02 novembro 2000

Efeitos colaterais

Atendi vários sujeitos que procuravam (legitimamente) uma análise ou uma terapia para sofrer menos e viver melhor, mas que se preocupavam com as mudanças que a terapia poderia acarretar. Temiam que a experiência os transformasse ao ponto de empobrecer suas vidas. Tratava-se, quase sempre, de artistas, convencidos de que havia uma relação entre seus sofrimentos neuróticos e sua capacidade de criar e se expressar.

Imaginemos um exemplo análogo aos casos que conheci. Um sujeito viveu uma infância particularmente nefasta: sei lá, o Camboja na época de Pol Pot, deportações, campos, mortes, lutos e fome. Hoje, nosso sujeito -refugiado em terras hospitaleiras- faz desses horrores a fonte privilegiada de sua inspiração artística. Críticos e público reconhecem que sua produção expressa, por exemplo, uma angústia que alcança proporções universais. Nela, todo mundo reconhece um pouco de seu próprio desamparo.

Mas nosso artista acorda a cada noite urrando, perseguido por pesadelos de caveiras e meninos armados de metralhadora. Ele vive numa ansiedade que impede qualquer procura amorosa. A solidão multiplica sua dor.

Imagine agora que esse sujeito peça a ajuda de um psicanalista ou de um psicoterapeuta. Ele quer dormir melhor e aprender a sorrir. No entanto ele suspeita que seu sofrimento seja a alma de sua arte -ou seja, daquilo que ele tem de melhor para oferecer ao mundo. Sua preocupação não é apenas um cálculo oportunista como: se me curo, perco a habilidade que paga minhas contas. Há mais: separar-se desse sofrimento lhe parece uma traição, pela qual ele desistiria de ser ele mesmo.

Essa preocupação não deve ser minimizada. Em princípio, uma psicoterapia ou uma análise não produzem (não conseguem produzir) mudanças que não sejam desejadas pelo sujeito. Aliás, geralmente isso é considerado como um limite da eficácia das psicoterapias. Reclama-se de que elas não conseguem extirpar nossas neuroses como se extirpam sisos cariados. No caso que estou levantando, ocorre o contrário: os sujeitos receiam que suas neuroses sejam extirpadas como dentes.

Essas reflexões nascem lendo um artigo notável de Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria da Johns Hopkins University. O texto faz parte da coletânea "States of Mind" (editada por R. Conlan), que é, de longe, o conjunto de textos mais honestos e sérios que já li sobre a relação entre cérebro e mente (portanto entre psicoterapia, psiquiatria biológica, neurologia etc.).

Jamison constata que existe uma correlação estatística entre a criatividade artística e a psicose maníaco-depressiva. Contrariamente ao que sugeria a ideologia dos anos 60 e 70, a doença criativa não é a esquizofrenia, mas a mania, em sua alternância com a depressão. Ora, a psicose maníaco-depressiva tem origem genética. Mais cedo, mais tarde, o gene que torna alguns sujeitos vulneráveis a essa doença será isolado. Portanto disporemos de uma cura preventiva.
Redfield Jamison pergunta: "Se há uma relação entre desordens do humor e gênio artístico, que riscos corremos tratando a desordem ou mesmo, pelos testes e pela terapia genética, eliminando-a completamente?" O risco seria produzir uma humanidade futura sem os equivalentes de Schumann, Tennyson, Hemingway, Lowell, Edgar Poe etc.

Segundo Jamison, o problema é que, com o sofrimento maníaco-depressivo, seria suprimida uma parte relevante (embora dolorosa) da experiência humana. "Esperamos -ela escreve- que (os artistas) contemplem aqueles aspectos da vida que nós preferimos ignorar; que eles olhem para a brevidade da existência, que vejam a corrupção do universo e saibam como a morte nos espreita e que, com isso, ainda consigam afirmar a força da vida perante a morte. É bem possível que sofrer de psicose maníaco-depressiva permita a algumas pessoas criativas produzir essas reconciliações".

Jamison (que sofre ela mesma da doença) não minimiza o sofrimento maníaco-depressivo. Tampouco recusa os tratamentos possíveis. Mas lembra que a doença psíquica é também uma vivência que estende os limites da experiência humana. Suprimir geneticamente uma dimensão dessa experiência é tanto mais problemático quando, como nesse caso, ela permite a existência de obras que valem para todos.

Fácil egoísmo de leitor ou espectador? Acho que não. Muitos criadores não gostariam de se ver livres de sua mania e de sua depressão se, em troca, perdessem o que dá sentido a suas vidas. O poeta Robert Lowell dizia de suas crises de mania que "a glória, a violência e a banalidade dessa experiência" é algo que vicia. Certamente ele não aceitaria uma cura cujos passos ele não pudesse controlar cuidadosamente.

P.S.: A coluna da semana passada, "Crianças do Divórcio", suscitou um número inusitado de e-mails. Agradeço aos leitores. É impossível responder a todos. Na próxima quinta, retomarei o tema, debatendo algumas das questões levantadas pelos comentários recebidos.

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