17 maio 2007

Devaneios papais



Faz tempo que, em vez de um discurso moral, católicos ouvem litanias em defesa da "doutrina"

NA VISITA do papa, aconteceu o que era previsto: o trânsito de São Paulo piorou, frei Galvão virou santo, o pontífice estigmatizou o aborto, o divórcio, o "hedonismo" contemporâneo, o marxismo, o capitalismo, as "seitas", as "religiões pré-colombianas" etc.

A surpresa foi o comportamento do presidente Lula e do ministro da Saúde, José Temporão: ambos foram perfeitos, defendendo a laicidade do Estado a que eles servem. Lula, o cidadão, poderia beijar o anel do papa; Lula, o presidente, não podia e não o fez. Temporão evitou o debate moral sobre o aborto e lembrou que se trata, para ele e para o governo, de um problema de saúde pública.

Sem diminuir o mérito de ambos, a tarefa do presidente e do ministro foi facilitada pela trivialidade do desempenho papal.

Escutei e li as falas do pontífice ao longo destes dias com um tédio crescente: nunca fui surpreendido por uma daquelas marcas de tormento, de conflito e de contradição que são, para mim (e não só para mim), os indicadores mínimos de uma disposição moral diante da complexidade do mundo. As exortações papais eram circulares administrativas, tão previsíveis e preestabelecidas quanto as preces do rosário. Ora, o rosário pode agradar a Deus e ajudar aos que, na devoção, não encontram suas próprias palavras, mas, certamente, a repetição das contas não estabelece a autoridade moral de ninguém.

Em sua primeira visita papal ao Brasil e à América, o papa passou a noite no mosteiro de São Bento, no centro de São Paulo. Não há lugar melhor para refletir sobre a estranha história que, em poucos séculos, transformou uma aldeia indígena num acampamento bandeirante e, enfim, numa das maiores metrópoles do mundo. Em vez de preocupar-se com o hábito adolescente de "ficar" (êta questão insossa para suplemento de domingo em falta de pauta), o papa poderia ter confiado nos jovens e adotado as mil perguntas "ingênuas", profundas e perplexas que justamente passariam pela cabeça de qualquer adolescente ao transcorrer uma noite no mosteiro (por mais que, nas festas, ele "fique"): perguntas sobre o que foi ganho e o que foi perdido, sobre o que é a América, sobre o rumo de nossa história, sobre a dificuldade de dizer onde estiveram (e estão) o bem e o mal. Mas, pelo que o papa manifestou da experiência das noites passadas no mosteiro, ele deve ter dormido mesmo.

Além de repetir as palavras de sempre sobre a santidade da vida desde o embrião, o papa, por uma vez, poderia ter pensado numa jovem estuprada ou numa mulher (devidamente casada) incapaz de alimentar seus três, quatro ou cinco filhos, ambas batendo os dentes pela dor e pela infecção que já começa, na clínica improvisada de um abortista apressado.

Quem sabe, sem desistir de seus princípios, ele pudesse se perguntar onde estaria, naquela hora, o Cristo dos evangelhos: só na porta, desdenhoso, jogando anátemas, ou também (sem contradição) ao lado das mulheres, secando seu suor e falando palavras de conforto?

Da mesma forma, não sei se o Cristo dos evangelhos, passeando por nossas bandas nos anos 80 (numa ficção à la Dostoievski), teria distribuído camisinhas na entrada de uma sauna gay ou seringas descartáveis nos becos preferidos pelos heroinômanos. Talvez não, mas imagino que ele teria estado ao lado dos moribundos nas mil enfermarias, pelo mundo afora, em que os médicos não sabiam o que fazer. Também imagino que, nesta ocasião, o Cristo teria meditado sobre o coquetel de liberdade (sem a qual os atos não valeriam nada), desamparo, razão e impulsos que é a condição humana.

Como notaram Fernando de Barros e Silva, Fernando Rodrigues e Sérgio Costa na Folha de segunda, faz tempo que os católicos não ouvem um discurso moral que não seja apenas a litania abstrata do que parece recomendável para a defesa da doutrina e a perpetuação da Igreja como instituição.

Eu esperava o quê? Um blablablá de tolerância modernosa? Não; apenas um discurso cuja origem fosse, reconhecidamente, aquele lugar íntimo, dividido e complicado ao qual cada um de nós recorre na hora de tomar as decisões que importam.

Alguém dirá que, justamente, o papa não fala desse lugar. Ele não é um homem, é o papa - prova disso, ele é infalível.

Pode ser, mas, talvez seja por isso mesmo que o papa tenha passado, falado, e nada tenha acontecido.

Um desperdício.

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