31 maio 2007

Vidas bem vividas


Há vidas que despertam o aplauso. Elas merecem ser contadas, pois foram vividas sem medo

N A SEMANA passada, o teatro da Federação do Comércio do Estado de São Paulo mudou de nome. Chama-se agora teatro Raul Cortez.

Na realidade, a mudança já tinha acontecido na estréia da peça que está atualmente em cartaz no teatro, "Às Favas com os Escrúpulos", uma comédia de Juca de Oliveira, com a direção de Jô Soares e uma imperdível Bibi Ferreira. Ninguém melhor que um ator como Jô Soares para dirigir uma grande atriz, para deixá-la livre de dizer tanto (e de ser irresistivelmente engraçada) com uma atuação quase pudica. (Aparte. Atua também na peça Adriane Galisteu, que é sempre julgada como se o fato de ser apresentadora e modelo fosse um handicap; pois é, ela está ótima).
Enfim, na estréia da peça, na sexta retrasada, antes que começasse o espetáculo, foi projetado um breve filme de lembranças de Raul Cortez, que morreu há pouco menos de um ano, aos 73. No fim do filme, a gente aplaudiu longamente. Logo depois, aplaudimos a entrada em cena de Bibi Ferreira.

No meu caso (e imagino que fosse assim para muitos outros na platéia), não se tratava apenas do aplauso elogioso pela maestria da atriz -esse, obviamente, veio no fim da peça. As palmas iniciais me lembraram as que talvez ainda acolham, a cada noite, a aparição de Paulo Autran na cena do "Avarento": um aplauso que parece ser de agradecimento. Pelo quê? Não sei se Diderot (no "Paradoxo sobre o Comediante") tinha razão ou não. Pode ser que, como ele propunha, o ator seja um intelectual frio que silencia e controla suas paixões para estudar as expressões do sentimento humano a fim de reproduzi-lo. Pode ser que, ao contrário, o ator se esgote a cada vez, vivendo intensamente emoções que ele não imita, mas das quais ele se apropria.

Tanto faz. É provável que não haja regra, e a coisa dependa do ator, do papel e do momento. De qualquer forma, o ator se esgota ou se controla para nos oferecer o espetáculo da diversidade e da complexidade de paixões que são as nossas e que, sem o ator, não saberíamos reconhecer. O ator, de uma maneira ou de outra, revela-nos a nós mesmos. E podemos lhe ser gratos por isso.
Mas há mais. Talvez, o aplauso suscitado pelo breve filme sobre Raul Cortez tivesse também outra significação, igualmente presente no aplauso da entrada em cena de Bibi Ferreira ou de Paulo Autran -os quais, claro, estão bem vivos entre nós (e se espera que assim continuem por muito tempo), mas numa idade que encoraja a avaliação do caminho que eles percorreram. Talvez trate-se, nesses casos, do aplauso por uma vida bem vivida.

Por que, às vezes, estou a fim de aplaudir uma vida? Esse tipo de aplauso não expressa apenas a gratidão e o elogio reservados a quem se dedicou generosamente aos outros nem o encômio destinado a quem deixou no mundo uma obra ou uma marca duradouras. Tampouco estou a fim de aplaudir porque uma vida me parece ter alcançado uma forma qualquer de bom êxito material ou espiritual.

Tudo isso, claro, pode alimentar minha admiração, mas o aplauso, justamente por seu caráter teatral, é desencadeado por algo mais, algo que aparecia no pequeno filme sobre Raul Cortez e que poderia ser resumido assim: aquela vida vale a pena ser contada.

Não é fácil definir o que faz que uma vida tenha essa qualidade estética ou poética que lhe dá, por assim dizer, a grandeza e a dignidade de um romance. Não é a felicidade nem o sucesso, nem o caráter extraordinário dos eventos; uma vida pode ser uma série de fracassos, mancadas e tristezas, pode também ser trivial e, no entanto, valer a pena ser contada.

Talvez a qualidade poética de uma vida que desperta o aplauso esteja na sensação de que seu protagonista foi animado por uma obstinada fidelidade ao desejo: seja qual for a distribuição das cartas pelo acaso ou pelo destino, ele jogou bem porque jogou sem medo de jogar. Na hora de nos despedir de alguém que nos é querido, choramos nossa perda, e é normal que seja assim. Mas deveríamos festejar, quando der, a "beleza" de sua vida. E chorar, quando for o caso, as vidas que se perdem não pela morte, mas pela morte-em-vida -as vidas, em suma, dos que não conseguiram ser atores de suas próprias vidas.

Esta coluna é escrita em homenagem a Octavio Frias de Oliveira, com quem, infelizmente, ao longo destes anos, apenas cruzei. Mas fiquei um tempo lendo a história de sua vida.

17 maio 2007

Devaneios papais



Faz tempo que, em vez de um discurso moral, católicos ouvem litanias em defesa da "doutrina"

NA VISITA do papa, aconteceu o que era previsto: o trânsito de São Paulo piorou, frei Galvão virou santo, o pontífice estigmatizou o aborto, o divórcio, o "hedonismo" contemporâneo, o marxismo, o capitalismo, as "seitas", as "religiões pré-colombianas" etc.

A surpresa foi o comportamento do presidente Lula e do ministro da Saúde, José Temporão: ambos foram perfeitos, defendendo a laicidade do Estado a que eles servem. Lula, o cidadão, poderia beijar o anel do papa; Lula, o presidente, não podia e não o fez. Temporão evitou o debate moral sobre o aborto e lembrou que se trata, para ele e para o governo, de um problema de saúde pública.

Sem diminuir o mérito de ambos, a tarefa do presidente e do ministro foi facilitada pela trivialidade do desempenho papal.

Escutei e li as falas do pontífice ao longo destes dias com um tédio crescente: nunca fui surpreendido por uma daquelas marcas de tormento, de conflito e de contradição que são, para mim (e não só para mim), os indicadores mínimos de uma disposição moral diante da complexidade do mundo. As exortações papais eram circulares administrativas, tão previsíveis e preestabelecidas quanto as preces do rosário. Ora, o rosário pode agradar a Deus e ajudar aos que, na devoção, não encontram suas próprias palavras, mas, certamente, a repetição das contas não estabelece a autoridade moral de ninguém.

Em sua primeira visita papal ao Brasil e à América, o papa passou a noite no mosteiro de São Bento, no centro de São Paulo. Não há lugar melhor para refletir sobre a estranha história que, em poucos séculos, transformou uma aldeia indígena num acampamento bandeirante e, enfim, numa das maiores metrópoles do mundo. Em vez de preocupar-se com o hábito adolescente de "ficar" (êta questão insossa para suplemento de domingo em falta de pauta), o papa poderia ter confiado nos jovens e adotado as mil perguntas "ingênuas", profundas e perplexas que justamente passariam pela cabeça de qualquer adolescente ao transcorrer uma noite no mosteiro (por mais que, nas festas, ele "fique"): perguntas sobre o que foi ganho e o que foi perdido, sobre o que é a América, sobre o rumo de nossa história, sobre a dificuldade de dizer onde estiveram (e estão) o bem e o mal. Mas, pelo que o papa manifestou da experiência das noites passadas no mosteiro, ele deve ter dormido mesmo.

Além de repetir as palavras de sempre sobre a santidade da vida desde o embrião, o papa, por uma vez, poderia ter pensado numa jovem estuprada ou numa mulher (devidamente casada) incapaz de alimentar seus três, quatro ou cinco filhos, ambas batendo os dentes pela dor e pela infecção que já começa, na clínica improvisada de um abortista apressado.

Quem sabe, sem desistir de seus princípios, ele pudesse se perguntar onde estaria, naquela hora, o Cristo dos evangelhos: só na porta, desdenhoso, jogando anátemas, ou também (sem contradição) ao lado das mulheres, secando seu suor e falando palavras de conforto?

Da mesma forma, não sei se o Cristo dos evangelhos, passeando por nossas bandas nos anos 80 (numa ficção à la Dostoievski), teria distribuído camisinhas na entrada de uma sauna gay ou seringas descartáveis nos becos preferidos pelos heroinômanos. Talvez não, mas imagino que ele teria estado ao lado dos moribundos nas mil enfermarias, pelo mundo afora, em que os médicos não sabiam o que fazer. Também imagino que, nesta ocasião, o Cristo teria meditado sobre o coquetel de liberdade (sem a qual os atos não valeriam nada), desamparo, razão e impulsos que é a condição humana.

Como notaram Fernando de Barros e Silva, Fernando Rodrigues e Sérgio Costa na Folha de segunda, faz tempo que os católicos não ouvem um discurso moral que não seja apenas a litania abstrata do que parece recomendável para a defesa da doutrina e a perpetuação da Igreja como instituição.

Eu esperava o quê? Um blablablá de tolerância modernosa? Não; apenas um discurso cuja origem fosse, reconhecidamente, aquele lugar íntimo, dividido e complicado ao qual cada um de nós recorre na hora de tomar as decisões que importam.

Alguém dirá que, justamente, o papa não fala desse lugar. Ele não é um homem, é o papa - prova disso, ele é infalível.

Pode ser, mas, talvez seja por isso mesmo que o papa tenha passado, falado, e nada tenha acontecido.

Um desperdício.

10 maio 2007

Ajudar é difícil

O que fazer para ajudar um vira-lata desconfiado que queira atravessar, à noite, a av. Sapopemba?

NUMA MADRUGADA recente, entre sexta e sábado, levei um amigo para sua casa na zona leste de São Paulo. No fim, às duas da manhã, encontrei-me estacionado na avenida Sapopemba, na frente do terminal rodoviário, só que do outro lado, no sentido centro-bairro. Chovia uma chuva de inverno, fina e contínua.

Naquela altura da avenida, há dois barzinhos com samba ao vivo e, ao lado, uma carrocinha de churrasco.

Na calçada, por causa da chuva, só havia dois bêbados idosos que festejavam balançando precariamente.

No meu retrovisor esquerdo, apareceu, entre os carros estacionados atrás de mim, um vira-lata preto e magro, com a pata anterior direita quebrada. Ele tentava atravessar a avenida. Aventurava-se, mancando, na pista, mas, assustado pelos faróis dos carros que chegavam rápidos e sem interrupção, ele recuava precipitadamente. Duas vezes seguidas, fechei os olhos, imaginando que o cachorro seria esmagado. Mas ele conseguiu voltar atrás a tempo.

O que havia do outro lado da avenida que o levava a tentar aquela travessia suicida? Talvez um restaurante amigo que deixa os restos para os vira-latas, talvez uns amigos ou uma cadelinha com a qual ele sonhava. O fato é que ele queria atravessar.

Eu não tinha guarda-chuva. Melhor assim: os vira-latas desconfiam de qualquer objeto que se pareça com um bastão. Desci do carro e chamei sua atenção: "Pssss, cachorro". Olhou para mim, perplexo: "O que este idiota quer de mim?".

Se tentasse parar o trânsito para ele atravessar, acabaríamos ambos esmagados. Ou talvez só eu, o que tampouco seria um desfecho ideal.

Usar meu cinto como uma coleira e ajudá-lo a atravessar parecia uma boa idéia, só que, antes que conseguisse prendê-lo, ele me morderia, com razão. Ganhar sua confiança para que aceitasse atravessar caminhando do meu lado, como faziam meus cachorros, levaria um mês de treino.

Decidi criar uma diversão que o convencesse a ficar deste lado da avenida. "Cachorro, vem cá", chamei. E fui me aproximando da carrocinha do churrasco, fazendo o necessário para que ele não me perdesse de vista. Os dois bêbados deviam achar que estava mais bêbado do que eles. Nesta altura, o cachorro mantinha uma distância prudente, mas estava interessado e tinha desistido de atravessar.

Comprei dois espetinhos, agachei-me e dispus um primeiro pedaço de carne sobre um guardanapo de papel, no chão. Recuei, agachado, para que ele se sentisse seguro e avançasse para abocanhar a carne. Avancei para servir o segundo pedaço, e ele recuou. Ficamos nessa coreografia, ele para trás, eu para frente e inversamente, até o fim dos pedaços que tirei dos espetos. Estiquei minha mão esquerda.

Desta vez, ele avançou e cheirou minha mão. A articulação da pata quebrada era literalmente virada no sentido errado. Não tentei acariciá-lo, algo me dizia que ele acharia meu gesto abusivo, agressivo.

Poderia ligar para uma colega psicóloga que se ocupa da zoonose nos animais de rua. Mas, se ligasse, às duas da manhã, por esta "urgência" na avenida Sapopemba, ela se preocuparia mais comigo do que com o cachorro; além disso, o que ela poderia fazer que não destinasse o cachorro a uma morte que ele certamente não estava pedindo?

E se eu levasse o cachorro para casa? Talvez um veterinário conseguisse endireitar sua pata. Talvez nos tornássemos bons amigos. Mas quem diz que o cachorro quisesse se tornar um enfeite doméstico? E eu ia fazer o quê com todos os próximos cachorros que encontraria no meu caminho? Fundar um abrigo?

Disse: "Cachorro, não atravessa agora, entendeu? Fica deste lado, que é melhor". Subi no carro e saí lentamente, de olho no retrovisor para ver se meu amigo voltava ou não às suas tentativas perigosas de atravessar a avenida. Avancei até o retorno e tomei o caminho do centro. Ao passar de novo na frente da rodoviária, cruzei os dedos, esperando que ele não estivesse morto no meio da pista. Não estava. Não o vi mais.

No longo caminho de volta, liguei a calefação ao máximo para secar minha roupa e meus ossos encharcados. Estava com a sensação de ter protagonizado uma espécie de frustrante parábola sobre a dificuldade de ajudar o próximo.

Tudo bem, daqui alguns dias, não vai sobrar nada daquela noite. Só esta coluna e, no meu carro, o cheiro deixado pelo longo trajeto com minha roupa úmida, um cheiro de cachorro molhado.

03 maio 2007

"O Sol se Põe em São Paulo"

O barulho de fundo da metrópole americana é o burburinho de mil histórias engasgadas

O ÚLTIMO romance de Bernardo Carvalho, "O Sol se Põe em São Paulo" (Companhia das Letras), começa com a fotografia de Antônio Gaudério que se estende por capa e contracapa: é uma visão de São Paulo coberta por uma nuvem que, ao mesmo tempo, oprime e engrandece a cidade (como se sua existência fosse um desafio).

Logo, acontece o seguinte: num restaurante do bairro da Liberdade, a senhora japonesa que está no caixa pede a um cliente (o narrador) que ele escute e escreva a história de sua vida no Japão. A maior parte dos fatos narrados acontece, portanto, no Império do Sol Levante, uma parcela do qual veio se pôr em São Paulo.

Os romances de Bernardo Carvalho ("Nove Noites", "Mongólia") são janelas sobre universos distantes.

Ler é um pouco como alistar-se na marinha: a gente viaja e vê o mundo.

Desta vez, não é diferente: o leitor descobre um Japão sutil, contraditório e inesperado. No entanto, para mim, o tema do livro não é o Japão, é São Paulo ou qualquer metrópole das Américas, do Norte ou do Sul.

Raramente, aliás, um romance me pareceu captar de maneira tão comovedora a essência da metrópole americana.

Nos primeiros dias depois da leitura, jantando com amigos nos restaurantes de sushi da Liberdade, tornei-me um péssimo comensal. Os amigos conversavam, e eu não prestava atenção, ficava olhando (discretamente) para a mulher atrás do caixa do restaurante. Era japonesa? Nissei, sansei? Onde (nela, nos pais ou nos avós?) e como teria acontecido ou estaria acontecendo o choque da imigração? De qual história de seu passado ou dos ascendentes ela seria a depositária silenciosa?

Amo as metrópoles americanas (do Norte ou do Sul, dá na mesma) por elas serem os bancos de areia onde jazem, respirando a duras penas, os sonhos de milhões de homens e mulheres, como baleias encalhadas.

Não esqueço meus passeios, em tardes de verão dos anos 60, pelas ruas do Queens, do Brooklyn ou do Bronx: sentados em cadeiras de plástico ou nos degraus que levam à porta dos edifícios, com uma cerveja gelada ou um sorvete na mão, lá estavam os representantes ou os restos de fantasias de uma vida melhor, mais livre, mais rica e mais feliz. Da Ásia, da África, da América Central ou do Sul, da Europa, seus pais, avós, bisavós ou seus ascendentes longínquos tinham fugido a miséria, a opressão, a perseguição ou simplesmente o tédio e seguido um sonho de glória, paz, liberdade, bem-estar e riqueza. Para outros, descendentes de escravos, no lugar do sonho, devia estar o pesadelo do rapto, do cativério e do transporte forçado (com a obrigação de inventar novos sonhos, de zero).

Essas fantasias (frustradas ou realizadas) assim como os pesadelos de quem foi trazido à força são, antes de mais nada, histórias que raramente são contadas. Talvez esta seja uma condição necessária da América, um preço implicitamente cobrado na entrada: um esquecimento da vida antes da viagem, do trajeto, da ruptura e também dos sonhos (bons ou ruins, conscientes e inconscientes) que decidiram ou acompanharam a viagem.

O barulho de fundo da metrópole americana, aquele murmúrio indefinível que você escuta sempre, quando abre a janela, mesmo de madrugada, não é o dos carros que ainda circulam, da atividade da cidade "que nunca dorme"; talvez seja o burburinho de milhões de histórias engasgadas, que tentam se dizer e não conseguem.

Em suma, o sol levante de Setsuko, a protagonista de Bernardo Carvalho, não é o único que se põe em São Paulo e nas outras metrópoles americanas.

Há uma estranha proximidade entre o trabalho do terapeuta e o do escritor (talvez fosse melhor dizer escriba), que tem a incumbência de escutar, talvez decriptar (ou, por que não, inventar) as histórias que os outros são impedidos de contar.

Um dia, ainda escreverei um ensaio intitulado "O Terapeuta Americano" - imitando o empreendimento de Ralph Waldo Emerson quando escreveu "The American Scholar" para mostrar a especificidade da condição do intelectual americano (nos "Ensaios", Martin Claret).
A idéia central será, sem dúvida, que, nas Américas, não há acesso verdadeiro à subjetividade sem abrir as malas de quem veio, ou seja, sem reconstruir a vida pregressa e a história dos sonhos, da tragédia ou da agonia da emigração (a do sujeito ou a de seus ascendentes que emigraram).