É Natal: espera-se que a gente se abarrote, festeje em família e, naturalmente, compre e ofereça presentes. Também é esperado que sejamos generosos. A onda sazonal de bons sentimentos pode parecer hipócrita: um momento anual de altruísmo para resgatar o esquecimento do resto do tempo. Tanto faz, melhor no Natal do que nunca.
Mas cuidado: para o ideal da generosidade natalina, distribuir panetones, por exemplo, é ótimo, mas não é suficiente. Confira o repertório das histórias de Natal: o espírito desta época do ano supõe que a gente enxergue os outros, ou seja, reconheça que, antes de serem necessitados, eles são nossos semelhantes.
No Natal ideal, não basta jogar dinheiro pelo vidro do carro entreaberto, olhando para a frente. No Natal ideal, quem tenta chamar a nossa atenção, do outro lado do insulfilme, deve nos aparecer como um dos nossos.
Em princípio, reconhecer que todos os outros são nossos semelhantes, por diferentes que sejam suas condições de vida, não deveria custar esforço nenhum. É um pacto fundamental de nossa cultura: pressupomos a humanidade comum de todos, não obstante a diversidade.
Esse pacto nos leva a calçar um pouco os sapatos do outro, e a compaixão evita que os únicos árbitros de nossa vida social sejam o rigor da lei ou a violência. Se o vizinho abaixa seu som antes das 22h, é porque, embora não sejamos convidados à sua festa, ele reconhece que somos tão humanos quanto ele; ou seja, ele "sabe" o que significa estar triste, cansado ou mesmo, simplesmente, a fim de ouvir uma música diferente da que está berrando pelo seu alto-falante naquele dia.
Almoço quase sempre na rua. Com freqüência, leio e escrevo numa mesa de bar, na calçada. Há os engraxates que me propõem seus serviços e, como eu recuso, pedem um pão de queijo; há o sem-teto da esquina que quer comprar cigarros; há aqueles que chegam com longas e confusas histórias de ônibus para voltar para o Norte ou de remédios para a mãe doente. Que eu possa ou não oferecer ajuda naquele dia, que acredite ou não na história que me é contada, de qualquer forma, escuto, olho, troco palavras. Nenhum mérito nisso; não é uma decisão moral, apenas o efeito de minha voracidade: não quero perder nada da variedade da vida. Gosto das pessoas, porque sempre me reconheço (ao menos em parte) na diversidade dos destinos. Nisso, sou apenas, banalmente, moderno.
Você poderia pensar que essa coluna é uma exortação natalina a enxergar os miseráveis ao redor de nós. Digo, enxergá-los nos encontros concretos, em que a pobreza e o desamparo têm rosto e revelam uma humanidade parecida com a nossa.
Agüente mais um pouco, pois não se trata exatamente disso.
No sábado passado, à noite, sentei-me a uma mesa na calçada de uma sorveteria paulistana. No meio de meu sorvete, recebi um telefonema inesperado e triste; alguém, de muito longe, me trazia notícias difíceis. Eu escutava com os ombros para a frente, como um boxeador fechando a guarda. Durante essa conversa tensa, percebi que alguém parava na minha frente e ouvi uma voz feminina: "Moooçô, me dá um trocado?". Estranhei; parecia-me impossível que minha interlocutora não percebesse meu estado. Continuei na minha. De novo: "Moooçô, me dá um trocado?". Levantei o rosto: era uma jovem mulher com uma criança no colo. Ela encontrou meu olhar, mas não me viu. E, na lengalenga mecânica de quem acha chato ter que repetir, insistiu: "Moooçô, o trocado?".
Não sei nem quero saber se sua necessidade do momento era ou não mais importante do que o desamparo em que me deixava minha conversa telefônica. De toda maneira, era intolerável constatar que ela não me enxergava. Os sinais de meu estado de espírito não a atingiam. Para ela, eu era tão abstrato quanto são abstratos os pedintes no farol para os motoristas que os ignoram e os afastam com um gesto, como se fossem moscas.
O bairro Cinco, em que eu morava nos anos 70, em Paris, era o xodó dos moradores de rua por causa da concentração de restaurantes baratos para uma clientela "progressista". Quando saía de casa, sempre havia alguém para pedir um franco. As palavras que me eram endereçadas, mesmo que fossem proferidas nas brumas do álcool, afirmavam primeiro nossa humanidade comum. Caso eu estivesse de cara fechada, diziam assim: "Quelque chose qui va pas, mon vieux? O que foi, algo que não está dando certo?".
As diferenças eram extremas. Não era raro que os moradores de rua do bairro Cinco comessem ração para gato ou para cachorro. Mas aquela pequena troca discursiva afirmava que, apesar das diferenças, a gente estava num barco comum. Eles não renunciavam à sua humanidade, porque me declaravam que reconheciam a minha.
Ora, algo em nosso tecido social deve estar mais doente do que imaginamos ou do que eu imagino. Pois parece que, nos dois extremos das diferenças sociais, se manifesta uma mesma capacidade de não enxergar a humanidade do outro.
Sem o amparo do sentimento de uma humanidade comum, não há convivência possível entre diferenças. Apenas a promessa de um extermínio recíproco.
Sem ironia, feliz Natal a todos.
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