No suplemento ao volume 12 (novembro 2004) de "Reproductive Health Matters" (questões de saúde reprodutiva, www.rhmjournal.org.uk), foi publicada uma pesquisa sobre a reação dos ginecologistas-obstetras brasileiros à gravidez não desejada. Os autores são Aníbal Faúndes (Cemicamp e Unicamp), Graciana Alves Duarte (Cemicamp), Jorge Andalaít Neto (Febrasgo) e Maria Helena de Sousa (Cemicamp). O Cemicamp é o Centro de Pesquisas Materno-Infantis de Campinas e a Febrasgo é a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia.
Em 2003, um questionário foi distribuído aos 14.320 ginecologista
s-obstetras da Febrasgo. Desses, 4.270 responderam: uma amostragem significativa.
Depois de registrar a idade, a situação familiar, as opiniões sobre o aborto e a relevância da fé religiosa do médico entrevistado, o questionário perguntava qual seria sua reação diante de uma paciente que não quisesse continuar sua gravidez por razões outras das que a lei brasileira permite (estupro e risco de vida para a mãe). A alternativa era ajudar (praticar o aborto, encaminhar para um colega que praticaria, explicar o uso do abortivo Cytotec) ou recusar a ajuda. Eram propostas duas situações: com uma paciente "qualquer" e com uma parente.
Enfim, o questionário perguntava ao médico: "Se você é mulher, já teve uma gravidez absolutamente não desejada e sentiu que um aborto era necessário? O que você fez?". Ou, então: "Se você é homem, aconteceu que sua parceira tivesse uma gravidez absolutamente não desejada e sentisse que um aborto era necessário? O que ela fez?".
A pesquisa constatou que a conduta do médico depende de suas opiniões sobre a prática do aborto, e pouco importa que a paciente seja ou não membro da família do profissional. Agora, quando a gravidez não desejada é a da própria médica ou da parceira do médico, a coisa muda.
Só uma pequena percentagem dos entrevistados tinha vivido pessoalmente uma situação em que um aborto parecesse necessário. Mas, nesse grupo reduzido, 70% dos que se declaravam contra o aborto por razões de consciência escolheram interromper a gravidez.
Os autores comentam: "A atitude dos médicos muda quando o dilema de uma gravidez não desejada os afeta diretamente". "Mesmo que fossem fortemente opostos ao aborto, provavelmente eles entenderam sua situação como "excepcional" (...) O que talvez eles não percebam é que, para cada mulher que passa por um aborto, as circunstâncias são excepcionais".
Claro, o "rigor" moral é facilmente praticável quando ele se aplica aos outros e não à gente. Mas não quero estigmatizar a "hipocrisia" de quem é "contra" o aborto e abre uma exceção quando o problema surge em casa. Com os autores da pesquisa, considero que qualquer situação de vida é "excepcional", inclusive a do médico que abre uma exceção só para si ou para sua parceira.
Essa disposição a conceber o indivíduo como "exceção" é hoje facilmente criticada por ser "permissiva" ou imoral: se cada caso é um caso, regras e preceitos valem pouco ou nada, não é? Pode ser, mas o pensamento moral de quem lida com casos, todos únicos, é sempre mais complexo e profundo do que o pensamento de quem lida com princípios.
Acho estranho, aliás, que a unicidade da experiência humana seja freqüentemente invocada apenas como uma atenuante ("Desculpe-me, pois minha história é diferente") e não promovida como um valor: a grandeza da inquietude moral moderna consiste justamente na capacidade de reconhecer que pode haver regras, mas, antes disso, há, sobretudo, casos.
Acho estranho, mas não deveria, pois esse é só um exemplo de uma mudança que é urgente entender. Voltemos ao aborto: até 20 anos atrás, o debate opunha dois ideários. Os que eram contra invocavam sua fé religiosa, a vida como valor absoluto, a necessidade de manter (pelo peso das conseqüências) a "seriedade" das relações sexuais, a existência de uma alma subjetiva desde a concepção. Os que eram a favor promoviam o direito de as mulheres disporem de seu corpo, o direito de cada criança ser desejada ou aceita no mundo (pela racionalidade do planejamento familiar), o direito ao prazer dos corpos sem a intenção reprodutora. Enfrentavam-se sistemas de valores opostos, mas ambos positivos, afirmativos.
Ora, nos últimos anos, os "progressistas" parecem ter perdido a confiança em seu próprio ideário. Talvez por ressaca do sonho socialista (mas essa explicação começa a cansar), os ideais libertários nascidos nos anos 60 e 70 não são mais vividos e promovidos como um conjunto de valores positivos, capazes de dar forma a uma sociedade.
O debate mudou de cara: aparentemente, os valores tradicionais enfrentam não valores opostos, mas só sua própria crise. Ou seja, o debate entre morais diferentes se transformou em debate entre a moralidade tradicional e seus fracassos.
Talvez a dita pós-modernidade seja isto: um desânimo dos valores libertários, que não conseguem mais se apresentar como valores. Com isso, cada vez mais, os valores tradicionais encontram apenas, como oposição, uma espécie de hedonismo envergonhado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário