28 dezembro 2000

Prosperidade e miséria da década que acaba

Chega o fim do ano. Ao mesmo tempo, terminam o século e o milênio. Apesar dessa circunstância excepcional, é a década de 90 que, nestes dias, me parece merecer um balanço.

No controle da Polícia Federal americana, em Miami, há três filas: a da esquerda para os visitantes, a do meio para os residentes e a da direita para os cidadãos americanos. Um agente grita: "Vocês, cidadãos, passem à direita, avancem sem esperar...". E acrescenta: "You own it!". O tom maroto situa o significado de sua frase entre "é seu direito" e "vocês são donos do pedaço".

Penso, no estilo dos anos 90: "Falou certo! A democracia é uma espécie de co-propriedade. Há o dono da cobertura com piscina e o cara da quitinete do primeiro andar. No entanto são condôminos". Mas de onde vem essa idéia de democracia como condomínio? Lembro o antigo slogan da Bolsa de Nova York: "Own a share of America", ou seja, "Seja dono de uma parte (um título acionário) da América". Justamente criava uma confusão deliberada entre ser acionista e participar de uma democracia.

Desde os anos 40, vigora o projeto de convencer o cidadão de que possuir ações é um investimento seguro e altamente moral. Quando, mais tarde, os americanos foram convidados a investir autonomamente o dinheiro acumulado para suas aposentadorias, eles puderam, assim, participar da festa especulativa com todo o orgulho, pois quem investe em ações -sugeria o slogan- investe na nação, portanto ele persegue o bem comum.

Os anos 90 deram o toque conclusivo ao marketing da especulação. Graças à Internet, tornou-se fácil negociar ações e fundos passando por cima dos intermediários tradicionais. Dispensar os serviços dos agentes financeiros foi apresentado como uma revolução social, uma maneira de devolver o poder aos cidadãos. Graças ao investimento eletrônico, renascia a democracia direta.

Os cidadãos-investidores da década que acaba não precisam que ninguém os proteja contra os colossos da economia mundial. Eles desconfiam até dos governos, que sempre podem ser comprados por esses monstruosos poderes. Preferem manifestar diretamente sua vontade. Está cansado da IBM e prefere o estilo cool de Steve Jobs? Compre ações da Apple. Quer punir a Nike por ela explorar crianças tailandesas? Venda suas ações da companhia. O investidor exerceria sua influência diretamente sobre os verdadeiros centros do poder.

As cassandras repetem que o mundo de hoje seria governado por companhias que se situam acima dos governos nacionais eleitos e que são, portanto, insensíveis às formas tradicionais de controle político. Talvez elas tenham razão, mas já encontramos o remédio certo. O cidadão ideal dos anos 90, comprando e vendendo livremente suas ações, retoma as rédeas do mundo.

Essa idéia não teria vingado sem a ajuda de um outro consenso que também domina o espírito dos anos 90. A década começou simbolicamente, em novembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim. A vitória do capitalismo sobre o socialismo foi promovida não como triunfo de formas melhores de participação democrática, mas como vitória da liberdade de mercado. O consenso dos anos 90 grita que o mercado livre é o grande, talvez o único, pressuposto da democracia, a qual só avançaria pela queda dos impostos alfandegários e das reservas de mercado.

A década promoveu nos EUA e, progressivamente, no mundo ocidental um consenso inédito segundo o qual investir, especular e consumir são as práticas democráticas por excelência. Uma fantástica operação cultural conseguiu fornecer um pretexto moral tanto à sede de lucro do capital financeiro como ao consumo supérfluo: ambos manifestariam nosso anseio de democracia.

Segundo os anos 90, a democracia vinga quando podemos comprar e vender livremente produtos e ações. Ou seja, o meio democrático de agir sobre o mundo, nossa expressão política eficiente é a compra e venda. Somos cidadãos por sermos investidores e consumidores. PFL, PSDB, PT... qualquer escolha é irrelevante. Mas importa que possamos circular nos corredores dos supermercados e escolher a Garoto contra a Nestlé e a Tobler. Logo voltaremos para casa e, indignados, sei lá, com o custo dos remédios, venderemos on line nossas ações farmacêuticas.

Em 1989, o capitalismo ganhou do socialismo. O sonho dos anos 90 talvez fosse que o capitalismo tripudiasse também sobre a democracia liberal e realizasse uma nova utopia econômica, psicológica e social na qual o mercado seria a única dimensão de nossas vidas.
Em novembro de 1999, exatamente dez anos após a queda do Muro de Berlim, houve a primeira de uma série de manifestações -a de Seattle contra a Organização Mundial do Comércio. Disseram que era uma baderna. Só podia: todo barulho é pouco para nos acordar do sonho dos anos 90.

Ainda bem que a década acabou. Como o Grinch com o Natal, acho que ela queria roubar a democracia.

14 dezembro 2000

O paradoxo da razão e de Narciso

"Será que o Timor Leste deve mesmo ser independente?" Estava voltando de Dili, quando um amigo me colocou essa pergunta. Respondi, sem refletir, que não havia mais escolha. É o argumento óbvio, que vale nos lugares onde a brutalidade da repressão deixou um passivo inesquecível.

Onde isso não aconteceu, tomar partido é complicado. Será que a Catalunha deve se separar da Espanha? E a Córsega da França?

Em geral, aplaudimos a idéia de que todos têm direito de decidir seu destino. Que as pessoas e os povos escolham livremente se querem associar-se ou dissociar-se! Viva a autodeterminação.

Por outro lado, acreditamos que a razão deveria sugerir caminhos de convivência e de harmonia universais. Compartilhando uma mesma faculdade de pensar, poderíamos apaziguar todos os nossos dissídios à condição de argumentar segundo a santa razão.

Isso em tese, pois, de fato, sempre nos acompanha o sentimento de diferenças irreconciliáveis, que só serão resolvidas a facadas. Tendemos a explicar essa contradição da forma seguinte: no caminho da razão e da paz universal, nos perdemos correndo atrás de ódios étnicos e religiosos, racismos, egoísmos e oportunismos - paixões alimentadas por nosso narcisismo doentio. Extraviados, em vez de raciocinar, gritamos: "A minha (etnia, religião, opinião) é melhor que a sua...". "

Sujeitos racionais poderiam calmamente decidir quem jogou melhor no domingo passado. Agora, se você tiver uma paixão (irracional) para o Corinthians, e eu para o Palmeiras, não haverá diálogo.

Pois bem, esse iluminismo espontâneo, pelo qual nossa razão seria uma sábia conselheira, leva chumbo no relatório de Richard Nisbett sobre "Cultura e Sistemas de Pensamento", que já comentei aqui na semana passada.

Nisbett e seus colegas conceberam uma experiência para verificar se ocidentais e orientais lidam de maneiras diferentes com os argumentos que contestam suas opiniões. Os pesquisadores reuniram dois grupos, ambos compostos por coreanos e norte-americanos.

Ao primeiro grupo, eles apresentaram uma série de argumentos a favor de subvencionar uma pesquisa científica. Todos os membros desse primeiro grupo (coreanos ou americanos) foram uniformemente convencidos. Ao segundo grupo, eles apresentaram os mesmos argumentos a favor, mas acrescentaram uma outra série de argumentos (mais fracos) contra o projeto de pesquisa.

Aqui apareceu a diferença: os coreanos levaram em conta os argumentos contrários e ficaram menos convencidos da necessidade de fundar a pesquisa. Os americanos, longe disso, uma vez examinados os argumentos contrários, ficaram mais favoráveis ainda ao projeto que estava sendo criticado. De fato, eles ficaram mais entusiastas que seus conterrâneos que não foram expostos a nenhuma contestação do projeto.

Nisbett e colegas concluem: quando lhes forem apresentados argumentos contra, os orientais questionam sua própria opinião, enquanto os ocidentais, paradoxalmente, exaltam sua posição inicial. A lógica da reação é esta: quanto mais você me critica, tanto mais me convenço de que estou certo.

Está assim refutada a idéia de que o diálogo e o debate possam resolver nossos conflitos. Aparece uma propriedade inesperada da conduta racional ocidental: a oposição não produz argumentação, mas um fortalecimento "paixonal" da posição inicial.

Estávamos acostumados a perceber a razão como árbitro imparcial que tenta conciliar nossas diferenças raivosas. Eis que, segundo a experiência de Nisbett, a própria razão alimenta a divisão e o conflito.

Podíamos imaginar ingenuamente que houvesse dois sujeitos dentro de cada um de nós: por um lado, o idiota de Narciso, apaixonado por sua própria imagem e cuidadoso apenas de seu interesse. Pelo outro, um sujeito nobre e desinteressado que gostaria de obedecer à razão. A superioridade desse último brilharia num conflito moral resumido pela pergunta: você gosta mais da sua cara ou da verdade? Ora, a experiência proposta por Nisbett mostra que Narciso e a razão caminham juntos, indissociáveis e sem contradição. Aliás, nosso racionalismo fomenta nosso narcisismo: longe de controlar nossas paixões, a razão tem paixões por conta própria.

Curioso paradoxo: somos dotados de um formidável instrumento de debate, mas esse instrumento é sem muita eficácia para nós, pois, no fundo, pouco nos interessa que a razão triunfe. Só nos interessa ter razão.

P.S.: Há uma explicação possível desse paradoxo. A razão ocidental é fundada na certeza subjetiva: em princípio, os sujeitos sabem intuitivamente o que é racional ou não. Por exemplo, "uma afirmação não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa": essa certeza não vem dos livros nem da autoridade da tradição. Ela está em cada um de nós. Exercer a razão significa confiar em nossa intuição subjetiva. Talvez não seja de estranhar que o exercício da razão acabe encorajando um gigantismo do sujeito, o qual, uma vez que é dono da verdade, confunde facilmente suas razões com "a" razão.

07 dezembro 2000

E se a razão não fosse universal?

Sophia Loren ganhou o Oscar em 1961. Tôni S., sentado ao meu lado na classe, murmurava: "Ash coixxash de Sophiia Lôooren...". Cada sílaba era um suspiro erótico.

Alguns colegas psicanalistas da escola francesa ainda falam de "estrutura" com a mesma emoção que Tôni reservava para as coxas da Loren. Se emocionam com a idéia de um mundo de conteúdos irrelevantes organizados por "fatos de estrutura" (vibrato).
Você faz manteiga com leite de iaque nas montanhas do Tibete, eu compro margarina vegetal na esquina. Eu sou anárquico, e você é monge, mas Santa Estrutura paira sobre nossas diversidades: pensaremos e sofreremos do mesmo jeito.

A idéia de uma razão universal é essencial para que a modernidade possa propor uma sociedade de sujeitos equalizados, dotados dos mesmos direitos.

Aliás, a onda racionalista francófona dos anos 50, 60 e 70 era bem-intencionada. Depois da guerra e do genocídio, afirmava: "Você usa quimono, e eu, terno. Não vamos nos matar por isso, pois raciocinamos igual".

A partir dos anos 70, surgiu a suspeita de que o racionalismo traduzisse as aspirações imperialistas de uma cultura branca, masculina, heterossexual e fundamentalmente européia ou norte-americana. Esse debate político não atingiu o dogma da universalidade da razão. Em geral, parecemos admitir a diversidade das idéias e dos costumes e manter a universalidade das formas básicas de perceber e pensar.

Nesse cenário, há uma novidade. No recente congresso da American Psychological Association, foi apresentada uma vasta pesquisa sobre "Cultura e Sistemas de Pensamento". O relatório (por Richard Nisbett, psicólogo da Universidade do Michigan, e outros) será publicado na "Psychological Review" de janeiro.

Nisbett e colegas testam sujeitos da Ásia Oriental e norte-americanos justamente para comparar as maneiras de perceber o mundo e de pensar.

Concluem: "Um número indefinidamente grande de processos cognitivos presumivelmente "básicos" são de fato "maleáveis". (...) As diferenças qualitativas entre populações excluem qualquer pretensão de universalidade desses processos".

Eis apenas três testes, como exemplos. Crianças chinesas e americanas devem organizar um grupo de figuras humanas. As chinesas colocam os meninos, as meninas e as mulheres de um lado e os homens do outro, porque -explicam- as crianças precisam de mães (é uma relação privilegiada).

Os pequenos americanos, ao contrário, separam os adultos das crianças, porque os grandes diferem dos pequenos. Ou seja, os asiáticos organizam a realidade baseando-se em relações entre os objetos, enquanto os americanos preferem organizá-la segundo categorias.

Participantes coreanos tendem a julgar não válido um juízo formalmente correto, se sua conclusão não for plausível. Os americanos mostram a tendência inversa. Ou seja, para os sujeitos asiáticos, o saber que deriva da experiência é, no mínimo, tão importante quanto o respeito da lógica formal.

Jovens japoneses e americanos observam e logo descrevem um desenho animado de cenas submarinas. A grande maioria dos americanos começa referindo-se ao peixe maior: "Havia um peixe nadando à direita". Quase todos os japoneses descrevem primeiro o fundo: "Havia um lago...".

Os japoneses produzem, em sua descrição, o dobro de referências a elementos não-animais (algas e pedras), que não oferecem suporte à identificação. Em contrapartida, os japoneses têm dificuldade em reconhecer o mesmo peixe quando ele reaparece em contextos diferentes.

Os resultados sugerem processos cognitivos discordantes (por exemplo, na apreensão da causalidade e das covariantes) e experiências do mundo bem distintas.

Para os autores, a origem das diferenças encontradas está na organização da sociedade, verdadeira matriz dos processos cognitivos. Esses seriam elaborados inicialmente para lidar com as imposições da convivência social.

Por exemplo, desde a Grécia antiga, o Ocidente valoriza a pessoa autônoma. É normal que essa cultura exalte o debate entre indivíduos, em que a argumentação e a lógica são reguladores decisivos.

Nas culturas asiáticas, ao contrário, é valorizada a continuidade de uma hierarquia harmônica: o compromisso, a conciliação e a coexistência dos opostos são aqui os valores -inclusive lógicos e cognitivos.

A ciência ocidental moderna, nessa perspectiva, é um efeito da tradição retórica individualista.

Para sua demonstração, Nisbett escolheu uma diferença cultural máxima -entre o Oriente e o ápice (americano) do Ocidente. No entanto ele antevê que, entre culturas mais próximas, haja outras diferenças da razão -mais finas, mas não menos significativas.

Para a cultura brasileira, que há tempo se pergunta qual é a relevância de sua diferença, a descoberta de Nisbett é crucial. Quem sabe consigamos verificar um dia se os jeitos sociais brasileiros determinam processos cognitivos específicos. Ou seja, até onde o Brasil é diferente?

Não acabei: na próxima semana, salvo urgências, mais Nisbett.

30 novembro 2000

Vacinas contra as drogas

Os consumidores assíduos de cocaína, heroína ou maconha que querem se livrar de sua dependência encontram hoje recursos químicos de duas classes. Existem produtos que atenuam a sensação de falta. E outros que podem substituir cada uma das drogas, oferecendo uma alternativa consolatória e -espera-se- menos nociva.

Em todo caso, é fundamental que o sujeito mantenha firme a determinação de parar. Para ajudá-lo nisso, há programas de desintoxicação, grupos de interajuda etc.

Ora, um artigo publicado na "New Scientist" de 10/6/2000 traz uma novidade: é possível que verdadeiras vacinas contra as drogas estejam prontas nos próximos três anos. O princípio é o seguinte: moléculas similares à molécula de uma droga são associadas a uma proteína que as torna detectáveis pelo sistema imunológico. Elas podem, assim, servir de isca para estimular a produção de anticorpos específicos.

Um preparado dessas moléculas é injetado no sujeito. A partir daí, as moléculas de droga que entrarem no corpo serão "reconhecidas" pelos anticorpos e aniquiladas, antes que a droga se torne ativa no organismo. Macacos, ratos e humanos, uma vez vacinados, por mais que cheirem ou injetem, não conseguem nenhum barato. O sujeito pára de se drogar, porque a droga não faz efeito. A idéia surgiu nos anos 70, com uma vacina contra a heroína, que funcionava (em macacos), mas oferecia proteção por um tempo muito curto. Nos anos 90, chegou uma vacina contra a cocaína, que foi mais bem-sucedida e está sendo testada em humanos. Há pesquisas em curso para quase todas as drogas.

À primeira vista, o projeto inspira simpatia. As vacinas podem ajudar os sujeitos que se desintoxicam e prevenir as recaídas. Quem sabe, elas ajudem a sarar as cracolândias das metrópoles mundiais.

Mas a idéia das vacinas é também um exemplo da extraordinária desistência moral de nossa cultura. Logo nós, modernos, inventores da liberdade individual, parecemos confiar mais numa modificação material de nossos corpos do que em nossas livres escolhas e decisões. Pois se trata disso: alguém se injeta uma vacina que torna a droga inoperante para que a tarefa de resistir aos charmes da droga seja delegada ao corpo. O sujeito pode afrouxar sua determinação, pois os anticorpos se manterão intransigentes.

Por esse caminho, imaginemos que alguém, por razões morais, decida praticar o celibato e se manter puro: em vez de disciplinar seus desejos incômodos, ele deveria se capar. Se um dia chegássemos a identificar genes ou zonas cerebrais responsáveis por comportamentos que preferiríamos evitar (violência, agressividade, mentira etc.), por que não pouparíamos nossos esforços éticos, recorrendo diretamente a alterações corporais?

Alguém achará que estou exagerando: afinal, quem decide tomar a vacina é o sujeito que quer ser desintoxicado. Livremente, ele resolveria nunca mais ser exposto à tentação da droga.
Certo. Mas aposto que, se dispuséssemos de vacinas contra as drogas, esqueceríamos de pedir o consentimento dos vacinados. Como evitar que um governo decida imunizar toda a população "de risco" (a começar pela carcerária)? Como evitar que os pais vacinem todos os seus rebentos? Qualquer profissional ou pai que conheça a inércia agressiva de um maconheiro adolescente concordaria com essa decisão preventiva. Em pouco tempo, a vacina contra as drogas seria obrigatória e universal.

Se a imunização valesse para a vida inteira (assim como é esperado), lamentaríamos um sério empobrecimento da experiência humana. Adeus, Thomas De Quincy, Charles Baudelaire, Allen Ginsberg e outros drogados. Mas isso é o menos grave.

Eis o pior: quando um caminho importante é impedido, os humanos sempre encontram outros jeitos e inventam desvios. Sobretudo comportamentos que insistem e se impõem (aparentemente) contra nossa vontade -como é o caso da toxicomania- não são escolhas de vida acidentais.

Eles são peças relevantes da engrenagem da personalidade. Por isso não podem ser retirados como se fossem espinhos no pé. Torná-los fisicamente impossíveis significa obrigar o sujeito a encontrar outros comportamentos que tenham uma função análoga na engrenagem. Ou seja, quem renunciar a se drogar apenas porque seus anticorpos impedem a ação da droga achará outros jeitos de gritar sua rebeldia ou sua tristeza.

Em suma, os anticorpos policiarão, talvez, um dia, o uso das drogas. Evitaremos, assim, esforços morais excessivos, e nossas vidas serão, desse ponto de vista, normalizadas. Mas não é o caso de se preocupar em demasia com a chegada de um mundo uniforme e aborrecido.

De fato, as vacinas antidrogas (e remédios análogos) prometem um mundo explosivo e incerto. Eis por que: algum mal-estar psíquico e social mantém as drogas bem perto do centro da experiência contemporânea. Se formos imunizados contra as drogas, o mal-estar será silenciado sem ser ouvido. É inevitável que ele insista e volte a se dizer sob outras formas, imprevisíveis. E provavelmente com violência renovada.

23 novembro 2000

Nas eleições americanas, ninguém votou feliz

Na sexta-feira , fui para o armário de ferramentas, achei uma fita adesiva de sete centímetros de largura, cortei um pedaço e censurei o canto direito inferior da tela da televisão. Alívio.

Quem, nestes dias, assiste à CNN via cabo sabe do que estou falando. O epílogo das eleições americanas é acompanhado pela presença constante dos índices da Bolsa de Valores. Aparecem alternadamente Dow Jones e Nasdaq, com sua variação do dia e uma pequena flecha- verde, para cima, ou vermelha, para baixo. Durante o tempo em que a Bolsa permanece aberta (das 9h30 às 16h, horário da Costa Leste norte-americana), os índices são atualizados constantemente.

É uma prática normal da CNN: as oscilações da Bolsa são notícias relevantes para o grande número de americanos que administram diretamente seu fundo de pensão.

Mas, no caso, foram dez dias de comentários, declarações e debates sobre o futuro político dos EUA com as siglas "Dow" e "Nasdaq" que piscavam, como mensagens subliminares, ludibriando a significação da eleição. Acima (mais exatamente, embaixo, à direita) de tudo o que Bush e Gore pudessem representar, Wall Street pisca. Bush quer impedir que os votos sejam recontados? Muito bem, e a Bolsa? Gore faz um gesto de conciliação? E a Bolsa? A pulsação dos índices parece ameaçar: cuidado, humanos, os deuses poderiam irritar-se.

Descobri que não sou o único incomodado com essa presença tutelar. Bastou sair de casa. Na televisão, aparecem os estados-maiores ameaçando brigas institucionais, assim como militantes democratas e republicanos quase se batendo. Talvez na Flórida as coisas estejam assim: com os dois partidos assoprando a brasa, os próprios jornalistas têm dificuldade em sair do tom polêmico da campanha.

Mas aqui, no nordeste dos EUA, duas semanas depois da eleição, a comédia dos resultados incertos está tendo um efeito diferente. A conversa sobre as eleições é frequente, mas sem entusiasmo: é um dever chato. Ela segue um cenário fixo -que descobri conversando com conhecidos ao redor de uma mesa de jantar. Logo verifiquei sua validade com vários desconhecidos, num café new age como Starbuck's, num bar para yuppies a fim de aperitivo e num pub enfumaçado frequentado por trabalhadores manuais.

No começo, sempre há indignação com o sistema eleitoral que está sendo objeto da zombaria mundial. Alguém lembra uma piada: a rainha Elizabeth teria decidido revogar a independência das colônias, já que essas não conseguem votar direito. Ou então Hugo Chávez e Fujimori estão a caminho da Flórida para monitorar o processo de recontagem dos votos.

A fase indignada dura pouco: logo todos concordam que a metodologia concreta da votação deve ser modernizada. Conclusão provisória: que contem os votos do melhor jeito e que a Justiça decida. E basta. Ninguém parece estar a fim de uma discussão partidária. Não é raro que, de ambos os lados, se comente que essa votação tão parelha é uma bênção -pois o eleito, seja ele quem for, não terá poder político nenhum para realizar suas promessas de campanha.

Isso confirma o que sugerem alguns comentadores: o voto dividido manifestaria que a nação aspira a um governo de centro ou de união. No mínimo, com o atraso do resultado das eleições, parece que os americanos tiveram o tempo de concluir que, na verdade, os dois candidatos não eram nem propunham nada do que eles queriam.

Os eleitores se reconciliam no malogro comum: ninguém, nesta eleição, votou feliz. Por isso é fácil conversar na hora de um desempate tão delicado. Mediocridade dos candidatos? É possível. Mas existe outra hipótese.

Três vezes, nestes últimos dias, ouvi comentarem que "não estaríamos neste pepino se, no lugar de Bush, John McCain tivesse sido escolhido como candidato republicano, pois ele ganharia disparado". A cada vez, os democratas presentes concordaram e declararam que eles também teriam votado nele.

Não sei se McCain teria ganhado, caso fosse escolhido como candidato. O fato é que ele aparece agora como um candidato que teria arrasado. Ora, além de suas qualidades morais, McCain era o único defensor de uma reforma radical do financiamento das campanhas. Ele é lembrado por isso: no imaginário de todos, em sua corrida presidencial, foi derrubado pelas corporações.
Ninguém lembra direito os detalhes da reforma proposta, mas, nas conversas de bar, sobra um princípio extremo: não há por que conferir a pessoas jurídicas o privilégio de apoiar candidatos. Afinal, essa deve ser a prerrogativa apenas de quem vota, do cidadão, da pessoa física, "da gente".

Até ontem, essa idéia era uma utopia democrática de ditos "marginais", lutando contra "o sistema". A surpresa é encontrá-la hoje circulando numa variedade de espíritos de classe média.

A eleição empatada encoraja todos a pensar que cada voto conta. Esse sentimento, temperado com uma dose básica de individualismo americano, parece avigorar a fé nas virtudes de uma democracia mais direta. Sobretudo menos vendida. Não seria mau.

16 novembro 2000

Conselhos para não gastar demais nas festas

É fácil , hoje, encontrar sujeitos que gastam muito mais do que podem -e não só no fim do ano. Eles preocupam os economistas e também os psicólogos e os psiquiatras. Pois há quem considere essa inclinação uma doença, talvez um vício.

Naturalmente, sempre se encontram explicações singulares. Um sujeito quer, inconscientemente, se desfazer de uma fortuna acumulada de maneira duvidosa. Outro deseja sua própria bancarrota, numa verdadeira fantasia erótica. E por aí vai.

Mas, atrás dessa variedade, há um pano de fundo. Nós, modernos, somos obrigados a gastar além de nossas necessidades. Melhor dizendo, nossas necessidades vão além da subsistência física: devemos adquirir e consumir, sobretudo para sermos reconhecidos por nossos concidadãos. Somos de classe A, B, C, D ou E não por nascença ou por outras qualidades intrínsecas, mas segundo quanto possuímos e consumimos, ou seja, segundo quanto gastamos.

Não é de estranhar, portanto, que as estatísticas repitam que os americanos de classe média não poupam nada e se endividam demais. Isso vale para aqueles que se beneficiaram da recente prosperidade dos EUA. Imagine o drama dos outros: empobrecem e devem aumentar os gastos -uma vez que, em nossa cultura, é essa a forma básica da competição social.

No entanto há algo além disso na conduta do gastador. A maioria dos sujeitos que se queixam de sua compulsão (e contemplam estupefatos as contas no fim do mês) compartilha uma fórmula mágica. Na hora de proceder a uma nova compra, eles dizem: "Com tudo o que eu trabalho, tenho direito!". Eles ultrapassam assim suas hesitações. As considerações sobre o dinheiro disponível são silenciadas. O que importa -afirma o sujeito- é que "trabalho dez horas por dia" ou então "saio à luta a cada manhã", "estou na batalha o tempo inteiro", portanto "mereço, é meu direito". Em suma, nós nos sentimos autorizados a gastar não por nossa solvência, mas por nossos méritos.

O cartão de crédito parece ter sido inventado para facilitar essa estranha aritmética. Ele tem uma função dupla. Estabelece meu status, que depende não do que eu tenho, mas de quanto posso gastar (os cartões dão acesso às salas VIPs dos aeroportos). E, sobretudo, o cartão me compreende: sabe que tenho menos dinheiro do que mereço e corrige essa injustiça, autorizando-me a comprar e consumir.

Gastando, afirmamos o triunfo de nossos méritos e de nossos direitos contra a inércia da conta bancária e o peso de nossas dívidas.

Não é uma surpresa que essa conduta seja tão popular. A modernidade começa quando o sujeito não é mais definido por seus deveres, mas por seus direitos.

Enquanto modernos, nosso destino não é ditado pelo serviço que devemos ao dono da terra, pelo dízimo que devemos à paróquia ou pela obediência e pelo respeito que devemos aos anciões da tribo. Em vez disso, nós vivemos livres, com o direito de dispor de nossa pessoa, de circular pelo mundo, de falar sem censura etc. Os direitos se multiplicam. O sujeito tradicional era mais bem descrito como rede de obrigações. Nós somos feixes de direitos.

Com isso, os limites concretos que contrariam o exercício de nossos direitos tornam-se insuportáveis e irrelevantes. Pouco importa que o sujeito ganhe R$ 12, R$ 30, R$ 50 ou R$ 200 por dia. Trabalha muito e, portanto, merece uma televisão de 36 polegadas e alta definição. Ele tem direito (subjetivo) -seja qual for sua mesada (desprezível consideração objetiva).
Ouço sujeitos com dificuldades financeiras: "Se não tenho direito a comer num bom restaurante depois de um dia de trabalho, para que trabalhar?". "Mereço umas férias, afinal, tenho direito de ter uma vida." E o senhor Cartão é o único que compreende nosso problema.
Essas considerações seriam apenas divertidas, se não fosse por um detalhe: no meio da afirmação (um pouco maníaca) de seus direitos, o sujeito moderno é triste.

É uma constatação clínica: a depressão acompanha a caravana aparentemente alegre de nossos direitos e reivindicações. Por quê?

Ultimamente, coube-me ajudar um homem arrasado por uma depressão grave, desde que lhe fora recusado o cartão de crédito em uma loja de departamentos. Havia uma clara desproporção entre esse incidente menor, sem consequências concretas, e a prostração do sujeito. Descobriu-se que a recusa inesperada da loja trazia a lembrança de que sempre resta uma obrigação fundamental, uma dívida que pesa. Ou seja, nosso "direito de ter uma vida" (merecida) não consegue abolir nosso dever de morrer um dia.

Morrer deve ser mais simples, sem dúvida, para quem nasce e vive como um devedor. No momento final, devolve um par de botas que sempre considerou emprestadas. Quem se define pelos direitos, e não pelos deveres, vive uma vida mais engraçada, mais aventurosa e, provavelmente, mais justa. Mas desaprende a morrer. Não lida bem com o fato de que um dia nosso crédito acaba.


É verdade que as companhias de cartões de crédito não nos prepararam bem para essa eventualidade.

09 novembro 2000

De novo, divórcios e crianças

Quinze dias atrás, nesta coluna, comentei uma pesquisa que desmente algumas banalidades afirmadas apressadamente desde os anos 60.
Segundo essa pesquisa, não é verdade que o divórcio afete as crianças só de maneira passageira. E a felicidade ou o alívio dos pais que se separam não parece ser um grande consolo para os rebentos do divórcio.

A perspectiva de ver os pais mais felizes não faz necessariamente a felicidade das crianças. Claro, elas sofrem também quando o casamento dos pais se eterniza numa tragicomédia de brigas ou no silêncio do ódio e da indiferença. No entanto a coluna queria salientar a leviandade de quem pinta o divórcio em cor-de-rosa.

Recebi uma enxurrada de e-mails: comentários e depoimentos, todos corajosos e complexos. Concordando ou não comigo, os leitores entenderam que eu propunha que os pais freassem seus impulsos divorcistas e pensassem mais nas crianças. Reconheço-me nessa sugestão, mas a questão é, obviamente, complicada. Por isso volto ao assunto.

A família sobreviveu às maiores mudanças de nossa sociedade e cultura. Parece ser a única instituição imortal -constante peça central da reprodução social. De fato, ela sobreviveu porque mudou, adaptou-se aos tempos.

Deixou de ser uma pequena tribo e se tornou nuclear, composta quase exclusivamente pelos pais e suas crianças. Também ela não se organiza mais para administrar bens em conjunto e assegurar a continuidade da dinastia.

Hoje ela se funda nos sentimentos de seus membros: é nuclear e apaixonada. Aliás, é nuclear justamente por ser fundada em um princípio -a paixão dos cônjuges.

Às vezes, o núcleo deve incluir os avós ou um parente que sobrou, mas é com pesar e abrindo uma exceção. Isso, não por ingratidão ou porque a convivência com os patriarcas ou os primos seja necessariamente chata, mas porque a casa é um ninho de amor e, como tal, requer uma intimidade protegida.

Aceitar conviver com outros é ameaçador: sugere que a festa amorosa acabou, e a obrigação da consanguinidade passou a prevalecer sobre as necessidades do sentimento. Na família moderna, o amor também rege o laço entre os pais e as crianças.

Certo, achamos que os miúdos nos devem respeito, porque tal é sua obrigação. Mas, no fundo, queremos que eles obedeçam por amor. Assim como nós, de fato, os provemos de cuidados não por obrigação de pais (que nos pareceria um dever bem abstrato), mas porque os amamos.

A família assim construída corresponde exatamente ao que somos: indivíduos apaixonados por nossa liberdade e convencidos de que a autenticidade dos sentimentos é nosso melhor guia. O resultado é uma instituição bonita, intensa e condicional: se o amor acaba, acaba a festa.
Podemos lamentar essa volatilidade, mas, de fato, ninguém aguentaria mais casamentos que não fossem justificados pelos sentimentos e pela esperança de uma união feliz. Assim como dificilmente os pais aguentariam crianças que obedecessem só por obrigação tradicional.

Aceitemos, então, os casamentos eternos enquanto duram. Resposta à pergunta "como reconhecer o fracasso?": no mínimo, seria bom evitar que ele fosse um efeito da intransigência, que surge quando a aspiração a ser feliz se transforma numa exigência imperiosa e impossível. Tipo: "Shangri-Lá!, não aceito nada menos que isso e quero que seja agora ou então nada".
Como observou com toda razão uma leitora, Maria Renata Pinto Coelho, "é o casamento -e não o divórcio- que nos é vendido como um conto de fadas".

A expectativa excessiva produz intolerância. Com isso, negociar e procurar os compromissos sempre necessários numa vida de casal (e, em geral, numa família) parecem constituir uma traição de nossos sonhos de união perfeita. Nós nos divorciamos por esperar demais do casamento.

Ora, as modalidades da convivência ou da separação dos pais transmitem às crianças uma espécie de lição de vida implícita. Por exemplo, um casamento mantido no sofrimento e na humilhação pode transmitir às crianças uma lição (péssima) de resignação e covardia. Outro, também mantido ao custo de mil compromissos, pode transmitir uma humildade saudável, ensinando que é possível amar, mesmo quando o parceiro não corresponde plenamente às nossas fantasias.

Do mesmo jeito, um divórcio pode ser uma lição de honestidade, significando que os pais não quiseram arcar com uma mentira. Outro divórcio pode simplesmente sugerir às crianças que a felicidade deve ser perseguida a qualquer custo.

Esse é o caso pior. Pois como convencer um adolescente de que ele deve ir para a escola e desistir do enésimo "baseado", se, no seu entender, seus pais se separaram logo para não desistir de nenhum hipotético prazer?

A moral de buscar prazer e felicidade a qualquer custo é, notou em seu e-mail outra leitora, Rosangela Padovan, um "sinal dos tempos", ou seja, mais uma causa que um efeito dos divórcios. Concordo. Mas essa não é uma razão para que os pais validem essa máxima duvidosa nem na hora de se separarem.

02 novembro 2000

Efeitos colaterais

Atendi vários sujeitos que procuravam (legitimamente) uma análise ou uma terapia para sofrer menos e viver melhor, mas que se preocupavam com as mudanças que a terapia poderia acarretar. Temiam que a experiência os transformasse ao ponto de empobrecer suas vidas. Tratava-se, quase sempre, de artistas, convencidos de que havia uma relação entre seus sofrimentos neuróticos e sua capacidade de criar e se expressar.

Imaginemos um exemplo análogo aos casos que conheci. Um sujeito viveu uma infância particularmente nefasta: sei lá, o Camboja na época de Pol Pot, deportações, campos, mortes, lutos e fome. Hoje, nosso sujeito -refugiado em terras hospitaleiras- faz desses horrores a fonte privilegiada de sua inspiração artística. Críticos e público reconhecem que sua produção expressa, por exemplo, uma angústia que alcança proporções universais. Nela, todo mundo reconhece um pouco de seu próprio desamparo.

Mas nosso artista acorda a cada noite urrando, perseguido por pesadelos de caveiras e meninos armados de metralhadora. Ele vive numa ansiedade que impede qualquer procura amorosa. A solidão multiplica sua dor.

Imagine agora que esse sujeito peça a ajuda de um psicanalista ou de um psicoterapeuta. Ele quer dormir melhor e aprender a sorrir. No entanto ele suspeita que seu sofrimento seja a alma de sua arte -ou seja, daquilo que ele tem de melhor para oferecer ao mundo. Sua preocupação não é apenas um cálculo oportunista como: se me curo, perco a habilidade que paga minhas contas. Há mais: separar-se desse sofrimento lhe parece uma traição, pela qual ele desistiria de ser ele mesmo.

Essa preocupação não deve ser minimizada. Em princípio, uma psicoterapia ou uma análise não produzem (não conseguem produzir) mudanças que não sejam desejadas pelo sujeito. Aliás, geralmente isso é considerado como um limite da eficácia das psicoterapias. Reclama-se de que elas não conseguem extirpar nossas neuroses como se extirpam sisos cariados. No caso que estou levantando, ocorre o contrário: os sujeitos receiam que suas neuroses sejam extirpadas como dentes.

Essas reflexões nascem lendo um artigo notável de Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria da Johns Hopkins University. O texto faz parte da coletânea "States of Mind" (editada por R. Conlan), que é, de longe, o conjunto de textos mais honestos e sérios que já li sobre a relação entre cérebro e mente (portanto entre psicoterapia, psiquiatria biológica, neurologia etc.).

Jamison constata que existe uma correlação estatística entre a criatividade artística e a psicose maníaco-depressiva. Contrariamente ao que sugeria a ideologia dos anos 60 e 70, a doença criativa não é a esquizofrenia, mas a mania, em sua alternância com a depressão. Ora, a psicose maníaco-depressiva tem origem genética. Mais cedo, mais tarde, o gene que torna alguns sujeitos vulneráveis a essa doença será isolado. Portanto disporemos de uma cura preventiva.
Redfield Jamison pergunta: "Se há uma relação entre desordens do humor e gênio artístico, que riscos corremos tratando a desordem ou mesmo, pelos testes e pela terapia genética, eliminando-a completamente?" O risco seria produzir uma humanidade futura sem os equivalentes de Schumann, Tennyson, Hemingway, Lowell, Edgar Poe etc.

Segundo Jamison, o problema é que, com o sofrimento maníaco-depressivo, seria suprimida uma parte relevante (embora dolorosa) da experiência humana. "Esperamos -ela escreve- que (os artistas) contemplem aqueles aspectos da vida que nós preferimos ignorar; que eles olhem para a brevidade da existência, que vejam a corrupção do universo e saibam como a morte nos espreita e que, com isso, ainda consigam afirmar a força da vida perante a morte. É bem possível que sofrer de psicose maníaco-depressiva permita a algumas pessoas criativas produzir essas reconciliações".

Jamison (que sofre ela mesma da doença) não minimiza o sofrimento maníaco-depressivo. Tampouco recusa os tratamentos possíveis. Mas lembra que a doença psíquica é também uma vivência que estende os limites da experiência humana. Suprimir geneticamente uma dimensão dessa experiência é tanto mais problemático quando, como nesse caso, ela permite a existência de obras que valem para todos.

Fácil egoísmo de leitor ou espectador? Acho que não. Muitos criadores não gostariam de se ver livres de sua mania e de sua depressão se, em troca, perdessem o que dá sentido a suas vidas. O poeta Robert Lowell dizia de suas crises de mania que "a glória, a violência e a banalidade dessa experiência" é algo que vicia. Certamente ele não aceitaria uma cura cujos passos ele não pudesse controlar cuidadosamente.

P.S.: A coluna da semana passada, "Crianças do Divórcio", suscitou um número inusitado de e-mails. Agradeço aos leitores. É impossível responder a todos. Na próxima quinta, retomarei o tema, debatendo algumas das questões levantadas pelos comentários recebidos.

26 outubro 2000

As crianças do divórcio

De 31 de outubro a 4 de novembro, acontecerá em Curitiba o Congresso Internacional de Ética e Cidadania. Apresentarei um relatório sobre as mudanças na família contemporânea.

É um tema ideal para um encontro no qual dialogarão juristas e psicanalistas. Pois, no caso da família, é possível verificar como as mudanças jurídicas pesam na transformação de nossa subjetividade.

Começarei por 1969, quando, na Califórnia, aceitou-se que maridos e mulheres se divorciassem sem pretextar adultérios ou crueldades físicas e mentais. Os legisladores ratificaram, assim, a opinião da maioria. Claro, há casamentos em que os cônjuges traem a confiança recíproca ou passam o tempo se jogando louça na cabeça. Mas, pensavam os californianos, na maioria dos casos, isso não é necessário para querer se separar. Chega de ter que inventar amantes e manchas roxas para convencer o juiz.

A lei autorizou, então, que dois adultos casados pudessem separar-se, desde que um deles, sem dramas e culpas, simplesmente não estivesse mais a fim. Você sabe como é, o tempo passa, o amor se perde, as crianças gritam, os cabelos do parceiro embranquecem e a pessoa se pergunta: não será a hora de viver dias mais agradáveis?

A lei californiana conquistou rapidamente o resto dos Estados Unidos e do mundo. Ganhou até nos lugares onde se divorciar continuou sendo complicado. Pois, de qualquer forma, a lei californiana promoveu um novo padrão de racionalidade em matéria de casamento. Tornou-se banal considerar que é legítimo (ou seja, justo, mesmo se não for legal) separar-se, quebrar uma família, quando um dos dois ou os dois acham que o laço perdeu a graça.

Faz sentido. Tentar ser feliz é um direito moderno. Por que deixaríamos que o casamento infernizasse nossa vida? Com a facilidade dos divórcios, surgiu a pergunta: como as crianças lidarão com essa experiência?

A psicologia produziu uma série de afirmações apressadas. Sem verificar, assegurou que seria muito melhor para os filhos lidar com a separação dos pais que assistir às suas brigas cotidianas e à sua constante infelicidade. Geralmente, acrescentou que, por mais que seja doloroso, o divórcio, para a criança, seria uma crise passageira.

Essas idéias eram palavras para justificar uma prática social que corresponde aos desejos dos adultos. J.Wallerstein, J.Lewis e S.Blakeslee acabam de publicar "The Unexpected Legacy of Divorce" (A herança inesperada do divórcio, Hyperion, NY), em que pesquisam filhos e filhas de divorciados ao longo de 25 anos. Demonstram que, para as crianças, o divórcio não é uma crise passageira, mas acarreta consequências que incidem sobre a vida adulta. Salvo casos de violência explícita, as crianças são mais felizes com uma família que se mantenha unida, mesmo que seja de briga em briga.

No livro, o divórcio é culpado por todo tipo de sequela nas crianças, desde depressões severas até dificuldades tardias na vida sentimental e amorosa. Os fatos são convincentes, mas faz falta uma explicação mais satisfatória que a trivialidade segundo a qual o divórcio seria traumático por produzir abandono ou, no mínimo, negligência por parte dos pais -muito preocupados em refazer suas vidas.

Ora, numa recente emissão de rádio consagrada ao livro, um sujeito telefonou para comentar: "Pois é, concordo com tudo, mas será que os pais não têm direito de ser um pouco felizes?".
A pergunta manifesta qual foi a mudança subjetiva ratificada pela lei californiana e desde então adotada pela consciência moderna. Ela diz que o projeto de ser feliz é mais importante do que qualquer obrigação -inclusive a de criar as crianças no quadro de uma família. Os pais que se divorciam transmitem esta opção a seus rebentos, que se tornam, portanto, os arautos da nova disposição subjetiva, assim resumida: o que mais importa é se dar bem.

A mudança em questão explica muito do que nos estranha na conduta das crianças do divórcio e, por extensão, dos jovens. Pois, quer seus pais sejam divorciados quer não, todos os jovens pertencem hoje à (primeira) geração do divórcio. São filhos da época em que a única obrigação institucional que sobreviveu na modernidade -a da família- cedeu, enfim, diante do ditado: procure sua felicidade individual!

Não é o caso de moralizar sobre essa mudança institucional e subjetiva. Seria apenas um exercício de nostalgia estéril e um pouco hipócrita. As autoras do livro sugerem uma série de medidas terapêuticas e preventivas para ajudar as crianças do divórcio. São idéias para limitar os danos, pois é duvidoso que possamos resistir a uma mudança já incorporada por nossa cultura.

Muitas vezes nos queixamos, porque nossos rebentos se engajariam pouco em causas nobres, se drogariam mais, tentariam prosperar sem suar nenhuma camisa e outros lugares-comuns da besteira parental. De fato, os ditos rebentos respondem ao que lhes foi transmitido quando decidimos que nosso anseio de felicidade, conforto e prazer não deve recuar- nem mesmo pelo bem deles.

19 outubro 2000

Saudosa maloca

Na próxima semana, vou a Porto Alegre para participar do congresso "Brasil: Descoberta/Invenção". De novo, os 500 anos. Comemorei a fatídica semana de abril em Porto Seguro, na Conferência dos 500 Anos dos Povos Indígenas. As questões levantadas naqueles dias seguem comigo.

Estamos vivendo a Década Internacional dos Povos Indígenas. Ela terminará com a Declaração dos Direitos Indígenas, que será votada na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 2002.
Um primeiro esboço da declaração é conhecido desde 1994. O eixo é a idéia de que a autonomia política e econômica de um povo é essencial para que ele possa preservar sua cultura.

Faz sentido. Afinal, os povos indígenas mantidos sob tutela política e à força de subsídios sociais tornam-se quase sempre miseráveis caricaturas de si mesmos. Seus usos e costumes, sua cultura e seu artesanato se reduzem a uma pacotilha de suvenires para turistas ecológicos.
Aproveitando minha estada em Sydney no mês de setembro, mergulhei um pouco no debate local sobre o presente e o futuro dos aborígines. Li várias defesas do separatismo, propondo que os aborígines constituam uma nação e um Estado à parte. Todos os autores afirmam que uma comunidade de cultura implica a autonomia, a soberania e a autodeterminação de uma nação.

Alguns contam com a Declaração de 2002 para que a reivindicação indígena possa ser levada a uma corte internacional, onde seria apoiada pelas Nações Unidas (que sancionarão a declaração). Entende-se que essa perspectiva dê alguns calafrios no governo australiano. Os governos americano e brasileiro também não achariam muito engraçado.

Mas, por mais que essas propostas pareçam incômodas aos governos e às maiorias culturais ocidentais, elas se fundam numa premissa com a qual todos parecem hoje concordar. Até quem se opõe ao separatismo reconhece que uma cultura deve ser preservada por algum tipo de autonomia e soberania. Ora, esse acordo automático me inspira um certo mal-estar.

Pois aparece, assim, um paradoxo: as idéias que alimentam o projeto de separatismo ou autonomia indígenas são obviamente opostas à colonização cultural dos povos indígenas. Mas essas idéias encontram um acordo quase unânime justamente por serem a fina flor da própria cultura ocidental.

Explico: as idéias de autodeterminação e soberania do povo são invenções da filosofia das luzes, aqui adaptadas à idéia de que a uma cultura deva corresponder uma nação -que nasce com o romantismo alemão. Em suma, os princípios pelos quais nos parece bom que os indígenas se separem e se autogovernem não foram transmitidos pelos anciães das tribos. Eles são importados.

Isso não muda minha simpatia para com os movimentos aborígine ou indígena. Mas corta o embalo: é chato descobrir que nossas melhores intenções podem ser culturalmente tão colonizadoras quanto uma integração forçada.

Nesse campo, o cúmulo é representado por nosso desejo de preservar as culturas indígenas. O cuidado com a preservação do passado, de seus monumentos e vestígios é uma paixão muito recente -nasceu na segunda metade do século 19. Ora, nosso desejo de preservar as culturas indígenas nasce porque, por considerá-las (erroneamente) como primitivas, achamos que elas sejam um resto de nosso passado. Queremos guardá-las intatas não por generosidade, mas como um álbum de daguerreótipos de família.

É bem possível que, com o pretexto de preservar, queiramos de fato forçar a permanência de nossos "protegidos" numa espécie de presente imutável, feito para satisfazer apenas nosso anseio nostálgico.

Alguém poderia responder: "Tanto faz! Preservando, damos a índios e aborígines uma chance para que vivam segundo sua cultura". Mas os fatos dizem outra coisa: as políticas de preservação das quais parecemos capazes podem ser tão genocidas quanto uma conquista. É o que percebemos quando visitamos reservas indígenas pelo mundo afora.

Quanto mais somos modernos, ou seja, quanto mais nos definimos pelas potencialidades de nosso futuro, tanto mais sofremos de nostalgia. Adoramos a nostalgia, porque ela nos confirma na ilusão de que temos uma identidade, embora perdida. Graças à nostalgia, acreditamos ser alguma coisa a mais do que nossa agenda de amanhã. Por isso, para nos "reencontrar", frequentamos pousadas sem luz elétrica, tomamos chás "orgânicos" e, no mesmo estilo, protegemos reservas indígenas.

Não é um acidente se essa preservação regularmente avilta o que queremos preservar. Precisamos da imagem de um passado feliz. Mas precisamos também que, vista de perto, essa imagem seja um pouco repugnante. Sem isso, não poderíamos continuar correndo. Ou seja, os índios são sábios, vivem de acordo com a natureza etc. Mas damos um jeito para que a maloca da reserva, de fato, feda a álcool e a abandono.

Azar dos índios: além de ter sua terra conquistada, vieram ocupar um lugar desconfortável da psique moderna -onde são idealizados, sob a condição de se perder na miséria.

02 outubro 2000

Encerramento

De fato, as medalhas de ouro são de prata coberta de folhas de ouro -seis gramas por medalha.

O Brasil estava antevendo cinco medalhas de ouro. Assim, perdemos 30 gramas de metal precioso. Não vamos fazer drama. Há de se convir que não é muito -sobretudo comparando com o ouro que, nos séculos passados, deixou o Brasil a destino da Europa.

Brincadeira à parte, não sei mesmo se é para reagir ao pouco sucesso nesta Olimpíada. Há a tentação de esquecer e pensar em outras coisas, que inelutavelmente parecerão mais sérias. Nesse caso, adotaremos a seguinte versão: os brasileiros melhoraram suas colocações em uma série de especialidades (isso é verdade). Apenas faltou um pouco de sorte.

Mas talvez essa seja uma boa ocasião para inventar uma política de cuidados com o esporte de competição, para que as alegrias oferecidas pelas vitórias futuras ajudem a criar e valorizar a imagem de uma comunidade de destino. Impor respeito geralmente ajuda a se respeitar a si mesmo.

Em Montreal-1976, a Austrália teve uma de suas piores atuações: nenhum ouro, uma prata e quatro bronzes. Em 24 anos -três gerações de atletas- subiu ao quarto lugar na classificação das nações (atrás de EUA, Rússia e China).

Como isso aconteceu? Imediatamente depois de Montreal, foi fundado o Instituto Australiano do Esporte (AIS), com o intento de reunir em Canberra todos os melhores atletas australianos, oferecendo-lhes a possibilidade de viver e treinar juntos e de viajar seguidamente para fora do país, confrontando-se com adversários internacionais. O Instituto se associou às diferentes federações, criando um programa de identificação de talentos, pelo qual são reconhecidos precocemente os fenótipos de possíveis atletas. É só uma indicação.

Hora de concluir. A cerimônia de encerramento foi melhor do que a de abertura -cheia de humor e ironia. Mas senti um mal-estar quando moças vestidas de Grécia antiga, caminhando hieraticamente em câmera lenta para sugerir valores sagrados, vieram passar a bandeira olímpica para o prefeito de Atenas. A música de fundo era tão óbvia quanto a tentativa de criar alguma significação elevada para o evento.

Tudo bem, o ideal olímpico é bonito etc. Mas a semântica de elevador sempre cheira a manipulação. Se as Coréias estiverem unidas em 2004, quando a juventude do mundo competirá em Atenas, não será por ter desfilado juntas em Sydney. O desfile terá sido a ocasião de expressar um anseio. Só isso. E já é bastante.

Os bons sentimentos, quando encenados ostensivamente, ficam melequentos e dão vontade de voltar logo para o mundo real.

01 outubro 2000

Balanço olímpico

O primeiro-ministro australiano, John Howard, fez três observações que me chamaram a atenção.

A primeira tenta recuperar politicamente um sucesso esportivo. Howard não é muito favorável à autonomia dos aborígines e à idéia de compensações pelos abusos passados. Ele interpretou a vitória e a popularidade de Cathy Freeman como a prova de que a comunidade australiana estaria menos dividida do que dizem.

Para entender o alcance dessa declaração, imagine que, depois da bela conquista da prata no revezamento 4 x 100 m, FHC venha e declare que o Brasil está unido e solidário, pois quatro homens correram juntos até as estrelas.

Escutando esta primeira observação de Howard, quase fico contente que a campanha do Brasil seja um meio fracasso.

A segunda declaração do premiê é mais interessante. Segundo Howard, os australianos, a começar pela crianças, não praticam esporte quanto se esperaria. Isso parece estranho, pois é cômodo considerar os resultados olímpicos como uma consequência da difusão democrática do esporte. Ou seja, se todos pudessem nadar, jogar tênis, teríamos mais campeões. Na verdade, não é bem assim. Os países socialistas no passado simultaneamente democratizaram a prática do esporte e promoveram o esporte de competição. Mas as duas coisas não vão necessariamente juntas.

Uma piscina em cada escola não é suficiente para produzir dez Gustavo Borges e, entre eles, por fatalidade estatística, um Ian Thorpe. Para produzir atletas ainda é preciso um incentivo econômico, técnico e popular.

Aqui a coisa complica. Todos queremos uma piscina em cada escola. Mas não concordaríamos com a idéia de que seja também uma prioridade incentivar o esporte de competição para ganhar mais medalhas. Há coisas mais urgentes, você dirá com razão.

Mas considere o seguinte. Por que um grupo de fiéis se cotiza para construir uma igreja, quando cada um deles mal consegue pagar as contas do mês? É que, sem igreja, eles não constituiriam uma comunidade e cada um deles seria ainda mais derrelito no mundo. Por que organizar exposições e subvencionar as artes quando há famílias passando fome? Por que erigir monumentos quando ainda faltam casas? É que, sem tudo isso, os sem-teto ficariam também sem história, sem cultura e sem Brasil. A mesma lógica vale provavelmente para o esporte de competição.

Justamente, Howard -foi sua terceira observação- disse que os Jogos estavam sendo psicologicamente ótimos para a Austrália. Pois é, não gostaríamos de poder dizer o mesmo para o Brasil?

28 setembro 2000

Corre, Claudinei, Corre

Cathy Freeman vai tentar os 200 m rasos, que não são sua especialidade. Competirá sem pressão, tipo: se conseguir, melhor. A imprensa local crê num duelo entre Cathy e Marion Jones, a favorita. O marido da americana (CJ Hunter, campeão de arremesso de peso) testou positivo para anabolizantes. Isto não tem nada a ver com ela, mas é suficiente para pintá-la em cores sombrias, enquanto Cathy é toda sorrisos. O "Sydney Morning Herald" colocou-as em primeira página, com um subtítulo equivocado: "Same race, different circumstances". Eles queriam dizer "Mesma corrida, circunstâncias diferentes". Mas "race" significa também raça. Como Marion Jones é negra americana, lia-se: Cathy e Marion, mesma raça. O clima de reconciliação que preside a festa olímpica tem seus atos falhos.

O paralelo, na verdade, é furado. Na Austrália não houve importação de escravos africanos. O país, além de estar longe das rotas atlânticas, nasceu tarde demais para isso (o tráfico estava em seus últimos suspiros). Os aborígenes eram os habitantes imemoriais desta terra. Seu destino não é paralelo com o dos negros, mas com o dos índios sul e norte-americanos. Os jovens que carregam as medalhas e as bandeiras nas premiações estão vestidos como australianos do cerrado (o "bush"): akubra (é o chapéu de abas australiano), impermeável de tecido encerado e botas.

Os onipresentes voluntários estão também de akubra, mas com uma camisa cujos motivos evocam a arte aborígene. Os indícios apontam para o lugar onde a reconciliação pode acontecer: a terra do "outback", o retroterra quase deserto e selvagem. É o lugar onde é possível, sem idealizações baratas, reconhecer que os aborígenes sabem viver melhor do que os brancos. É o lugar onde a cultura aborígene impõe respeito. É também o lugar de um patrimônio compartilhado, de onde talvez australianos e aborígenes consigam hoje enxergar uma nação comum.

Ocorre que a Amazônia tem exatamente essa função para o Brasil. No entanto a reconciliação não está na ordem do dia. Basta conferir o lugar que coube aos índios nas festas dos 500 anos. Nada de estranho nisso tudo: o país tem uma tradição de exclusão antiga e estabelecida. Ele funciona a exclusão, assim como um motor, a gasolina. Falando nisso, Claudinei Quirino está na semifinal dos 200 m. Sua glória e dificuldade é que ele não é empurrado, como Cathy, pela vontade de inclusão de uma nação inteira.

Ao contrário, carrega nas costas o peso de uma persistente vontade de excluir. Por isso nesta madrugada terei ido lá gritar: "Corre, Claudinei, corre".

A seleção não jogou mal; ela é ruim



Então, se entendi bem, os jogadores da seleção de futebol foram mal escolhidos. Ou, se foram escolhidos direito, renderam muito menos do que era normal esperar. Também foram e seguem sendo paparicados, com hotéis de luxo e salários muito altos. Ou, então, o astral negativo do técnico influenciou todo mundo.

A saída precoce foi uma vergonha, um vexame, uma humilhação. Essas palavras apareceram ontem na imprensa. São expressões estranhas em Sydney, onde a imprensa e a torcida reconhecem e elogiam seus atletas derrotados.

Não somos menos generosos do que os australianos. É que parecemos não ter a menor dúvida de que, no futebol, o Brasil é o melhor. Portanto, perdendo, os jogadores nos humilham, desmentem nossa essência. Além disso, como só podem ser os melhores de todos, se perdem, é por safadeza.

Luxemburgo declarou: "Tivemos todas as chances do mundo para chegar à semifinal, mas jogamos mal". É uma frase engraçada, pois cada time tinha (e alguns ainda têm) todas as chances de chegar até a medalha de ouro.

Ele quis dizer que o Brasil era time forte para chegar à semifinal sem problemas, mas jogou mal.

Jogar mal é sempre apresentado como um acidente. Somos os melhores, mas às vezes (muitas vezes, ultimamente) jogamos mal.

Vi tenistas, depois de errar um golpe, olhar para a raquete procurando algum desajuste das cordas que explicasse o erro. Pois bem, a seleção joga mal, e todos -jogadores, técnicos, torcedores- olhamos para as chuteiras. Será que quebrou uma trava?

Pergunto: quantas vezes a seleção vai ter que jogar mal para que a gente comece a reconhecer que ela é ruim mesmo? E, mais difícil ainda, para que aceitemos a idéia de que a ruindade talvez não seja o resultado de escolhas erradas, mas o reflexo de um futebol que não é mais o rei dos gramados?

Decidimos que o futebol é um gene brasileiro. Até que essa crença mude, vai ser difícil melhorar.

Às vezes, famílias brasileiras com filhos adolescentes emigram para os EUA. Os filhos, que jogaram dez várzeas na vida, descem do avião com a idéia de que vão arrebentar na bola. Chegam em sua nova escola anunciando que são brasileiros como se fosse a mesma coisa do que campeão mundial júnior. Se não forem selecionados na hora para o time, o técnico é burro e americano não entende nada de futebol. Em geral, esses jovens passam para outro esporte, o que não constitui uma perda para o futebol nacional ou americano. Moral da história: para melhorar, é bom reconhecer que a gente é ruim.

Que tal comprar alguns jogadores africanos, para ver se anima o futebol nacional?

27 setembro 2000

Corre, Cathy, corre

Às oito da noite de segunda a Austrália parou. O estádio Olímpico estava lotado. As áreas de alimentação, onde sempre circulam pessoas à procura de uma cerveja ou de um peixe frito, ficaram desertas. Fora do estádio, no país inteiro, 10 milhões de australianos pararam na frente da TV para ver Cathy Freeman correr.

Em Sydney nenhuma prova era tão esperada quanto os 400 m rasos feminino. De nenhum australiano queria-se tanto que ganhasse, a ponto de que Cathy acendesse a chama olímpica, embora sua prata em Atlanta não justificasse a honra. A decisão foi contestada por alguns, certo, mas por medo que a pressão comprometesse a performance de Cathy.

Única em roupa de látex com capuz, Cathy partiu inconfundível, como uma extraterrestre ou a encarnação do espírito da terra, e correu com o estádio gritando de pé. Eu estava ao lado de crianças que não pararam um instante, como se os berros fornecessem oxigênio para ela: "Run, Cathy, run" ("Corre, Cathy, corre").

Ela correu e ganhou. Deu outra volta carregando, na mesma bandeira, cores australianas e aborígines. Impossível resistir à alegria do público que celebrava a vitória do símbolo da reconciliação.

O sonho de reconciliar a nação com seus indígenas, após 200 anos de horrores e abusos, estava presente desde a cerimônia de abertura, quando a menina loira pegou a mão do velho aborígine. Por outro lado, recentemente, o primeiro-ministro se negou a fazer um pedido de desculpas aos aborígenes pelos abusos. Problemática é a questão de eventuais compensações: por que a Austrália de hoje pagaria por pecados que não são dela? Debate-se sobre números: quantos foram massacrados? Discute-se sobre os riscos de dividir a nação e quebrar a unidade do território nacional, caso seja reconhecido um direito aborígene à autodeterminação.

A avó de Freeman foi uma criança das gerações roubadas, que foram arrancadas de seus pais para serem criadas como brancas e -pensavam os pretensamente ilustrados- salvas da barbárie. Freeman criticou repetidamente o governo federal.

Com esse passado e com seu nome que fala de liberdade, ela correu reto no meio do emaranhado mantendo as duas bandeiras juntas e, sobretudo, sentem os australianos, provando que a integração é possível -pois uma aborígene é a querida da nação.

Penso nos índios brasileiros e americanos, nas armadilhas do pós-colonialismo mais bem intencionado: é difícil atravessar esse emaranhado. A corrida de Cathy foi a felicidade de um momento de ilusão. Mas foi também a ocasião festiva de expressar uma vontade coletiva de justiça.

26 setembro 2000

O país do vôlei

No vôlei está dando quase tudo certo. Shelda e Adriana ganharam a prata. A final com as australianas foi parelha: dois sets, mas 12/11 e 12/10. Sandra e Adriana Samuel levaram o bronze. O vôlei de quadra masculino ganhou de Cuba por 3 a 0.

A dupla masculina de vôlei de praia joga a final. A equipe feminina está qualificada no primeiro lugar no grupo, como a masculina. O Brasil pode ter medalhas em cada especialidade do vôlei.
Estaríamos passando de país do futebol para do vôlei? De fato, seria agradável ser o país de um esporte no qual a gente ganha. Entre Atlanta e Barcelona, já há tradição suficiente para a mudança.

O estereótipo de paraíso tropical de sol e praias comporia a vinheta do país do vôlei na areia. Pelos cartões postais já parece que passamos na praia o tempo todo, seria só praticar um pouquinho: vai sair natural, como as peladas.

Além disso, o vôlei é um bom esporte para o Brasil, fácil de ser praticado nas escolas. Prosperou com o carinho dos torcedores e a dedicação de duas gerações de jogadores e jogadoras. E também graças à tranquilidade de poder jogar sem que, a cada derrota eventual, o Corcovado ameaçasse ruir. Por isso mesmo espero que a passagem do país do futebol à terra do vôlei não aconteça tão cedo.

Domingo de manhã, na praia de Coogee, um grupo de australianos organizava uma pelada. Estava sentado na mureta, vestindo uma camiseta da torcida brasileira. Vêm perguntar: "Brazilian?" e querem que eu jogue. Acham que recuso só por me sentir superior. Mal podem imaginar que toquei em minha primeira bola de futebol aos 16 anos, num colégio do arcebispado de Milão.

Não adianta: apesar da eliminação da seleção, brasileiro para eles segue significando bom de bola. Ainda ontem, um simpático motorista de táxi (e mal informado) não acreditava de jeito nenhum que a seleção brasileira estava voltando para casa.

Escrevi ontem que, se pararmos de pensar que somos por natureza o país do futebol, talvez seja possível treinar e jogar melhor.

Agora, todos conhecem a história do rapaz um pouco desmiolado que um belo dia parou de acreditar que ele era um grão de milho. Foi liberado e ia para casa. De repente volta ao hospital: "Eu sei que não sou um grão de milho, mas vocês informaram às galinhas?". Acontece também com o futebol: os outros acreditam em nosso delírio de grandeza.

Será que daqui a pouco, em qualquer praia do mundo, se formos identificados como brasileiros e convidados para um jogo de vôlei, vamos ter que lidar com a expectativa que um mestre enfim entrou em campo -tipo: vamos ver do que ele é capaz?

23 setembro 2000

A "Tosca" e os toscos

Os Jogos são a ocasião de um Festival Olímpico das Artes. Há de tudo: cerimônia aborígene, balé, ópera, ciclo de filmes, exposições de arte, teatro.
O programa é uma declaração que diria: "Sydney está orgulhosa de ser a sede da Olimpíada, mas a cidade não é só isso. A paixão pelo esporte é apenas uma faceta. Gostamos de outras coisas também, com toda a complexidade pós-moderna: mesmo respeito para a alta cultura, o folclore, o pop etc.".

Como o edifício da Ópera é (merecidamente) o símbolo da cidade, escolhemos assistir a uma representação da "Tosca" (que foi ótima). No máximo 30% do público era olímpico: delegações ou turistas em Sydney para os Jogos. Os demais eram habitués: pessoas de classe média (regra na Austrália) apreciando a arte lírica ou se convencendo de seu interesse pela ópera. À primeira vista, parecia o tipo de público que se encontra na Sala São Paulo ou no Cultura Artística para um bom concerto.

Ora, antes que o espetáculo começasse e nos dois intervalos entre os atos, as pessoas se reuniam no foyer na frente de duas televisões -cuja presença neste lugar era inesperada. Assistiam a fragmentos das provas de natação daquela noite, torcendo e festejando (ou lamentando) os resultados. Ao tocar da música que assinalava a hora de regressar aos assentos, todos voltavam felizes para o triste destino de Mário Cavaradossi e Tosca.

Pergunta: se houvesse uma Olimpíada em São Paulo, você acha que o público do Cultura Artística pediria TVs no foyer para torcer nos intervalos? Aposto que não. Claro, a maioria provavelmente seria bem feliz com essa possibilidade, mas quase todos achariam inaceitável misturar seu gosto pela alta cultura com um interesse para o esporte. O mesmo aconteceria na Europa e, em menor medida, nos EUA. A razão dessa autocensura não seria estética, mas social e política.

A cultura é um excelente instrumento de separação entre as classes. Para que funcione assim, naturalmente é necessário que o pessoal de baixo seja mantido afastado da alta cultura (o que é simples: basta complicar o acesso à educação e manter inacessíveis os preços dos eventos). Mas para tal fim também é útil manter a ficção de um gosto de elite que desprezaria, por exemplo, a vil paixão pelo esporte. A "Tosca" é nossa e quem gosta de esporte é tosco -não vamos confundir.

Um público de amadores de ópera que, nos intervalos, gosta e não tem vergonha de torcer na frente da TV é índice de uma maturidade democrática fora de série. A Austrália aparentemente é uma sociedade onde abrir e manter a diferença social não é uma preocupação dominante.

22 setembro 2000

O que faz correr Marie-José Perec?

Tudo indica que Marie-José Perec, a campeã olímpica francesa, não estará nos 400 m rasos. Era uma das favoritas da prova, que catalisa a atenção dos australianos por ser a especialidade de Cathy Freeman, a aborígine que acendeu a flama olímpica na cerimônia de abertura.

A versão oficial diz que Marie-José fugiu da Austrália porque foi ameaçada por um desconhecido em seu hotel. Os jornais insinuam que ela escapou por saber que não estava em forma. Faz sentido: Marie-José foi campeã em Barcelona e em Atlanta. Logo ela sumiu, deixando que Freeman corresse sozinha e ganhasse os Mundiais de 97 e 99. Reapareceu em julho e se qualificou para a Olimpíada com um tempo medíocre. Desde então, inscreveu-se em várias competições, mas nunca compareceu. Em Sydney, ficou escondida fora da Vila Olímpica.

Não sei o que há com Marie-José. No mínimo, sofre com a exigência louca de se mostrar à altura de um passado que a define, mas que ela não consegue repetir. É possível que não seja só isso.

Marie-José nasceu na cidade de Basse Terre, em Guadalupe. Por mais que essa Antilha seja território francês, é difícil acreditar que os antepassados de Marie-José (que é mulata) sejam gauleses.

Agora, cada evento olímpico começa com a apresentação dos atletas que competem. O nome é seguido de "representando..." e lá vai o nome da nação.

Será que cada atleta representa mesmo a nação pela qual está concorrendo? E se ele não se sentir assim? Que tipo de experiência é essa de orientar sua vida toda, durante anos, para uma competição onde se tratará de dar o melhor de si -representando uma coletividade da qual o atleta, no fundo, acha que não faz parte?

Há circunstâncias que ajudam a enlouquecer, como a falta de uma possível resposta clara quando se é confrontado com questões cruciais sobre sua identidade.

Alguns militantes da causa aborígene não queriam que Cathy Freeman corresse: por que dar prestígio para a Austrália opressora? Outros queriam que ela corresse protestando. Os australianos querem que ela encarne o novo multiculturalismo. Pressionada para declarar se ela corria para seu povo ou para a Austrália, Cathy respondeu habilmente: "Corro para mim mesma. Se ganhar, ficarei muito feliz. Estou certa de que muitas pessoas sentirão essa mesma felicidade". Ou seja, festeje quem puder.

Ao que parece, Cathy Freeman tem uma saúde (psíquica) de ferro. Com isso ela distancia seus entrevistadores. Marie-José, desta vez, talvez não tenha conseguido correr mais rápido do que a pergunta inevitável numa Olimpíada: você representa quem?

21 setembro 2000

Se é proibido perder, jogar fica difícil

Acabou há pouco o jogo contra o Japão. A seleção permanece na Olimpíada. Mas a campanha continua sofrida.
Anteontem, a seleção feminina de futebol ganhou da Austrália, mas no sufoco: 2 a 1 de virada e com um gol australiano anulado (por milagre).

Mesmo assim, na saída do estádio, um torcedor brasileiro enrolado numa enorme bandeira interrompe a conversa com um grupo de australianos, exclamando: "Vocês ainda têm tudo o que aprender sobre futebol!". Subentendido: aprender com a gente.

Antes, na arquibancada, dois australianos param um brasileiro de camiseta da seleção. Perguntam: "Brazil?". O torcedor confirma e logo convida seus interlocutores a contar as quatro estrelinhas azuis, "quatro vezes campeão do mundo", ele explica. Em suma, esse esporte é nosso.

Por isso mesmo, estou achando que, para nossas seleções de futebol, masculina e feminina, vai ser cada vez mais difícil jogar bem e ganhar.

Isso independentemente dos técnicos e da qualidade dos jogadores. Por quê?
Existe um nível de expectativa que é nocivo para os atletas. E é bem possível que, em matéria de futebol, a gente já o tenha atingido. Um exemplo. Todos os atletas australianos estão sob pressão: os olhos do mundo estão virados para cá, e o país pede medalhas. Mas, acima de tudo, sonhava-se com a abertura da Olimpíada.

A primeira prova era o triatlo feminino -um evento-espetáculo bem no meio do cartão postal de Sydney.

Esperava-se uma apoteose logo no início. Havia de fato uma chance de que as australianas ganhassem as três medalhas. Para isso se preparavam. Isso estava sendo antecipado. Ora, Loretta Harrop, favorita, chegou em quinto lugar.

Michelle Jones perdeu o ouro logo no sprint e ficou com a única medalha australiana.
Eis uma das dificuldades cruciais em psicologia do esporte. Por um lado, o atleta precisa de um alto nível de motivação (aqui as expectativas do público e, no caso, do país ajudam). Por outro, como já Freud tinha reparado, o excesso de investimento pode produzir uma inibição irresistível. Nada de muito patológico nisso. Reagimos todos assim: quando queremos alguma coisa em demasia, na nossa cabeça, ela se confunde com todas as coisas que quisemos muito e que nos foram proibidas.

Em consequência, fracassamos.

Ora, em matéria de futebol, parece que ganhar se tornou uma condição "sine qua non" da identidade nacional brasileira. Perder é crime de alta traição.
Com isso, vai ficar difícil jogar -não só nesta Olimpíada.

19 setembro 2000

Torcida brasileira

No jogo da seleção feminina de vôlei contra a Austrália, a torcida era firme. Cantou até o hino nacional em ritmo acelerado. Os australianos repetiam seu "Aussie, aussie, aussie/oi, oi, oi". "Aussie" é a abreviação de australiano e se pronuncia "ozie".
As brasileiras lideravam por 2 sets a 0 e 21 a 12 no terceiro, quando a torcida inventou: "Easy, easy, easy/oi, oi, oi!". "Easy" soa perto de "ozie" e significa "fácil". Escutando essa gozação, que dizia "Fácil, fácil, fácil /oi, oi ,oi..", a torcida australiana emudeceu. Enfim, a seleção jogou muito bem, ganhou (fácil) e promete.

Tomado pelo entusiasmo dos 500 torcedores, gritei, pulei e, no fim do jogo, fiquei no saguão para uma festa improvisada. Voltando para o hotel, resmungava desconfianças das emoções torcedoras.

A Olimpíada de Sydney pediu que a ONU decretasse a trégua olímpica e exigisse paz entre as nações durante os Jogos. Seria a ocasião de mostrar que desacordos e conflitos podem ser resolvidos no fair play do esporte.

Em vez de se armar para guerra, contentem-se com torcer. Argentina e Reino Unido poderiam ter decidido o futuro das Malvinas em três jogos de futebol. Quem ganha, leva. Pena que a coisa não funcionou em Berlim-36. Hitler poderia ter visto em Jesse Owens a superioridade dos negros e, assim, teria desistido da guerra e de sua política racial.

Em suma, torcer seria bom: uma maneira de evitar guerras.

É possível pensar o contrário. Ou seja, que a torcida não é uma catarse dos nacionalismos belicosos. Ao contrário, seria seu caldo de cultura. Quem pensa assim, nota também que a torcida nacional, fomentando a rivalidade entre nações, garante de fato a paz social. Quem se desespera ou exulta com a nação, esquece que ela é dividida, apaga as iniquidades sociais das quais ele é vítima.

Os excluídos podem torcer para um país que os ignora. A idéia seria: torcer evita a consciência dos conflitos sociais pela invenção de antagonismos nacionais.

Numa linha parecida, há as pesquisas de um tal Robert Cialdini, da Universidade de Arizona, para dizer que o torcedor é um fraco, que tenta obter respeito não por suas próprias façanhas, mas por conexão com sua seleção.

Mas as teorias nem sempre se aplicam. Esta noite a torcida brasileira não treinava sentimentos belicosos -a festa final incluiu na dança e no canto os torcedores australianos. Também não acho que o orgulho ocultasse as feridas sociais da nação no espírito da torcida. Ainda menos o torcedor brasileiro, que torce, em geral, na esperança de crescer graças à grandeza do país. Ele torce muito mais na esperança de que o país consiga, enfim, crescer.

18 setembro 2000

"Mate", amigo e irmão

Os australianos nos param na rua para saber se gostamos de Sydney. Perguntam com quais medalhas sonha o Brasil e logo nos desejam boa sorte.

São conversas de homem a homem, frequentes sobretudo na sexta e no sábado, quando um par de cervejas solta as línguas. Nessas investidas cordiais, eles nos chamam sempre de "mate".
"Mate" significa companheiro, amigo do peito: é o apelido dos homens australianos entre si. O termo tem sentido forte quando reivindica a importância de uma relação: "Farei qualquer coisa para ele, ele é meu "mate'". Mas parece também fraco por ser usado para se dirigir a estranhos: ""Mate", sabe onde está a rua tal?".

No Brasil há termos parecidos: "amigo", em São Paulo, e "irmão", no Rio, são usados, mas com menos frequência. Uso forte: "Fulano é um irmão para mim". Uso fraco: "Amigo, traz uma aguinha para a gente". O paralelo revela uma diferença. Os australianos chamam todos de "mate", e essa intimidade pressupõe a idéia de uma sociedade de iguais, onde todos são "mates". No Brasil, o mesmo uso é condescendente: chamamos o guardador de carros de amigo. A recíproca é inesperada e ameaçadora.

Há razões históricas para isso. A Austrália nasceu, pouco mais de 200 anos atrás, do projeto de transformar um continente inteiro em colônia penal. A Inglaterra do fim do século 18 não sabia o que fazer com seus criminosos -melhor dito, com seus pobres.

Os miseráveis da Revolução Industrial não eram bonitos de se ver na rua. Surgiu a idéia de levá-los para a praia australiana. Se morressem, não seria uma grande perda. Se conseguissem sobreviver, seria mais uma colônia para o império. Entende-se por que os australianos se consideram companheiros de naufrágio. Inventaram uma sociedade horizontal onde um dos passatempos consiste, como eles se expressam, em cortar as papoulas que crescem mais do que as outras.

No Brasil, a história é outra: a escravatura introduziu uma desigualdade da qual mal conseguimos sair. O privilégio pode ser detestado, mas é também invejável.

Enfim, para chegar a conviver como pares, precisaríamos levantar o peso do passado e tirá-lo de nossa frente. Deve ser por isso que hoje fui assistir à prova de levantamento de peso feminino (categoria 48 kg), na qual concorria Maria Elizabete Jorge. Nossa atleta se classificou em décimo -era o que ela esperava. Depois do último arremesso, despediu-se do público sorrindo e abanando. Deu entrevista confirmando sua vontade de continuar levantando peso. Ótimo, pois ainda há bastante entulhos no nosso caminho e precisamos de muitas Elizabetes.

31 agosto 2000

Por que Orfeu fica no morro

Na sexta -feira passada, "Orfeu", de Cacá Diegues, estreou em Nova York. À noite, a sala do Lincoln Plaza Cinema estava cheia, apesar de a época do ano não ser das melhores, com a cidade ainda vazia pelas férias de verão. O filme entusiasmou e ganhou aplausos.

Eu fiquei sentado, deixando passar os créditos finais, comovido pela intensidade dos últimos minutos, quando todos gritam, apitam e choram a morte de Orfeu. Compartilhava a sensação de uma perda irreparável, que não poderíamos deixar acontecer. Perda de quê?

Na tarde do mesmo dia, assistira a um documentário da série "Seis Histórias Brasileiras", que o GNT transmitiu duas semanas atrás. Era "Um Dia Qualquer", de Zuenir Ventura e Izabel Jaguaribe. Ficava vívida em mim a lembrança de Apolônio, vendedor de abacaxis na praia de Copacabana, e de suas palavras surpreendentes -sobre o que é ser negro, sobre seu corpo ou sobre a mulher brasileira.

Ora, no filme de Cacá Diegues, alguém pergunta a Orfeu por que ele não aproveita seu sucesso para ir embora do morro. Orfeu não responde e, naturalmente, fica. Ele poderia dizer, imagino, que o morro é o mundo do qual ele quer ser a voz. Apesar do tráfico de drogas e das balas achadas e perdidas, o morro (ou redutos análogos: favela, cortiço etc.) é seu lugar, porque aí moram os Apolônios.

Essa resposta (imaginária) de Orfeu não nos estranharia. Estamos acostumados a supor que tanto a alegria de viver quanto a capacidade de chorar, assim como todas as qualidades autenticamente humanas, habitam o morro, a favela ou a maloca rural batida pela seca.

É um traço bem estabelecido de nossa cultura: como o status social é decidido numa corrida, inventamos prêmios de consolação para os derrotados. Quer seja um acesso mais fácil ao paraíso depois da morte, quer seja um privilégio poético. Assim, revisando nossos extratos bancários, nos extasiamos: "Oh! admirável simplicidade do pescador, do camponês e do miserável".

Claro, é uma armadilha ideológica: "Eu te exploro até o osso, mas em troca disso eu admiro e invejo tua fome e tua miséria, porque és mais humano e mais verdadeiro".

Mas cuidado: nessa vinheta, que parece feita só para aliviar a culpa dos tubarões, talvez haja mesmo alguma verdade. É a melhor maneira de ocultar algo: dizer a verdade de tal forma que todos pensem que se trata de uma mentira. Então qual é a verdade?

Lembra a história do mestre e do escravo? Hegel imaginava que o escravo, trabalhando, acabaria sendo o único a saber lidar com o mundo, fabricar as coisas, tirar leite da vaca, plantar feijão e trocar o óleo do carro. O mestre ficaria se coçando e, no fim, incompetente, dependeria totalmente do escravo. Aí a relação de forças se inverteria.

As coisas não funcionaram assim. Sobretudo porque o mestre não ficou ocioso: ao contrário, ele se especializou nas tarefas mais rentáveis e consolidou seu poder. Ele não está cansado nem se tornou incompetente.

Ora, apesar disso, talvez o escravo tenha mesmo ficado com algo relevante que o mestre perdeu. De uma certa forma, ele ficou com a vida concreta. É na cultura dos pobres, dos deserdados, que importa rir, chorar, amar, odiar, enfim, ser alegre e ser triste. A cultura dos mestres é cada vez mais abstrata por (e para) se resumir na sede de lucro e no esbanjamento que decide o status.
Os mestres não têm tempo para se deter em questões, diferenças e, eles diriam, em detalhes concretos. Eles precisam de abstração para justificar as equivalências entre coisas, pessoas e valores que permitem o bom funcionamento do mercado e da produção.

Deve ser por isso que Orfeu permanece no morro. Por isso que as palavras de Apolônio são permeadas de uma extraordinária sabedoria prática. Porque a vida concreta ficou com os derrotados.

Por essa razão, sempre desconfio das formas de "progresso" social que prometem apenas a entrada dos excluídos no mundo e na cultura dos mestres.

Pense bem. O que seriam os Estados Unidos, por exemplo, se seus derrotados fossem todos perfeitamente integrados? Claro, cidades com menos drogas, facadas, assaltos -e onde todos terminam o colégio. Mas seriam também o vasto e irrespirável subúrbio de uma classe média mesquinha e conformista.

E o que seria o Brasil sem seus excluídos? Foi a idéia dessa perda que me deixou comovido no fim do filme de Cacá Diegues. Você pode perguntar: "Como assim? Seria uma perda se não houvesse mais excluídos?".

Explico-me. Seria um desastre se Orfeu e Apolônio morressem de bala ou de fome, exterminados pela opressão. Mas seria um desastre também se eles simplesmente ganhassem em alguma loteria e se instalassem na Vieira Souto ou nos Jardins, confundindo-se com os indígenas. Pois, se isso acontecesse, nossa sociedade não seria mais nada, apenas uma selva de Lalaus (mais ou menos bem-sucedidos).

P.S.: No domingo dia 20, a estréia americana de "Orfeu" foi precedida por um longo e bonito artigo de Caetano no "The New York Times". É possível, e vale a pena, lê-lo (em inglês) procurando no site www.nytimes.com.

Por que Orfeu fica no morro

Na sexta -feira passada, "Orfeu", de Cacá Diegues, estreou em Nova York. À noite, a sala do Lincoln Plaza Cinema estava cheia, apesar de a época do ano não ser das melhores, com a cidade ainda vazia pelas férias de verão. O filme entusiasmou e ganhou aplausos.

Eu fiquei sentado, deixando passar os créditos finais, comovido pela intensidade dos últimos minutos, quando todos gritam, apitam e choram a morte de Orfeu. Compartilhava a sensação de uma perda irreparável, que não poderíamos deixar acontecer. Perda de quê?

Na tarde do mesmo dia, assistira a um documentário da série "Seis Histórias Brasileiras", que o GNT transmitiu duas semanas atrás. Era "Um Dia Qualquer", de Zuenir Ventura e Izabel Jaguaribe. Ficava vívida em mim a lembrança de Apolônio, vendedor de abacaxis na praia de Copacabana, e de suas palavras surpreendentes -sobre o que é ser negro, sobre seu corpo ou sobre a mulher brasileira.

Ora, no filme de Cacá Diegues, alguém pergunta a Orfeu por que ele não aproveita seu sucesso para ir embora do morro. Orfeu não responde e, naturalmente, fica. Ele poderia dizer, imagino, que o morro é o mundo do qual ele quer ser a voz. Apesar do tráfico de drogas e das balas achadas e perdidas, o morro (ou redutos análogos: favela, cortiço etc.) é seu lugar, porque aí moram os Apolônios.

Essa resposta (imaginária) de Orfeu não nos estranharia. Estamos acostumados a supor que tanto a alegria de viver quanto a capacidade de chorar, assim como todas as qualidades autenticamente humanas, habitam o morro, a favela ou a maloca rural batida pela seca.

É um traço bem estabelecido de nossa cultura: como o status social é decidido numa corrida, inventamos prêmios de consolação para os derrotados. Quer seja um acesso mais fácil ao paraíso depois da morte, quer seja um privilégio poético. Assim, revisando nossos extratos bancários, nos extasiamos: "Oh! admirável simplicidade do pescador, do camponês e do miserável".

Claro, é uma armadilha ideológica: "Eu te exploro até o osso, mas em troca disso eu admiro e invejo tua fome e tua miséria, porque és mais humano e mais verdadeiro".

Mas cuidado: nessa vinheta, que parece feita só para aliviar a culpa dos tubarões, talvez haja mesmo alguma verdade. É a melhor maneira de ocultar algo: dizer a verdade de tal forma que todos pensem que se trata de uma mentira. Então qual é a verdade?

Lembra a história do mestre e do escravo? Hegel imaginava que o escravo, trabalhando, acabaria sendo o único a saber lidar com o mundo, fabricar as coisas, tirar leite da vaca, plantar feijão e trocar o óleo do carro. O mestre ficaria se coçando e, no fim, incompetente, dependeria totalmente do escravo. Aí a relação de forças se inverteria.

As coisas não funcionaram assim. Sobretudo porque o mestre não ficou ocioso: ao contrário, ele se especializou nas tarefas mais rentáveis e consolidou seu poder. Ele não está cansado nem se tornou incompetente.

Ora, apesar disso, talvez o escravo tenha mesmo ficado com algo relevante que o mestre perdeu. De uma certa forma, ele ficou com a vida concreta. É na cultura dos pobres, dos deserdados, que importa rir, chorar, amar, odiar, enfim, ser alegre e ser triste. A cultura dos mestres é cada vez mais abstrata por (e para) se resumir na sede de lucro e no esbanjamento que decide o status.
Os mestres não têm tempo para se deter em questões, diferenças e, eles diriam, em detalhes concretos. Eles precisam de abstração para justificar as equivalências entre coisas, pessoas e valores que permitem o bom funcionamento do mercado e da produção.

Deve ser por isso que Orfeu permanece no morro. Por isso que as palavras de Apolônio são permeadas de uma extraordinária sabedoria prática. Porque a vida concreta ficou com os derrotados.

Por essa razão, sempre desconfio das formas de "progresso" social que prometem apenas a entrada dos excluídos no mundo e na cultura dos mestres.

Pense bem. O que seriam os Estados Unidos, por exemplo, se seus derrotados fossem todos perfeitamente integrados? Claro, cidades com menos drogas, facadas, assaltos -e onde todos terminam o colégio. Mas seriam também o vasto e irrespirável subúrbio de uma classe média mesquinha e conformista.

E o que seria o Brasil sem seus excluídos? Foi a idéia dessa perda que me deixou comovido no fim do filme de Cacá Diegues. Você pode perguntar: "Como assim? Seria uma perda se não houvesse mais excluídos?".

Explico-me. Seria um desastre se Orfeu e Apolônio morressem de bala ou de fome, exterminados pela opressão. Mas seria um desastre também se eles simplesmente ganhassem em alguma loteria e se instalassem na Vieira Souto ou nos Jardins, confundindo-se com os indígenas. Pois, se isso acontecesse, nossa sociedade não seria mais nada, apenas uma selva de Lalaus (mais ou menos bem-sucedidos).

P.S.: No domingo dia 20, a estréia americana de "Orfeu" foi precedida por um longo e bonito artigo de Caetano no "The New York Times". É possível, e vale a pena, lê-lo (em inglês) procurando no site www.nytimes.com.

24 agosto 2000

O submarino russo: mortes inúteis

Passei a semana tentando me apegar a outros pensamentos. Inútil. A mesma imagem voltava e insistia sempre: o submarino russo, parado, silencioso e gélido no fundo do mar.

Nos primeiros dias, a história parecia ser apenas mais um exemplo patético da decadência russa. Nos jornais, na rua, na Internet, nos táxis, onde quer que houvesse conversa, todos falavam disso: a tecnologia da ex-URSS é sucata. Na verdade -muitos acrescentavam- sempre foi sucata.

Só o Ocidente não sabia. O Kursk devia ser uma lata de conserva disfarçada: talvez fosse esse o segredo que os russos queriam tanto esconder. Falava-se também dos efeitos infelizes dos orgulhos nacionais mal colocados. A indignação com o governo russo era grande: por que não pedem ajuda? Para não confessar suas dificuldades? Ou para não mostrar ao mundo sabe Deus qual arma secreta e estapafúrdia -escondida no ventre do Kursk? Pudores irrisórios e segredos de polichinelo.

Mas rapidamente essas conversas definharam. Foram substituídas por uma grande pena e por uma torcida mundial para que não estivessem todos mortos. De resto trágico da Guerra Fria e de suas mentiras, o Kursk parecia se transformar em símbolo de algo maior, algo que nos concerniria a todos -Guerra Fria ou não.

Um jornal de Murmansk começou a publicar pequenos necrológios dos marinheiros, feitos de últimas cartas aos pais, lembranças de amigos e parentes etc. Alguns jornais europeus traduziram. Era uma espécie de cemitério de homens comuns, uma nova "Antologia de Spoon River", o poema dos mortos quaisquer. Alguns pareciam até orgulhosos de estar na Marinha, mas ninguém, nem na lembrança depois de morto, recorria ao tipo de retórica belicosa que poderia dar sentido à sua morte e à de seus companheiros.

Nessa altura, comecei a ser perseguido pelas letras de uma música. Aconteceu assim: li uma notícia sem interesse sobre os Beatles (o que sobra deles) e houve uma espécie de curto-circuito. Sem querer, passeando pelas ruas na sexta-feira, comecei a cantarolar, na melodia de "Yellow Submarine": "We all live in a russian submarine, russian submariiiiine" (Vivemos todos num submarino russo, submarino russo).

Com isso, a visão já insistente do submarino pousado no fundo do mar ficou mais lúgubre ainda: o ritmo me parecia vir de lá, como se os sobreviventes no escuro batessem contra a parede metálica ao ritmo da música e cantassem num coro de baixos. Oniricamente, eles pareciam nos chamar.

Como a música não me deixava tranquilo, decidi levá-la a sério. Respeitando meu automatismo mental, disse para mim mesmo: está bem, acredito, somos todos marinheiros do Kursk, mas por quê? Quem sabe respondendo eu conseguisse entender como o destino do submarino russo conquistou a imaginação popular do mundo inteiro.

O fato é que este gigantesco tubo inerte, mistura de vibrador quebrado com sarcófago, parece resumir nossa relação com a tecnologia. O avanço tecnológico é a melhor expressão de nossa potência, uma espécie de gloriosa ereção fálica. Olhe só, vamos à Lua, circulamos de naveta espacial, viajamos de supersônico, conseguimos energia atômica limpa e barata etc. Somos poderosos.
Acontece que esse falo tecnológico se transforma facilmente numa tumba. É o Concorde caindo ou a naveta espacial explodindo. O vôo TWA 800 ou então Tchernobil.

Tempo atrás, alguém diria que essas são as vítimas cobradas pelo progresso. Mas ainda há quem pense que o progresso é um valor?

Inventamos a morte inútil. É diferente da morte acidental, produzida por um relâmpago, um terremoto, uma bala perdida ou mesmo a raiva de um assaltante. Diferente, porque nos vários submarinos nucleares da vida embarcamos orgulhosa e voluntariamente. A morte inútil também se distingue da morte justificada por uma causa mais ou menos nobre. Paradoxalmente, ela não é acidental e não tem causa final.

Morremos de morte inútil quando morremos como consequência do funcionamento de nossa potência. Sem outros fins.

Entendo que as autoridades russas gostem da idéia de que o Kursk tenha afundado depois de uma colisão com um submarino americano ou britânico. Na verdade, todos preferiríamos que assim fosse. Esse restinho de Guerra Fria nos permitiria pensar no Kursk como um túmulo de bravos que morreram para defender a pátria, a honra ou coisa análoga. Seriam mortes por causa nobre.

Ora, o Kursk é sobretudo um túmulo para as razões que durante anos deram sentido à morte e que hoje estão faltando no mercado.

Não há porque se queixar da diminuição dos motivos para sacrifícios supremos. Mas isso nos deixa com um fenômeno novo: mortes estranhas, consequências de exercícios abstratos de potência tecnológica que não alveja mais nem a guerra nem a defesa nem a conquista.
Engraçado, décadas atrás uma geração lançou ao mar um psicodélico submarino amarelo também para lutar contra essa paixão tecnológica abstrata. Pena que não tenha chegado a tempo ao mar de Barents.

17 agosto 2000

Saudade de Bill Clinton

Até a semana passada, a campanha para as eleições presidenciais americanas corria tranquila. Valia a piada pela qual a síntese entre Bush e Gore é "bore" -que significa tédio.

De repente, Al Gore designou seu vice-presidente: o senador Joseph Lieberman, de Connecticut, que é judeu ortodoxo. A coisa em si não me tirou do tédio. Como muitos outros, pensei: "Ah é? Legal!". Mas logo tive de me perguntar qual foi a razão dessa escolha. Aí me preocupei.
No começo, a coisa foi apresentada como uma ousadia: pela primeira vez, exclamava-se, um judeu está a um passo da Presidência dos Estados Unidos. Mais tarde, os jornalistas lembraram que Allan Greenspan é judeu e talvez seja mais importante do que um vice-presidente. A seguir, as pesquisas de opinião verificaram que o fato de um candidato ser judeu não é muito relevante para os eleitores.

Na verdade, a escolha é uma ousadia apenas para poucos racistas -os quais, de qualquer forma, votariam na extrema direita de Pat Buchanan.

Em suma, não se trata de uma decisão ousada promovendo a aceitação da diversidade cultural. Ao contrário, a escolha é uma confissão de conformismo. Gore não escolheu seu vice por ele ser judeu, mas por ele ser um religioso praticante, o primeiro e mais virulento dos democratas em sua crítica aos pecadilhos do presidente Clinton. Por essas duas razões, o senador Lieberman encontra a aprovação até dos republicanos mais conservadores.

É engraçado: quando Clinton era candidato, já com a história de Gennifer Flowers no ar, ele escolheu Al Gore como o homem que, por sua simples presença, lhe ofereceria uma garantia moral. Agora, para se dissociar de Clinton, Gore escolhe Lieberman para a mesma função. Tipo: eu sou moral, olhe para meu vice. A esse ritmo, Lieberman, se ele for candidato depois da eventual Presidência de Gore, terá de procurar seu vice entre o papa e o Dalai Lama.

O plano democrata de governo difere substancialmente do projeto republicano -em matéria de política fiscal, de saúde pública e de previdência social. Apesar disso, Gore e sua equipe quiseram responder à tentativa republicana de tirar partido das pretensas falhas morais de Clinton. Lieberman foi escolhido para ser exibido como prova de caráter moral.

Nada contra. Afinal, por que a estatura moral não seria um bom critério para escolher governantes? O problema naturalmente é: quem mede a dita estatura, e como?

Atenção: Joseph Lieberman é provavelmente um sujeito altamente respeitável. Nos anos 60, ele foi um "cavaleiro da liberdade" -registrando eleitores negros no sul ainda segregado. Mas quem lembrou esse passado de Lieberman foi logo Clinton, o pecador. A campanha democrata preferiu uma versão em cores mais suaves.

O senador Lieberman -esta foi a mensagem- é uma garantia ética graças a seus bons costumes e por respeitar rigorosamente as formas sociais de sua religião. Para servir de exemplo moral, ele foi apresentado como um suburbano que come kosher e vai à sinagoga a cada semana. A qualidade ética conclamada não reside em alguma têmpera subjetiva forjada na complexidade da experiência. Se algo disso existe, como no caso do senador Lieberman, melhor esquecer e salientar a estética de vida pequeno-burguesa: moral é celebrar o sábado (ou domingo, que seja). Será que o vice-presidente poderia declarar a guerra no sabá se fosse preciso? -perguntam com emoção as mamães do subúrbio, correndo em suas camionetes para levar as meninas ao treino de futebol.

Em suma, a moralidade coincide com a conformidade e o farisaísmo religioso dos subúrbios. O mundo do bem é o sorriso estereotipado da Main Street de Disneylândia.

Numa total confusão entre bons costumes e estatura ética, o conformismo e a mediocridade tornam-se patamares morais.

Theodore Roosevelt, Thomas Jefferson e outros grandes americanos devem estar esperneando em suas tumbas.

Resta esperar que Gore esteja enganado e que os americanos tenham uma visão mais complexa daquilo que os políticos parecem supor que seja ético. Afinal, os eleitores em 1998 não se deixaram convencer pela hipocrisia moralista e, apesar da enorme campanha contra Clinton, o pecador, mandaram muitos novos representantes democratas para o Congresso.

Dizem que, para ser eleito, Gore deveria compartilhar com Clinton o mérito dos excelentes resultados da Presidência, mas se distanciar da sombra moral que o presidente projeta. Pois Clinton, acrescentam, foi um presidente de sucesso, mas houve o problema Lewinski e outros.
Ora, Clinton foi um grande presidente não apesar de, mas por causa de suas notórias fraquezas. É por ele ser capaz de errar, se arrepender e errar de novo que ele pode reconhecer alguma complexidade em si mesmo (e, portanto, nos outros). Sem essa capacidade, não há nenhuma experiência moral verdadeira.

Cruzo os dedos para que o próximo presidente dos Estados Unidos tenha ao menos a mesma estatura ética de Bill Clinton. À primeira vista, há pouca chance.