apenas a promessa de um extermínio recíproco.

Sem ironia, feliz Natal a todos.

16 dezembro 2004

Negros brasileiros

Em 1840, a fotografia chegou ao Brasil. Foi um sucesso imediato, graças, em particular, à paixão pelas inovações científicas do futuro d. Pedro 2º, que encomendou um aparelho e incentivou a nova arte.

Portanto muitos fotógrafos documentaram o Brasil do século 19. Alguns, brasileiros ou viajantes, se interessaram em retratar os negros: as imagens exóticas de escravos do campo ou de ganho vendiam bem na Europa. E houve os que fotografavam corpos africanos para pesquisas antropométricas sobre as diferenças raciais. Outros trabalhavam para a Justiça e o arquivo dos condenados. E por aí vai.

"O Negro na Fotografia Brasileira do Século 19", de George Ermakoff, é um livro cativante. Uma vez o volume fechado, a galeria de rostos não sai da memória.

As mulheres foram humilhadas tanto quanto os homens. Há, por exemplo, o retrato de uma ama-de-leite sendo cavalgada pela filha dos donos. Claro, todos fomos um dia o cavalinho de nossos filhos, mas, no caso, a cena é uma metáfora intolerável. Resta que os retratos femininos são menos consternadores que os masculinos. O olhar das escravas é vivo: em cada uma delas reconhecemos imediatamente um semelhante.

Os homens, ao contrário, olham para nós como peixes à venda no mercado. Seu olhar não nos alcança, é opaco, perdido. Nunca encontrei um zumbi, mas aposto que, se encontrasse um, seu olhar seria esse. E entendo, pela primeira vez, por que o nome do herói de Palmares é certeiro: zumbi, o cadáver que anda.

Na página 121 do livro, está o duplo retrato de um único escravo, "com e sem chapéu". Nas duas poses, o modelo se mantém idêntico, com a mesma fixidade molhada e cega dos olhos; o chapéu rígido de feltro (coisa de branco) não o transforma nem um pouco. Ele é um gancho, no qual alguém, casualmente, pendurou o chapéu ao entrar em casa.

Imaginemos que fosse o chapéu de Alberto Henschel, o fotógrafo. Em Henschel, o dito chapéu devia produzir algum efeito, designar seu usuário como senhoril, dizer sua classe social ou, no mínimo, sua obediência ou não às regras da elegância da época. No escravo, o chapéu não pega. Nele, os apetrechos que qualificam socialmente não produzem efeito nenhum, porque falta substrato: um chapéu pode valorizar e enobrecer um cidadão, mas não um cabide.

Mas por que o olhar das mulheres retratadas é mais vivo? Por que as escravas parecem ser menos devastadas pela escravidão do que os homens?

Primeiro, porque há um valor social que é indissociável do corpo feminino, quase um efeito de sua fisiologia: a capacidade de procriar e de ser mãe. As amas-de-leite podem ser escravas, mas sua função lhes atribui uma dignidade simbólica que as ampara, que impede que elas sejam só peitos. E há mais, talvez a própria concupiscência dos donos salvasse as escravas: "Perdi clã, família, tribo e nome, sou vendida e comprada, mas meu corpo não pode ser apenas uma massa de carne, deve valer algo mais se os donos se insinuam na senzala procurando meus favores".

Ora, para os homens, qual poderia ser o remédio contra a perda de clã, tribo, nome e dignidade simbólica?

Há fotografias, no livro, que falam da tentativa frustrada de dar algum valor à paródia de uma dignidade perdida. Vestidos de trajes supostamente africanos (págs. 126 e 127, por exemplo), os escravos se tornam farsantes de seu próprio passado para satisfazer o gosto dos donos pelo exotismo. Aqui o escárnio se acrescenta à perda.

Mas há um outro caminho pelo qual, de fato, os homens escravos reencontraram algum valor social. Diz assim: "Se minha dignidade é negada, se me torno apenas um corpo, sobra-me a possibilidade de encontrar uma fonte de valor justamente neste corpo, que é o que me resta".
Não é por acaso que, nos países com um passado escravagista (ou brutalmente colonial), existe e insiste a fantasia da excepcional prestança física e sexual do escravo ou do colonizado. É, por exemplo, o garanhão árabe na França ou o negro tarado e superdotado nos EUA.

Na pág. 239 do livro, está um dos raros retratos em que o olhar do escravo contém uma inesperada faísca de provocação, talvez de revolta contida. Curiosamente, a braguilha do jovem está entreaberta.

O homem que é reduzido a seu corpo pela escravidão encontra a proposta de resgatar sua dignidade social pela valorização mítica de seu corpo como força da natureza e simulacro do sexo. A apoteose desse mito está na moda hoje nos EUA: é o jogador de basquete negro processado pelo estupro de suas tietes.

A convivência racial, após a escravatura, é atravessada por uma fantasia em que "ex-escravos" atléticos e hipersexuados se cruzam com "ex-donos" que guardaram para si a dignidade simbólica, mas ficaram com corpos franzinos e um pouco "broxas". É uma espécie de versão sexy da dialética hegeliana do mestre e do escravo.

Estou exagerando? Nada disso vale para o Brasil? Pode ser, mas olhe só: na terça-feira de manhã, no bate-papo de sexo de um grande provedor nacional de internet, havia 18 salas abertas por assinantes. Entre elas, bem cheias: "Negros F... Gays" e "Brancas na Senzala".

09 dezembro 2004

A receita de Mario Tatini

Acaba de ser lançado "A Receita de Mario Tatini".
O livro, ágil e prazeroso, foi escrito por Teresa Cristófani Barreto a partir dos depoimentos de Mario e da família. Conta a saga dos Tatini, originários de Florença, cujo patriarca, Fabrizio, chegou ao Brasil em 1953. E, em particular, conta a história de Mario, que veio meio a contragosto, em 54, trazendo nas malas dois fogareiros. Ele ajudou o pai a lançar a cantina Don Fabrizio, em Santos; em 58, fundou o famoso Don Fabrizio, em São Paulo; cozinhou ao vivo semanalmente nas redes de televisão dos anos 60 e, desde o começo dos 80, anima o restaurante Tatini, na rua Batataes.

É claro, o leitor descobre, enfim, o segredo do "Fettuccine à Don", mas isso não é o essencial: o livro é tocante por outras razões.

Primeiro, é a história de uma imigração recente, da última onda (se é que foi uma onda), aquela dos que não vieram para substituir a mão de obra escrava e, portanto, logo puderam praticar os dons tradicionais do imigrante: a coragem e a vontade de arregaçar as mangas e de contribuir à vida do novo país.

Nestes dias, celebrando a memória de Celso Furtado, voltei a ler alguns de seus escritos. Ocorreu-me que o destino do Brasil teria sido melhor se a onda que trouxe Mario Tatini não tivesse sido a última ou quase.

A imigração é inimiga da concepção (herdada do saque colonial) pela qual a riqueza de uma nação consiste nos produtos que é possível extrair de suas vísceras e de seus campos (do pau-brasil ao café, passando pelos diamantes e pela cana). O imigrante, que traz seus braços, aposta, ao contrário, na idéia de que a riqueza de uma nação vem do trabalho de seus cidadãos.

Se essa idéia tivesse prevalecido nos últimos 50 anos, talvez o país tivesse conseguido, nas palavras de Celso Furtado, "se voltar para dentro", ou seja, crescer distribuindo a renda e fomentando a demanda interna. Por quê? Pois bem, se a riqueza é um bolo doado por Deus ou pela natureza, fechemos as fronteiras e sejamos poucos na hora de dividir. E tanto melhor para quem tem a faca na mão e decide as porções. A coisa muda se o bolo parece depender dos esforços culinários de todos e da multiplicação dos doceiros.

A história dos Tatini me toca também porque é a história de vidas dedicadas à arte de preparar os alimentos e servi-los com graça. Certo, eles contribuíram bastante para que São Paulo se tornasse um grande pólo gastronômico. Mas há mais. Durante anos, viajei muito. Passei meu tempo em lugares que permaneciam um pouco estrangeiros, por eu estar sozinho, sem minha mulher e os filhos, com quem compartilhar a alegria de sujar panelas e pratos. Ora, quando o lar nos faz falta, não tem nada que valha um restaurante onde a gente se sinta em casa. Reciprocamente, que a gente se sinta em casa talvez seja o sinal de um verdadeiro restaurante.

Ora, o livro é repleto de anedotas divertidas. Juscelino, por exemplo, tirava os sapatos embaixo da mesa na hora de comer e não usava meias. Mas considere sobretudo as histórias do casal que brigou a tapas, da mulher abandonada que queria que alguém a levasse para um hotel ou a das duas senhoras um pouco bêbadas que começaram a se beijar ardentemente. Não são casos estranhos. No restaurante, é fácil esquecer os limites entre espaço público e espaço privado, pois trata-se do lugar público que celebra o âmago da intimidade: a mesa. E sinto para quem pensa que esse âmago seja a cama: uma família acaba quando ela não se reúne mais ao redor de uma mesa, não quando marido e mulher não se deitam mais juntos.

Não sei o que anima os que dedicam a vida a "restaurar" os outros, mas uma lembrança me ajuda a pensar. Quando eu morava em Paris, um dos meus amigos mais queridos era Jean Bergès, psicanalista e psiquiatra, que, aliás, poucos meses atrás, teve a péssima idéia de me deixar aqui na Terra sem sua companhia. Quase a cada noite, Jean convidava amigos e conhecidos para jantar na sua casa. Cardápio fixo: "foie gras" de ganso, fraldinha na chapa malpassada, salada verde, um camembert bem maduro, sorvete de fruta, pão rústico e vinho de Cahors, sua região de origem.

Tanto Jean quanto Marika, sua mulher, terminavam de atender tarde e, na França, nada de empregados para pôr a mesa, preparar os alimentos e servir.

Um dia, perguntei a Jean onde ele achava a paixão necessária. Respondeu: "Nós (os psicanalistas) passamos o dia escutando queixas e oferecendo em troca palavras. Nem sonhamos em poder dar a nossos pacientes algo que os faça felizes. Oferecer uma boa comida é minha compensação. Enfim, proporciono aos outros uma verdadeira satisfação". Os convidados reagiam à altura: o prazer de receber uma boa comida talvez seja o mais antigo de todos, aquele que mais nos faz sentir amados e benquistos, ou seja, como disse, "em casa".

Agora, se você visitar o restaurante de Mario, eis um prato que não está no cardápio: berinjela à italiana (não à siciliana, que é com queijo). São fatias de berinjela ao forno, com tomate fresco, fragmentos de "alici", azeite de oliva e, obviamente, algo mais, que ele não revela.

02 dezembro 2004

Uma condição básica para uma polícia eficiente



Na quinta passada, participei do seminário "Violência, Desafios e Ações", organizado por José Gregori. Durante um dia, ao redor de uma mesa, sem púlpito e sem público, duas dezenas de pessoas de formação variada expuseram e discutiram propostas.

A reunião era motivada por esta constatação: a falta de segurança está entre as pragas que mais estragam nossa vida, mas, apesar disso, ela não parece ser o objeto de planos de ação orgânicos. É raro que ocupe um lugar de verdadeiro destaque nas propostas de governo.

O debate foi extremamente proveitoso, e a iniciativa dará seus frutos. Entretanto, há uma observação que levei para a mesa e que quero repetir aqui.

É banal acusar a mídia, sobretudo a televisão e o cinema, de glamourizar a violência. Embora não haja pesquisas sérias que estabeleçam uma relação direta entre os mortos nas telas e os mortos na rua, pede-se uma censura ou autocensura, com a idéia de que narrativas ou notícias menos violentas inspirariam comportamentos menos belicosos (sobretudo aos jovens).

Ora, não acredito que forma nenhuma de censura seja benéfica. Mas reconheço que os ideais sociais dependem muito de nossa cultura de massa. Então fazer o quê? Pois bem, o truque não é retirar, é acrescentar. Explico.

Quando era criança (logo depois da Segunda Guerra Mundial), havia duas grandes brincadeiras para os meninos: alemães-americanos e polícia-ladrão. No primeiro caso, a gente queria ser americano; no segundo, queria ser polícia. Quando nos tocava ser alemão ou bandido, brincávamos com uma certa resignação, pois era implícito que, no fim, alemães e bandidos seriam derrotados, presos ou mortos.

É provável que brincar de polícia-ladrão não esteja mais na moda. Mas, se nossos filhos quisessem brincar assim, com quem se identificariam?

Do lado dos bandidos, não lhes seria difícil encontrar material: fugas mirabolantes, riquezas fáceis, jovens como eles exibindo suas armas e aterrorizando os adultos, destinos trágicos muito mais interessantes que a escola e as aulas de piano ou de inglês.

E do lado da polícia? Se eles têm televisão a cabo, conhecem "Starsky e Hutch", "Maigret", "Law and Order", "The Shield" e por aí vai. Se gostam de ler, conhecem Mike Hammer, Sherlock Holmes, Hercule Poirot etc.

Você reparou? Para um menino brasileiro que queira brincar de polícia-ladrão, os bandidos podem ser brasileiros, mas a polícia é americana, inglesa, francesa, alemã, enfim, tudo salvo brasileira.

A cultura nacional propõe um vasto repertório de malfeitores. É normal: uma sociedade individualista idealiza a transgressão, por conseqüência, ela nunca deixa de ser fascinada por seus delinqüentes. Nisso, a cultura brasileira não está sozinha. Mas é estranho que ela não proponha o contraponto: um repertório de guardiões da ordem (policiais ou detetives particulares) que excitem o imaginário da gente ao menos tanto quanto os malfeitores.

Não se trata, portanto, de indignar-se porque, sei lá, "Cidade de Deus" transformaria delinqüentes em protagonistas de uma história que pode seduzir o jovem espectador. Trata-se, isso sim, de estranhar que o mesmo espectador não tenha a chance de ser seduzido pelas histórias de quem combate o crime.

Alguém observará que não poderia ser diferente, visto que, na sociedade brasileira, o policial está longe de constituir uma imagem de sucesso social. Se seu filho expressar o desejo de se tornar policial, você, pai ou mãe de classe média, como reagirá?

Mas a pobreza da remuneração não é uma causa, é um corolário. Uma cultura que não consegue romancear a polícia não tem como cuidar para que ser policial implique um status razoavelmente digno. A sociedade organizada por essa cultura, obviamente, não consegue se dotar de uma polícia à altura de sua tarefa.

As razões por essa falha cultural são conhecidas além da conta (inconsistência do pacto social, modernização sem a inclusão de todos e por aí vai), mas não justificam nenhuma resignação.
No caso, em vez de deplorar os efeitos nefastos da cultura de massa, poderíamos utilizar seu poder. Por que a TV não nos proporia um (ou vários) "Law and Order" e "Starsky e Hutch" brasileiros? Por que o cinema nacional não nos proporia as histórias de policiais da Brigada, da Civil, da Federal ou da Municipal? E de procuradores?

E, por favor, não só a denúncia das miseráveis condições das forças da ordem. Nem da corrupção que as espreita porque, excluídas da classe média, parecem ser convidadas a pagar-se saqueando. Precisamos de histórias pelas quais ser policial seja, em todos os sentidos, uma profissão "legal".

Pois isto é certo: teremos polícia no dia em que não será ridículo nem vergonhoso que um menino sonhe em ser policial brasileiro.

Até agora, na cultura nacional, só conheço um exemplo de policial que dá vontade de ser policial. É o delegado Espinosa dos romances de Luiz Alfredo Garcia-Rosa, os quais têm um único defeito: são poucos.