Acaba de ser lançado "A Receita de Mario Tatini".
O livro, ágil e prazeroso, foi escrito por Teresa Cristófani Barreto a partir dos depoimentos de Mario e da família. Conta a saga dos Tatini, originários de Florença, cujo patriarca, Fabrizio, chegou ao Brasil em 1953. E, em particular, conta a história de Mario, que veio meio a contragosto, em 54, trazendo nas malas dois fogareiros. Ele ajudou o pai a lançar a cantina Don Fabrizio, em Santos; em 58, fundou o famoso Don Fabrizio, em São Paulo; cozinhou ao vivo semanalmente nas redes de televisão dos anos 60 e, desde o começo dos 80, anima o restaurante Tatini, na rua Batataes.
É claro, o leitor descobre, enfim, o segredo do "Fettuccine à Don", mas isso não é o essencial: o livro é tocante por outras razões.
Primeiro, é a história de uma imigração recente, da última onda (se é que foi uma onda), aquela dos que não vieram para substituir a mão de obra escrava e, portanto, logo puderam praticar os dons tradicionais do imigrante: a coragem e a vontade de arregaçar as mangas e de contribuir à vida do novo país.
Nestes dias, celebrando a memória de Celso Furtado, voltei a ler alguns de seus escritos. Ocorreu-me que o destino do Brasil teria sido melhor se a onda que trouxe Mario Tatini não tivesse sido a última ou quase.
A imigração é inimiga da concepção (herdada do saque colonial) pela qual a riqueza de uma nação consiste nos produtos que é possível extrair de suas vísceras e de seus campos (do pau-brasil ao café, passando pelos diamantes e pela cana). O imigrante, que traz seus braços, aposta, ao contrário, na idéia de que a riqueza de uma nação vem do trabalho de seus cidadãos.
Se essa idéia tivesse prevalecido nos últimos 50 anos, talvez o país tivesse conseguido, nas palavras de Celso Furtado, "se voltar para dentro", ou seja, crescer distribuindo a renda e fomentando a demanda interna. Por quê? Pois bem, se a riqueza é um bolo doado por Deus ou pela natureza, fechemos as fronteiras e sejamos poucos na hora de dividir. E tanto melhor para quem tem a faca na mão e decide as porções. A coisa muda se o bolo parece depender dos esforços culinários de todos e da multiplicação dos doceiros.
A história dos Tatini me toca também porque é a história de vidas dedicadas à arte de preparar os alimentos e servi-los com graça. Certo, eles contribuíram bastante para que São Paulo se tornasse um grande pólo gastronômico. Mas há mais. Durante anos, viajei muito. Passei meu tempo em lugares que permaneciam um pouco estrangeiros, por eu estar sozinho, sem minha mulher e os filhos, com quem compartilhar a alegria de sujar panelas e pratos. Ora, quando o lar nos faz falta, não tem nada que valha um restaurante onde a gente se sinta em casa. Reciprocamente, que a gente se sinta em casa talvez seja o sinal de um verdadeiro restaurante.
Ora, o livro é repleto de anedotas divertidas. Juscelino, por exemplo, tirava os sapatos embaixo da mesa na hora de comer e não usava meias. Mas considere sobretudo as histórias do casal que brigou a tapas, da mulher abandonada que queria que alguém a levasse para um hotel ou a das duas senhoras um pouco bêbadas que começaram a se beijar ardentemente. Não são casos estranhos. No restaurante, é fácil esquecer os limites entre espaço público e espaço privado, pois trata-se do lugar público que celebra o âmago da intimidade: a mesa. E sinto para quem pensa que esse âmago seja a cama: uma família acaba quando ela não se reúne mais ao redor de uma mesa, não quando marido e mulher não se deitam mais juntos.
Não sei o que anima os que dedicam a vida a "restaurar" os outros, mas uma lembrança me ajuda a pensar. Quando eu morava em Paris, um dos meus amigos mais queridos era Jean Bergès, psicanalista e psiquiatra, que, aliás, poucos meses atrás, teve a péssima idéia de me deixar aqui na Terra sem sua companhia. Quase a cada noite, Jean convidava amigos e conhecidos para jantar na sua casa. Cardápio fixo: "foie gras" de ganso, fraldinha na chapa malpassada, salada verde, um camembert bem maduro, sorvete de fruta, pão rústico e vinho de Cahors, sua região de origem.
Tanto Jean quanto Marika, sua mulher, terminavam de atender tarde e, na França, nada de empregados para pôr a mesa, preparar os alimentos e servir.
Um dia, perguntei a Jean onde ele achava a paixão necessária. Respondeu: "Nós (os psicanalistas) passamos o dia escutando queixas e oferecendo em troca palavras. Nem sonhamos em poder dar a nossos pacientes algo que os faça felizes. Oferecer uma boa comida é minha compensação. Enfim, proporciono aos outros uma verdadeira satisfação". Os convidados reagiam à altura: o prazer de receber uma boa comida talvez seja o mais antigo de todos, aquele que mais nos faz sentir amados e benquistos, ou seja, como disse, "em casa".
Agora, se você visitar o restaurante de Mario, eis um prato que não está no cardápio: berinjela à italiana (não à siciliana, que é com queijo). São fatias de berinjela ao forno, com tomate fresco, fragmentos de "alici", azeite de oliva e, obviamente, algo mais, que ele não revela.
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