26 janeiro 2006

Para uma São Paulo de sonho

Gilberto Dimenstein acaba de publicar "O Mistério das Bolas de Gude" (Papirus). Ler o livro é uma boa maneira de festejar os 452 anos de São Paulo.

Dimenstein, que é colunista da Folha, é apaixonado pelas cidades. Desta vez, ele nos conta as descobertas feitas em seu incansável passeio pelas ruas, pelos becos e pelas sarjetas de São Paulo e de Nova York, à procura dos sinais de uma vida possível.

Esses sinais são as pequenas histórias de homens e mulheres que transformaram ou estão transformando a "selva urbana" num espaço de convivência. Termina-se a leitura com a sensação de escutar um burburinho de coragem e carinho que pode vencer o ruído convulso do trânsito, dos ódios e das exclusões.

Na segunda-feira, no Masp, para celebrar o livro e o aniversário de São Paulo, participei de uma mesa-redonda: "São Paulo É Melhor do que Parece?". Eis como tentei contribuir ao debate.
Nos anos 50 e 60, eu vivia em Milão. O cinema italiano propunha vários filmes ambientados na cidade. Dois são famosos: "Milagre em Milão", de Vittorio de Sica (1950), e "Rocco e Seus Irmãos", de Luchino Visconti (1960). Ora, quase todos esses filmes apresentavam uma Milão que pouco tinha a ver com o cotidiano da gente, ou seja, dos jovens de classe média.
"Rocco", por exemplo, é um filme maravilhoso, graças ao qual descobríamos a realidade da imigração interna que estava mudando a cara do país. Mas as ruas pelas quais Rocco circulava eram tão exóticas para nós quanto o Japão dos "Sete Samurais".

Nos anos 60, o filme "milanês" que mais me marcou não era muito bom. Não me lembro do título nem da trama. Era uma história de jovens relativamente bem comportados, que se apaixonavam e se desapaixonavam, madrugavam para caçar na bruma do inverno, bebiam café no Corso Vitorio Emanuele e por aí vai. Esse filme anônimo sobrevive na lembrança dos adolescentes milaneses da época porque ele mostrava que o cenário de nossa vida podia ser o pano de fundo de uma ficção. Por um instante, parecia não ser necessário que nossos devaneios acontecessem em Paris ou em Londres. Talvez fosse possível sonhar ali mesmo, onde a gente vivia. Mas foi um filme só.

No seu livro, Dimenstein explica a extraordinária virada de Nova York, que, antes dos anos 90, era uma cidade tão violenta quanto os bairros inseguros de São Paulo. Houve o crescimento econômico, as políticas públicas de segurança e as iniciativas generosas que Dimenstein descreve.

Há um outro fator: mesmo em seus anos tétricos, Nova York nunca parou de ser um cenário de sonho. Nos anos 70, quem freqüentasse um teatro da Broadway devia se aventurar por uma inquietante zona de droga, prostituição e miséria. Mas essa desolação era o palco, por exemplo, de "Perdidos na Noite" (1969): em seus momentos mais sinistros, Nova York era uma matriz de ficção e devaneio. Já naqueles anos, era difícil passear por Manhattan sem esbarrar numa filmagem. E continua assim.

Duas conseqüências: 1) O cenário, de tanto estar presente, torna-se um dos protagonistas e é amado e idealizado como tal (há uma longa lista de filmes e seriados em que Nova York é parte do título); 2) Os espectadores dos filmes e os passeantes que se aglomeram ao redor do set das filmagens, por mais que a vida lhes sirva frustrações, aprendem que na sua cidade é permitido sonhar.

Ora, as cidades que prosperam são aquelas que escolhemos para serem cenário de nossos sonhos. Bonitas ou feias, ricas ou pobres, elas são as cidades de sonho.

O cinema brasileiro, com poucas exceções, segue o modelo de "Rocco". Por exemplo, "O Invasor", de Beto Brant, nos apresenta uma São Paulo que não é o espaço da vida da maioria dos espectadores. Com isso, a periferia pára de ser um universo esquecido e recalcado pela má consciência dos privilegiados. Mas, ao meu ver, o mais relevante é que talvez, graças ao filme, moradores da periferia descubram que seu espaço pode ser cenário de uma ficção: "Aqui também é possível sonhar". Infelizmente, na periferia quase não há cinemas...

A televisão foge do cenário urbano concreto. "Belíssima", de Sílvio de Abreu, a ótima novela do momento, acontece em São Paulo, mas essa é apenas uma declaração abstrata ("Viu a Paulista? Estamos em São Paulo."). Os personagens circulam por casas e apartamentos recontruídos em estúdio. Ninguém conversa num boteco da Vila Madalena, ninguém almoça no restaurante onde estivemos na semana passada, ninguém erra pelo shopping onde fomos no sábado, ninguém passeia pela rua onde fazemos nossas compras.

Há explicações financeiras e logísticas: a Globo produz suas ficções no Rio. No entanto, o Rio das novelas cariocas é um cartão-postal de fundo, bonito, mas tão abstrato quanto a Paulista vista de helicóptero.

Talvez não se trate só de logística e finanças. Talvez se trate de uma falta de amor.
Está na hora de acreditar que é possível inventar e contar histórias na paisagem concreta de nossa vida. Por quê? Porque podemos desrespeitar o espaço em que vivemos, mas sempre respeitamos o cenário de nossos sonhos.

19 janeiro 2006

"A Marcha dos Pingüins" e a origem da moral

Fui assistir à "Marcha dos Pingüins", de Luc Jacquet, em companhia de crianças pequenas. Um compromisso foi necessário: eu me contentei com a versão dublada e as crianças toparam a sessão das dez. Antevia um desastre: elas dormiriam direto e eu não agüentaria a pieguice.

As previsões estavam erradas. As crianças ficaram acordadíssimas e saíram do cinema pensativas, sem pedir nenhum pingüim de pelúcia. Isso porque o filme, justamente, não é nada piegas. Ele é um grande drama.

A vida amorosa e reprodutiva dos pingüins cumpre uma lei férrea e cruel, ano após ano: percursos intermináveis, fome, meses de imobilidade gelada chocando um único ovo e por aí vai.
Nenhuma semelhança conosco: eles sobreviveram obedecendo a uma necessidade absoluta e impiedosa, enquanto a gente sobreviveu graças à variedade plástica de nossa escolhas amorosas e de nossos comportamentos sexuais e reprodutivos.

Pensei nos pingüins que aparecem misteriosamente em nossas praias. O Ibama faz um esforço danado para devolvê-los a seu habitat natural; são levados de volta, de avião, até à Antártida ou à Patagônia. Mas será que alguém lhes pergunta o que eles querem? Há uma séria possibilidade que eles estejam pedindo asilo político na zona sul carioca. Depois de ter visto o filme de Jacquet, eu não hesitaria a lhes reconhecer esse direito.

Apesar da distância entre nossa vida amorosa e a dos pingüins, nos EUA, alguns grupos conservadores propuseram a conduta dos pingüins como protótipo de monogamia e de dedicação à família. Algo assim: "Você se queixa porque os filhos e a família dão trabalho? Você quer mais prazer na sua vida? Você quer abortar? Olhe para os pingüins e arrepende-se". Fato surpreendente, o argumento funciona. Também graças à dramatização que dá voz às "personagens" da história, podemos simpatizar com os pingüins a ponto de considerá-los como semelhantes que, no caso, seriam mais morais que a gente.

Na história da cultura, aconteceu com freqüência que alguém apontasse nos animais qualidades exemplares para nós.

O filósofo David Hume, num apêndice de sua "Investigação Sobre os Princípios da Moral" (1751), ao querer mostrar que nossos sentimentos morais são, de uma certa forma, "naturais", invoca como exemplo a "benevolência" dos animais (de fato, os animais "benevolentes" existem mais nas fábulas do que na realidade, mas não é isso que importa). O que Hume chama "benevolência" é a capacidade de sentir simpatia pelos semelhantes. Para quase todos os filósofos britânicos do século 17 e 18, essa capacidade é o fundamento da moralidade: afinal, se soubermos nos colocar no lugar dos outros, nosso comportamento terá uma boa chance de ser moralmente aceitável.

Naquela época, ingleses e escoceses debateram como nunca sobre a origem dos sentimentos morais. Havia quem pensasse que eles fossem aprendidos, derivados da experiência (John Locke); havia os que pensavam que fossem colocados por Deus no nosso âmago desde o nascimento (Shaftesbury) e havia os que, como Hume e Adam Smith, ficavam sabiamente em cima do muro. Para todos, o núcleo da moral era a capacidade de simpatizar com o outro e, portanto, de querer seu bem. A questão discutida era: "De onde vem essa simpatia que nos torna morais?".

A psicologia pode contribuir (tardiamente) a esse debate.

Existe um transtorno grave, chamado transitivismo, no qual o sujeito perde a noção de seus limites e de sua individualidade e se confunde com os outros ou mesmo com objetos inanimados ao seu redor. O transitivismo, na medida certa, é também uma disposição crucial na constituição da subjetividade normal.

Por exemplo, mães e pais conhecem um estranho fenômeno que acontece nos primeiros anos de vida de qualquer criança: na brincadeira, eis que um amiguinho se machuca e a criança que assiste à cena começa a chorar como se a vítima fosse ela. Os adultos perguntam por quê e a criança aponta, em seu corpo, o lugar em que o outro se feriu.


Não se trata de uma compaixão generosa que seria congênita nas crianças. Acontece que o sujeito humano se constrói à força de identificações com os outros. Nos primeiros anos de vida, a capacidade de me colocar no lugar do semelhante me ajuda a responder à pergunta "Quem eu poderia vir a ser?". Mais tarde, a experiência dos outros continua nos enriquecendo tanto quanto a nossa, pois levamos conosco, dentro de nós, os semelhantes que encontramos ao longo da vida.

Talvez seja esse transitivismo, básico e normal, que esteja na origem da simpatia que funda nossa moralidade. Ele nos é tão necessário que não paramos de estender o campo dos semelhantes com os quais possamos nos identificar. Inventamos e cultivamos ficções para viver a experiência não só dos outros reais, mas também de um exército de personagens imaginárias.

Na mesma linha, descobrimos a fidelidade nos cachorros, a laboriosidade nas formigas, a tranqüilidade nas montanhas e, depois do filme de Jacquet, a abnegação nos pingüins.

13 janeiro 2006

"O Céu de Suely"

"Céu" não conta uma tragédia da miséria; é "apenas" um filme sobre a dificuldade de viver

ESTREOU NA sexta passada "O Céu de Suely", de Karim Aïnouz (o diretor de "Madame Satã").
É a história de Hermila, uma jovem que, junto do namorado Mateus, deixou sua Iguatu natal, no Ceará, para tentar a vida em São Paulo. Dois anos mais tarde, eles decidem voltar. Hermila (a notável e homônima Hermila Guedes) chega a Iguatu com um filho nos braços e espera a reunião iminente com Mateus, que ficou em São Paulo por mais um tempo. Mas Mateus não comparece. Hermila quer ir embora de novo (e não atrás do namorado).

Para arrumar o dinheiro necessário, ela organiza uma rifa; o prêmio é uma noite no Paraíso com ela (que, para a rifa, mudou de nome: agora é Suely).

O filme é imperdível, porque é absolutamente "justo": raramente uma história me foi contada de uma maneira e num tom tão convincentes e tão próximos da vida.

Não sabemos bem por que Hermila e Mateus emigraram. Não foi fugindo da miséria. Talvez seja impossível viver em Iguatu (ou onde quer que seja, aliás) sem querer, um dia, colocar o pé na estrada.

Não sabemos bem por que eles quiseram voltar, mas um cartaz na saída da cidade anuncia: "Aqui começa a saudade de Iguatu". É verdade que uma inexplicável vontade de voltar sempre espreita, inevitavelmente, quem deixou o lugar que lhe foi atribuído pelo destino.

Por que Hermila não decidiria ficar em Iguatu? Afinal, lá ela tem amigas, a avó que cuida do netinho e até um novo namoro. Aviso: quem foi embora uma vez nunca mais pára de oscilar entre a saudade e a tentação da viagem.

Quando Hermila decide se rifar, pouco ou nada nos é dito sobre seu conflito interior; só seus sorrisos forçados falam da tênue fronteira entre o prazer de seduzir e o asco de se oferecer.
A força do filme está nesse pudor, graças ao qual os personagens se tornam curiosamente familiares, próximos da gente. Pois não há desesperos, tangos ou tragédias que transformem suas gestas num espetáculo ou numa farsa. Conhecia a sinopse de "O Céu de Suely" há tempos, pela imprensa.

Antes de assistir ao filme de Aïnouz, quis rever um antecedente italiano dos anos 70, em que é contada a história de uma mulher (Sofia Loren) que se rifa. Trata-se de um filme em episódios, "Boccaccio 70", e o episódio em questão, "A Rifa", é dirigido por Vittorio de Sica com roteiro de Cesare Zavattini. Os nomes de De Sica e Zavattini são associados ao período mágico do neo-realismo do cinema italiano (De Sica assinou obras-primas: "Ladrões de Bicicletas" e, justamente com roteiro de Zavattini, "Umberto D"). Ora, o glorioso neo-realismo italiano dos anos 50 pariu, nos anos 70, uma proliferação de chanchadas, em que, digamos assim, o que sobrava de "realismo" era uma transformação grotesca e cínica da vida. Ou seja, a prova de que a realidade estava na tela consistia na vulgaridade risível das histórias e dos personagens.

Esse declínio cultural tem suas explicações: o neo-realismo italiano dos anos 50 foi a obra de uma geração para quem o pós-guerra era brutal, miserável, mas animado por uma esperança que encorajava a levar o mundo a sério. Depois da decepção do "milagre italiano" dos anos 60 (que viu o triunfo de uma "elite" sinistra e gananciosa), aparentemente, só dava para zombar.

Era assim: o cinema americano nos mostrava os heróis (da história ou do cotidiano, tanto faz), e a nós, que tínhamos perdido a chance de sermos heróis, sobrava sermos palhaços. Uma parte do público achava engraçado, ria ao se ver nesse espelho deformante. Outros (eu entre eles) achavam desesperador e ficavam, como Hermila, com vontade de ir embora.

Faça a experiência: compare os compradores dos bilhetes da rifa no filme de Aïnouz e no de De Sica. Os compradores de "O Céu de Suely" são complexos, divididos, seu desejo é contaminado pela vergonha e pelo mal-estar; alguns se indignam com a proposta. Os compradores de De Sica são estereótipos de idiotice, uma massa de farsantes.

Teria sido fácil cair na mesma armadilha e apresentar os compradores da rifa de Suely como caretas tragicômicas, como um bando de peões bêbados, desdentados e assanhados (alguma lembrança do cinema brasileiro do passado?). Mas o filme de Aïnouz não é uma tragicomédia da miséria, não conta um fato grotesco do subdesenvolvimento. É "apenas" um filme tocante sobre a dificuldade de viver.

O aborto dos outros

No suplemento ao volume 12 (novembro 2004) de "Reproductive Health Matters" (questões de saúde reprodutiva, www.rhmjournal.org.uk), foi publicada uma pesquisa sobre a reação dos ginecologistas-obstetras brasileiros à gravidez não desejada. Os autores são Aníbal Faúndes (Cemicamp e Unicamp), Graciana Alves Duarte (Cemicamp), Jorge Andalaít Neto (Febrasgo) e Maria Helena de Sousa (Cemicamp). O Cemicamp é o Centro de Pesquisas Materno-Infantis de Campinas e a Febrasgo é a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia.

Em 2003, um questionário foi distribuído aos 14.320 ginecologista
s-obstetras da Febrasgo. Desses, 4.270 responderam: uma amostragem significativa.

Depois de registrar a idade, a situação familiar, as opiniões sobre o aborto e a relevância da fé religiosa do médico entrevistado, o questionário perguntava qual seria sua reação diante de uma paciente que não quisesse continuar sua gravidez por razões outras das que a lei brasileira permite (estupro e risco de vida para a mãe). A alternativa era ajudar (praticar o aborto, encaminhar para um colega que praticaria, explicar o uso do abortivo Cytotec) ou recusar a ajuda. Eram propostas duas situações: com uma paciente "qualquer" e com uma parente.

Enfim, o questionário perguntava ao médico: "Se você é mulher, já teve uma gravidez absolutamente não desejada e sentiu que um aborto era necessário? O que você fez?". Ou, então: "Se você é homem, aconteceu que sua parceira tivesse uma gravidez absolutamente não desejada e sentisse que um aborto era necessário? O que ela fez?".

A pesquisa constatou que a conduta do médico depende de suas opiniões sobre a prática do aborto, e pouco importa que a paciente seja ou não membro da família do profissional. Agora, quando a gravidez não desejada é a da própria médica ou da parceira do médico, a coisa muda.

Só uma pequena percentagem dos entrevistados tinha vivido pessoalmente uma situação em que um aborto parecesse necessário. Mas, nesse grupo reduzido, 70% dos que se declaravam contra o aborto por razões de consciência escolheram interromper a gravidez.

Os autores comentam: "A atitude dos médicos muda quando o dilema de uma gravidez não desejada os afeta diretamente". "Mesmo que fossem fortemente opostos ao aborto, provavelmente eles entenderam sua situação como "excepcional" (...) O que talvez eles não percebam é que, para cada mulher que passa por um aborto, as circunstâncias são excepcionais".

Claro, o "rigor" moral é facilmente praticável quando ele se aplica aos outros e não à gente. Mas não quero estigmatizar a "hipocrisia" de quem é "contra" o aborto e abre uma exceção quando o problema surge em casa. Com os autores da pesquisa, considero que qualquer situação de vida é "excepcional", inclusive a do médico que abre uma exceção só para si ou para sua parceira.
Essa disposição a conceber o indivíduo como "exceção" é hoje facilmente criticada por ser "permissiva" ou imoral: se cada caso é um caso, regras e preceitos valem pouco ou nada, não é? Pode ser, mas o pensamento moral de quem lida com casos, todos únicos, é sempre mais complexo e profundo do que o pensamento de quem lida com princípios.

Acho estranho, aliás, que a unicidade da experiência humana seja freqüentemente invocada apenas como uma atenuante ("Desculpe-me, pois minha história é diferente") e não promovida como um valor: a grandeza da inquietude moral moderna consiste justamente na capacidade de reconhecer que pode haver regras, mas, antes disso, há, sobretudo, casos.

Acho estranho, mas não deveria, pois esse é só um exemplo de uma mudança que é urgente entender. Voltemos ao aborto: até 20 anos atrás, o debate opunha dois ideários. Os que eram contra invocavam sua fé religiosa, a vida como valor absoluto, a necessidade de manter (pelo peso das conseqüências) a "seriedade" das relações sexuais, a existência de uma alma subjetiva desde a concepção. Os que eram a favor promoviam o direito de as mulheres disporem de seu corpo, o direito de cada criança ser desejada ou aceita no mundo (pela racionalidade do planejamento familiar), o direito ao prazer dos corpos sem a intenção reprodutora. Enfrentavam-se sistemas de valores opostos, mas ambos positivos, afirmativos.

Ora, nos últimos anos, os "progressistas" parecem ter perdido a confiança em seu próprio ideário. Talvez por ressaca do sonho socialista (mas essa explicação começa a cansar), os ideais libertários nascidos nos anos 60 e 70 não são mais vividos e promovidos como um conjunto de valores positivos, capazes de dar forma a uma sociedade.

O debate mudou de cara: aparentemente, os valores tradicionais enfrentam não valores opostos, mas só sua própria crise. Ou seja, o debate entre morais diferentes se transformou em debate entre a moralidade tradicional e seus fracassos.

Talvez a dita pós-modernidade seja isto: um desânimo dos valores libertários, que não conseguem mais se apresentar como valores. Com isso, cada vez mais, os valores tradicionais encontram apenas, como oposição, uma espécie de hedonismo envergonhado.

05 janeiro 2006

"Apenas um Beijo"

Está em cartaz "Apenas um Beijo", de Ken Loach.

Resumo: na Escócia, Casim, um DJ de origem paquistanesa, apaixona-se por uma professora católica, ms. Hanlon, e desafia as tradições de sua família imigrante e muçulmana.
O filme é a obra mais certeira e honesta que eu conheça sobre o conflito dominante de nossa época.

Vistos das Américas, os carros que os jovens de origem árabe continuam queimando nas periferias de Paris (425 nesta passagem de ano) podem parecer fogueiras exóticas. Deste lado do Atlântico, por mais que sejamos "subdesenvolvidos", somos irremediavelmente modernos: as esperanças (sociais e econômicas) nos definem mais do que nossa ascendência. O imigrante americano sacrificou raízes e tradições em troca do sonho (frustrado ou não) de uma vida, como se diz, mais digna.

Claro, é sempre tentador opor o "cinismo" dos sonhos americanos (status e dinheiro) à riqueza e ao calor das comunidades tradicionais. Mas o filme de Loach nos lembra que a modernidade não é só um sonho de consumo; a modernidade é, antes de mais nada, uma história de amor: a paixão amorosa entre diferentes, distantes e estranhos é o protótipo da livre escolha dos sujeitos contra as exigências de seu próprio passado.

No filme, ms. Hanlon deve responder à pergunta: "Você vai sacrificar a continuidade da tradição e a incondicionalidade dos afetos familiares por uma paixão que pode acabar amanhã?". Ela não mente, não promete amor eterno, mas tampouco desiste.

A modernidade é isto: um pulo no escuro, sem garantias.

Os pais de Casim foram para a Europa atrás da liberdade de culto, depois da dolorosa separação religiosa de Índia e Paquistão. "Detalhe" imprevisto, o que eles procuravam e encontraram tem um preço: uma divisão psíquica (que brota em seus rebentos) entre as tradições da comunidade e a liberdade subjetiva moderna. O "viva e deixe viver", cujos benefícios eles desejaram e conseguiram, vinga na cabeça de seus filhos.

"Se queriam que fôssemos iguais a vocês, por que vieram fazer seus filhos aqui?" A pergunta é colocada aos pais pela irmã menor de Casim, exasperada pelo conflito que ela vive entre o amor filial e a modernidade que a contamina.

Para a segunda geração, a tragédia é a regra: Casim poderia amar ms. Hanlon na dor e na culpa de quem desobedece ao seu passado ou, então, ele poderia queimar carros e jogar bombas, fomentando seu ódio pela liberdade que o tenta.

Por que esse conflito estoura agora? Por que ele não explodiu antes? É que estamos vivendo, desde os anos 60, a última revolução moderna. A luta entre a liberdade de inventar a vida e as dívidas do passado é tão difícil que criamos uma arte (ou ciência, que seja), a psicanálise, só para isto: para aprender a lidar com os restos do passado.

Nos anos 70, no posfácio de "O Zen e a Arte da Manutenção da Motocicleta", Robert Pirsig ainda escrevia: "Não sei que tipo de futuro se prepara atrás da gente, mas o passado, desdobrado na nossa frente, domina tudo o que podemos enxergar".

Na noite de domingo, depois de assistir ao filme de Loach, tive um sonho engraçado, cujo conteúdo manifesto me ajudou a escrever esta coluna.

Estava sentado numa mesinha de bar com Demétrio Magnoli, que é também colunista da Folha, às quintas-feiras, na página dois. Eu tentava explicar ao Demétrio que o conflito de culturas que assola nossos tempos não é econômico, tampouco é entre Oriente e Ocidente, mas é o mesmo desde o século 13, entre a aventura arriscada da liberdade e o conforto opressivo das tradições.
Como num filme, a câmara recuava e revelava que estávamos em cima de um promontório rochoso que dominava uma planície onde começava uma grande batalha, no estilo do enfrentamento final nas "Crônicas de Nárnia" ou no "Senhor dos Anéis".

À nossa direita, avançava um vasto exército de cavaleiros armados. Havia imames, mas também papas, cardeais e figuras de aspecto mais laico: o presidente do Irã e pastores evangélicos.
À nossa esquerda, no começo, não havia ninguém. Logo aparecia um velho barbudo, que caminhava se apoiando num bastão de peregrino: era Walt Whitman; atrás dele, vinha um homem mais jovem, que era Henry David Thoreau. No sonho, pensei que ele estava lá por seu elogio da "Desobediência Civil".

Comecei a me preocupar, pois me parecia um exército curiosamente rarefeito. Logo, precedido do barulho redondo do motor, numa nuvem de poeira, apareceu o enorme Hudson 49 de "On The Road", com Kerouac no volante e Neal Cassidy do seu lado. Já me senti melhor. Enfim, ultrapassando a todos, surgiu a motocicleta de Robert Pirsig, com o filho, Chris, adolescente, na garupa.

Aí senti uma estranha certeza de que esse exército de Brancaleone, sem armas, apenas louco de paixão pelo pé na estrada, pela aventura da vida e pela vontade de contá-la, ganharia o dia. Acordei de bom humor, pensando, meio adormecido, que, se os outros entoassem hinos e encantações, certamente a banda do submarino amarelo tocaria para nós.

Cuidado, o filme de Loach pode sair de programação rapidamente.