22 fevereiro 2001

O genoma e a auto-estima da espécie



A prendemos que o genoma humano contém por volta de 30 mil genes. Muito menos do que era previsto. Geneticamente, temos bastante em comum com o verme, não somos muito diferentes do rato e somos quase idênticos aos primatas.

Por isso, num jantar em Cambridge, alguém comentava que, para defender a especificidade humana, deveríamos colocar nossa esperança não nos genes, mas nas proteínas que produzimos -as quais seriam bem diferentes das do rato e das verme. Nessa altura, outro comensal interveio: "Falando em proteínas -disse- , estou patenteando um novo suplemento protéico que vai fazer sucesso...". A observação era inoportuna e babaca.

Mas cheguei à conclusão de que o comensal apenas reagiu do jeito que nossa cultura preconiza. Explico-me. As descobertas sobre o genoma parecem constituir uma derrota para nossa sensação de sermos especiais, únicos ou simplesmente importantes. Desde o começo da modernidade, nossa auto-estima leva uma punição atrás da outra.

Primeiro, houve Copérnico e Galileu. Até então, os humanos pensavam estar no centro do universo e da criação. O Sol e as galáxias davam voltas ao redor da Terra. Tudo existia só para que eles pudessem ser testados aos olhos de Deus.

De repente, descobriu-se que era a Terra que dava voltas ao redor do Sol. E isso na confusa periferia de um Universo sem forma. Inicialmente a igreja não gostou porque a coisa era contrária às Escrituras e à tradição. Mas ela deveria também se preocupar com o estado de espírito dos fiéis: como lidariam com a notícia de que eles talvez não fossem o único motivo da criação? Essa preocupação era desnecessária.

Os humanos saíram do enrolo tornando-se modernos. Eles perderam o interesse exclusivo por Deus e pela harmonia do Universo? Pois bem, fizeram um rápido luto e decidiram que eles mesmos seriam, desde então, a fonte do conhecimento, da sabedoria e do sentido das coisas e do mundo.

Três séculos mais tarde, Freud mostrou que nossas palavras mais sábias e nossas intenções explícitas eram dominadas por uma entidade que nos determina e que não controlamos direito: o inconsciente. Era outra revolução de tipo copernicano. De novo, os humanos foram expropriados. Tinham-se tornados modernos, passando a acreditar que eles mesmos estavam na origem do conhecimento e das certezas. E então aprendiam que eles não eram donos nem de seus próprios atos e pensamentos.

Entre Galileu e Freud, houve outras pauladas. Com Marx, apareceu que a organização do sistema produtivo influenciava nossa maneira de ser e de pensar. Darwin nos colocou em continuidade com o mundo animal, sem diferenças qualitativas especiais.

Hoje, os resultados da leitura do genoma confirmam as idéias de Darwin: se temos bastante em comum com formas de vida muito menos complexas, provavelmente devemos ter origens comuns. E acrescentam mais uma lição de humildade: nosso privilégio entre os seres vivos consiste em poucas centenas de genes. Mais uma vez somos ejetados de nosso trono.
Em suma, na modernidade -desde Galileu até as últimas notícias do genoma-, deveríamos ter baixado a bola. Aconteceu exatamente o contrário. Quanto mais as ciências (as do espírito como as da natureza) nos confirmam que não somos nada de extraordinário, tanto mais conseguimos nos convencer de que somos a única coisa que importa.

Isso começou logo depois de Copérnico. Retiraram-nos a harmonia e o sentido divino do Universo e reagimos fazendo de nossa razão a origem de todo o conhecimento e de a toda verdade. Retiraram-nos o amor exclusivo de Deus e nos consolamos com o amor-próprio. Aliás, logo demonstramos que podíamos inventar ciências e técnicas capazes de dar a esse Universo abandonado por Deus sua nova vocação: a de servir nossas vontades.

Depois de Freud, houve uma reação parecida e incrementada. Retiraram-nos a certeza de sermos donos da verdade e reagimos com um surto de paixão narcisista, que continua ainda. Passamos a ser, para nós mesmos, a única verdade que importa.

Acredito que nunca tenha existido uma cultura tão vociferante sobre a relevância do indivíduo, de seus desejos, de seus direitos e de seus prazeres. Em geral, imagina-se que uma cultura sirva para frear um pouco as paixões egoístas e defender alguns valores que possam ser compartilhados socialmente. A cultura contemporânea, ao contrário, é um esforço contínuo para proclamar e exaltar os direitos de nossa irrenunciável singularidade.

Vivemos este paradoxo: nunca soubemos tão bem que não somos nada e nunca fomos tão convencidos de sermos a única coisa que importa. Uma grande parte de nossos sofrimentos neuróticos tem sua origem nessa necessidade cultural de continuar pensando que somos a coisa mais importante do mundo -o que nunca cola com nossa miséria existencial e cotidiana.
O comensal de Cambridge seguiu a regra: aproveitou o gancho das proteínas para compensar as notícias -que eram ruins para o orgulho da espécie- com o relato de um triunfo pessoal

08 fevereiro 2001

Músculos impossíveis e invejáveis

Quase a metade dos homens americanos está insatisfeita com seu corpo. O mesmo vale para os europeus. O caso dos brasileiros não deve ser muito diferente. É uma insatisfação calada, pois se supõe ainda que "um macho" não ligue para sua aparência. Mas é suficiente para mobilizar uma indústria. Em 1999, os homens americanos gastaram 2 bilhões de dólares em mensalidades de academia e a mesma quantia em aparelhos para exercitar-se em casa. A isso acrescentam-se as cirurgias plásticas e o mercado dos suplementos alimentares: 3 milhões de americanos (entre os quais 6,5% dos jovens de 15 e 16 anos) tomam ou tomaram esteróides anabolizantes para facilitar o crescimento da musculatura e queimar gordura.

Claramente, nas últimas duas décadas, constituiu-se uma cultura masculina da modificação corporal. Por que não aplaudir? Afinal corpos enxutos e malhados na praia são uma visão mais agradável do que carnes flácidas. Pessoalmente, levanto ferro há 35 anos e acho ótimo tanto para a saúde quanto para o humor. Então qual é o problema?

Acontece que uma parte não-negligenciável dos malhadores não encontra saúde nenhuma. Só nos EUA, as pesquisas mostram que, para quase 1 milhão deles, a insatisfação com seu corpo deixa de ser um incentivo e transforma-se numa obsessão doentia. Eles sofrem de uma verdadeira alteração da percepção da forma de seu próprio corpo. Por mais que treinem, "sequem" e fiquem fortes, desenvolvem preocupações irrealistas, constantes e angustiadas de que seu corpo seja feio, desproporcionado, miúdo ou gordo etc. Passam o tempo verificando furtivamente o espelho. Recorrem a dietas ferozes que acarretam verdadeiros transtornos alimentares (anorexia e bulimia já se tornaram patologias também masculinas). São as primeiras vítimas do uso desregrado de qualquer substância que prometa facilitar o crescimento muscular.

Nos casos mais graves, a obsessão do corpo destrói a vida social, profissional ou escolar dos sujeitos. Convencidos de sua feiúra, eles se escondem -num leque que vai desde se recusar a tirar a camisa até se trancar em casa. Abandonam estudos e carreiras para passar o tempo treinando. Sacrificam casamentos e relações amorosas. Não são raras as tentativas de suicídio.
Um livro recente, "The Adonis Complex: The Secret Crisis of Male Body Obsession", de Harrison G. Pope, Katharine Phillips e Roberto Olivardia (Free Press, 288 págs., US$ 25), tenta explicar a nova obsessão masculina do corpo e descreve sua patologia.

Segundo os autores, nas últimas décadas, os corpos vêm sendo encarregados de marcar as diferenças entre masculino e feminino. Mulheres e homens não se distinguem mais por funções sociais respectivas.

Hoje somos masculinos e femininos pela aparência, não por nossos encargos. Portanto o peso metafórico da virilidade se encarnou num corpo ideal forte e poderoso. Poderia ser uma simplificação: afinal, malhar quatro vezes por semana parece uma tarefa mais simples do que ser "homem" segundo exigências de grandeza de espírito, que são de difícil definição. Não é nada disso.

Infelizmente, o corpo que encarna o ideal social de virilidade é mais inalcançável ainda do que os mais complexos exemplos de força moral. Faça a experiência: pegue um bonequinho de GI Joe de última geração, que é para as crianças o modelo de força, determinação etc. Meça as proporções do boneco e calcule no que elas dariam em tamanho adulto. O boneco que usei dava um homem com a cintura de Britney Spears e um bíceps quatro vezes o braço de Schwarzenegger no seu ápice.

A masculinidade era um ideal espiritual enigmático e complicado. Agora se tornou um corpo impossível. Quem levar a sério a exigência social de ser "homem" poderá entrar numa aventura dolorosa. (A mesma coisa vale para as mulheres e a feminidade. Tente repetir a experiência das medidas com uma Barbie.)

Mais um comentário. Quase todos os insatisfeitos dos músculos declaram que eles tentam adquirir um corpo que seduza as mulheres. Ora, sistematicamente, nos testes aparece o seguinte: o corpo masculino que, segundo eles, enlouqueceria as mulheres é dez quilos (de músculos) mais pesado do que o corpo masculino que as mulheres realmente gostam. Ou seja, as mulheres preferem homens próximos da média -não excessivamente musculosos. Será que os homens se enganam e treinam em vão? É mais provável que querer seduzir seja uma desculpa. Os homens querem ser impossivelmente musculosos não para encantar as mulheres, mas para competir com os outros homens.

Tanto para os homens quanto para as mulheres, o motor da relação com os ideais modernos não parece ser o desejo que gostaríamos de suscitar na dama ou no cavalheiro.

De fato, a esperança de conquistar um parceiro ou uma parceira nos anima menos do que a vontade de sermos objetos da inveja de nossos semelhantes.

01 fevereiro 2001

Uma outra maneira de dar o peito

Jenna Franklin é inglesa e terá 16 anos no dia 23 de agosto deste ano. Para seu aniversário, os pais lhe oferecerão implantes de silicone nos seios. A praxe é esperar até mais tarde (depois dos 20 anos) para que a intervenção modifique um corpo que já tenha parado de crescer. Mas duvido que a moça não encontre um cirurgião disposto a operá-la logo. Tanto mais que os pais generosos são conselheiros profissionais em cirurgia plástica. E a mãe é uma veterana que fez seios, nariz, bochechas e duas lipos.

Essa notícia fez recentemente a primeira página dos tablóides ingleses. Prevaleceram as expressões indignadas contra nosso mundo que cultua as aparências: onde iremos parar se os pais autorizam ou, pior, transmitem diretamente o dever de agradar aos outros? Que desastre moral se prepara? E por aí vai.

A história e a polêmica se tornaram um despacho da Associated Press do começo de janeiro -que é minha fonte.

Jenna e sua mãe, Kay Franklin, foram entrevistadas. Jenna disse que desejava seios maiores desde os 12 anos e, questionada por que, acrescentou: "Precisa ter seios para ser bem-sucedida". E ainda: "Uma pessoa em cada duas na televisão teve implantes. Se eu quiser ser bem-sucedida, devo tê-los também e eu quero ser bem-sucedida, embora no momento ainda não saiba no quê". E enfim: "Só quero ser feliz com o meu corpo".

Kay, a mãe, declarou: "Há tantas jovens que se deprimem ou se atrapalham por causa de sua aparência. Então, se der para fazer algo para evitar isso, ótimo".

Gosto dessa história pelas reações que produz. Faça a experiência: conte para alguém. Na enorme maioria dos casos, a resposta será despropositadamente indignada. Como pode essa mãe desnaturada induzir na filha uma tal religião das aparências?

Antes de jogar mais uma pedra, pense um pouco: será que o presente da mãe de Jenna é essencialmente diferente do gesto das numerosas mães que oferecem academias, spas e regimes a suas filhas? Ou mesmo que lhes impõem aparelhos ortodônticos que parecem cabrestos?

Na verdade, a mãe de Jenna não é diferente de nós. Ela é a banalidade da maneira moderna de amar os rebentos: queremos que eles seduzam bem além do que nós conseguimos. Não imaginamos uma forma de felicidade, uma gestão do prazer ou uma forma de sucesso que não passem pela conquista da aprovação dos outros. E como não querer a felicidade de filhos e filhas?

Quanto a Jenna, sua fala vale um livro ou dois sobre o tema do narcisismo. Ela nos explica que a relação com nós mesmos, nossa maneira de julgar a imagem que aparece no espelho passa sempre pelo olhar dos outros.

Jenna quer ser feliz com o seu corpo. E acha que isso acontecerá quando ela fizer parte do grupo de implantadas que povoam a tela da televisão. Aparecer na televisão não é concretamente um ideal para Jenna (ela não quer ser apresentadora, nem modelo, nem atriz), mas é uma boa metáfora do sucesso narcisista, pois é provável que quem está na televisão seja aprovado pelo olhar dos espectadores.

Ou seja, Jenna quer (e deve) ser gostada para se gostar. Esse sucesso narcisista é um fim em si: o campo no qual ela poderia ser bem-sucedida é indiferente. A fantasia de Jenna é o sucesso que os seios lhe darão: a profissão em que os mesmos seios poderiam promovê-la não alimenta seus sonhos.

A vida de Jenna, mesmo com os seios novos, não será fácil. Como não é fácil, em geral, a vida de todas as nossas jovens -se suas mães se parecem com Kay. A dificuldade não está na tarefa de serem bonitas, mas na impossibilidade de definir um cânone.

Se o cirurgião fizer um bom trabalho, homens, mulheres e a própria mãe, todos poderão adular os seios perfeitos de Jenna. Mesmo assim, aposto que a moça não parará de achá-los insuficientes, exagerados, assimétricos, desproporcionados etc.

A dificuldade do narcisismo moderno não reside na tarefa de agradar, mas na perpétua insegurança. É inevitável: se a tarefa da vida for agradar aos outros que nos importam, nenhum olhar será definitivo, nenhum elogio e nenhum amor bastarão para decretar que o seio é perfeito. Pois o julgamento dos outros é uma suposição nunca resolvida. Podemos contar as pétalas da margarida (me ama, não me ama, me ama...) ou modificar o corpo (mais silicone, menos silicone...).

Na mitologia grega, um salteador chamado Procusto espreitava os viajantes. Queria forçar cada um deles a caber perfeitamente num leito. Esticava ou cortava fora os membros dos infelizes. Para o sujeito moderno, o problema não é evitar Procusto, mas encontrá-lo, para saber enfim o que precisa cortar e o que esticar. Encontro impossível: Procusto é apenas um mito.

P.S.: A procura de Procusto não é um problema só feminino, tipo: as mulheres sempre quiseram ser desejadas etc. Os homens e os rapazes das últimas décadas pensam como Jenna e sofrem da mesma incerteza. Na próxima coluna, comentarei pesquisas recentes sobre essa mudança na relação dos homens com seus corpos.