16 novembro 2000

Conselhos para não gastar demais nas festas

É fácil , hoje, encontrar sujeitos que gastam muito mais do que podem -e não só no fim do ano. Eles preocupam os economistas e também os psicólogos e os psiquiatras. Pois há quem considere essa inclinação uma doença, talvez um vício.

Naturalmente, sempre se encontram explicações singulares. Um sujeito quer, inconscientemente, se desfazer de uma fortuna acumulada de maneira duvidosa. Outro deseja sua própria bancarrota, numa verdadeira fantasia erótica. E por aí vai.

Mas, atrás dessa variedade, há um pano de fundo. Nós, modernos, somos obrigados a gastar além de nossas necessidades. Melhor dizendo, nossas necessidades vão além da subsistência física: devemos adquirir e consumir, sobretudo para sermos reconhecidos por nossos concidadãos. Somos de classe A, B, C, D ou E não por nascença ou por outras qualidades intrínsecas, mas segundo quanto possuímos e consumimos, ou seja, segundo quanto gastamos.

Não é de estranhar, portanto, que as estatísticas repitam que os americanos de classe média não poupam nada e se endividam demais. Isso vale para aqueles que se beneficiaram da recente prosperidade dos EUA. Imagine o drama dos outros: empobrecem e devem aumentar os gastos -uma vez que, em nossa cultura, é essa a forma básica da competição social.

No entanto há algo além disso na conduta do gastador. A maioria dos sujeitos que se queixam de sua compulsão (e contemplam estupefatos as contas no fim do mês) compartilha uma fórmula mágica. Na hora de proceder a uma nova compra, eles dizem: "Com tudo o que eu trabalho, tenho direito!". Eles ultrapassam assim suas hesitações. As considerações sobre o dinheiro disponível são silenciadas. O que importa -afirma o sujeito- é que "trabalho dez horas por dia" ou então "saio à luta a cada manhã", "estou na batalha o tempo inteiro", portanto "mereço, é meu direito". Em suma, nós nos sentimos autorizados a gastar não por nossa solvência, mas por nossos méritos.

O cartão de crédito parece ter sido inventado para facilitar essa estranha aritmética. Ele tem uma função dupla. Estabelece meu status, que depende não do que eu tenho, mas de quanto posso gastar (os cartões dão acesso às salas VIPs dos aeroportos). E, sobretudo, o cartão me compreende: sabe que tenho menos dinheiro do que mereço e corrige essa injustiça, autorizando-me a comprar e consumir.

Gastando, afirmamos o triunfo de nossos méritos e de nossos direitos contra a inércia da conta bancária e o peso de nossas dívidas.

Não é uma surpresa que essa conduta seja tão popular. A modernidade começa quando o sujeito não é mais definido por seus deveres, mas por seus direitos.

Enquanto modernos, nosso destino não é ditado pelo serviço que devemos ao dono da terra, pelo dízimo que devemos à paróquia ou pela obediência e pelo respeito que devemos aos anciões da tribo. Em vez disso, nós vivemos livres, com o direito de dispor de nossa pessoa, de circular pelo mundo, de falar sem censura etc. Os direitos se multiplicam. O sujeito tradicional era mais bem descrito como rede de obrigações. Nós somos feixes de direitos.

Com isso, os limites concretos que contrariam o exercício de nossos direitos tornam-se insuportáveis e irrelevantes. Pouco importa que o sujeito ganhe R$ 12, R$ 30, R$ 50 ou R$ 200 por dia. Trabalha muito e, portanto, merece uma televisão de 36 polegadas e alta definição. Ele tem direito (subjetivo) -seja qual for sua mesada (desprezível consideração objetiva).
Ouço sujeitos com dificuldades financeiras: "Se não tenho direito a comer num bom restaurante depois de um dia de trabalho, para que trabalhar?". "Mereço umas férias, afinal, tenho direito de ter uma vida." E o senhor Cartão é o único que compreende nosso problema.
Essas considerações seriam apenas divertidas, se não fosse por um detalhe: no meio da afirmação (um pouco maníaca) de seus direitos, o sujeito moderno é triste.

É uma constatação clínica: a depressão acompanha a caravana aparentemente alegre de nossos direitos e reivindicações. Por quê?

Ultimamente, coube-me ajudar um homem arrasado por uma depressão grave, desde que lhe fora recusado o cartão de crédito em uma loja de departamentos. Havia uma clara desproporção entre esse incidente menor, sem consequências concretas, e a prostração do sujeito. Descobriu-se que a recusa inesperada da loja trazia a lembrança de que sempre resta uma obrigação fundamental, uma dívida que pesa. Ou seja, nosso "direito de ter uma vida" (merecida) não consegue abolir nosso dever de morrer um dia.

Morrer deve ser mais simples, sem dúvida, para quem nasce e vive como um devedor. No momento final, devolve um par de botas que sempre considerou emprestadas. Quem se define pelos direitos, e não pelos deveres, vive uma vida mais engraçada, mais aventurosa e, provavelmente, mais justa. Mas desaprende a morrer. Não lida bem com o fato de que um dia nosso crédito acaba.


É verdade que as companhias de cartões de crédito não nos prepararam bem para essa eventualidade.

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