23 novembro 2000

Nas eleições americanas, ninguém votou feliz

Na sexta-feira , fui para o armário de ferramentas, achei uma fita adesiva de sete centímetros de largura, cortei um pedaço e censurei o canto direito inferior da tela da televisão. Alívio.

Quem, nestes dias, assiste à CNN via cabo sabe do que estou falando. O epílogo das eleições americanas é acompanhado pela presença constante dos índices da Bolsa de Valores. Aparecem alternadamente Dow Jones e Nasdaq, com sua variação do dia e uma pequena flecha- verde, para cima, ou vermelha, para baixo. Durante o tempo em que a Bolsa permanece aberta (das 9h30 às 16h, horário da Costa Leste norte-americana), os índices são atualizados constantemente.

É uma prática normal da CNN: as oscilações da Bolsa são notícias relevantes para o grande número de americanos que administram diretamente seu fundo de pensão.

Mas, no caso, foram dez dias de comentários, declarações e debates sobre o futuro político dos EUA com as siglas "Dow" e "Nasdaq" que piscavam, como mensagens subliminares, ludibriando a significação da eleição. Acima (mais exatamente, embaixo, à direita) de tudo o que Bush e Gore pudessem representar, Wall Street pisca. Bush quer impedir que os votos sejam recontados? Muito bem, e a Bolsa? Gore faz um gesto de conciliação? E a Bolsa? A pulsação dos índices parece ameaçar: cuidado, humanos, os deuses poderiam irritar-se.

Descobri que não sou o único incomodado com essa presença tutelar. Bastou sair de casa. Na televisão, aparecem os estados-maiores ameaçando brigas institucionais, assim como militantes democratas e republicanos quase se batendo. Talvez na Flórida as coisas estejam assim: com os dois partidos assoprando a brasa, os próprios jornalistas têm dificuldade em sair do tom polêmico da campanha.

Mas aqui, no nordeste dos EUA, duas semanas depois da eleição, a comédia dos resultados incertos está tendo um efeito diferente. A conversa sobre as eleições é frequente, mas sem entusiasmo: é um dever chato. Ela segue um cenário fixo -que descobri conversando com conhecidos ao redor de uma mesa de jantar. Logo verifiquei sua validade com vários desconhecidos, num café new age como Starbuck's, num bar para yuppies a fim de aperitivo e num pub enfumaçado frequentado por trabalhadores manuais.

No começo, sempre há indignação com o sistema eleitoral que está sendo objeto da zombaria mundial. Alguém lembra uma piada: a rainha Elizabeth teria decidido revogar a independência das colônias, já que essas não conseguem votar direito. Ou então Hugo Chávez e Fujimori estão a caminho da Flórida para monitorar o processo de recontagem dos votos.

A fase indignada dura pouco: logo todos concordam que a metodologia concreta da votação deve ser modernizada. Conclusão provisória: que contem os votos do melhor jeito e que a Justiça decida. E basta. Ninguém parece estar a fim de uma discussão partidária. Não é raro que, de ambos os lados, se comente que essa votação tão parelha é uma bênção -pois o eleito, seja ele quem for, não terá poder político nenhum para realizar suas promessas de campanha.

Isso confirma o que sugerem alguns comentadores: o voto dividido manifestaria que a nação aspira a um governo de centro ou de união. No mínimo, com o atraso do resultado das eleições, parece que os americanos tiveram o tempo de concluir que, na verdade, os dois candidatos não eram nem propunham nada do que eles queriam.

Os eleitores se reconciliam no malogro comum: ninguém, nesta eleição, votou feliz. Por isso é fácil conversar na hora de um desempate tão delicado. Mediocridade dos candidatos? É possível. Mas existe outra hipótese.

Três vezes, nestes últimos dias, ouvi comentarem que "não estaríamos neste pepino se, no lugar de Bush, John McCain tivesse sido escolhido como candidato republicano, pois ele ganharia disparado". A cada vez, os democratas presentes concordaram e declararam que eles também teriam votado nele.

Não sei se McCain teria ganhado, caso fosse escolhido como candidato. O fato é que ele aparece agora como um candidato que teria arrasado. Ora, além de suas qualidades morais, McCain era o único defensor de uma reforma radical do financiamento das campanhas. Ele é lembrado por isso: no imaginário de todos, em sua corrida presidencial, foi derrubado pelas corporações.
Ninguém lembra direito os detalhes da reforma proposta, mas, nas conversas de bar, sobra um princípio extremo: não há por que conferir a pessoas jurídicas o privilégio de apoiar candidatos. Afinal, essa deve ser a prerrogativa apenas de quem vota, do cidadão, da pessoa física, "da gente".

Até ontem, essa idéia era uma utopia democrática de ditos "marginais", lutando contra "o sistema". A surpresa é encontrá-la hoje circulando numa variedade de espíritos de classe média.

A eleição empatada encoraja todos a pensar que cada voto conta. Esse sentimento, temperado com uma dose básica de individualismo americano, parece avigorar a fé nas virtudes de uma democracia mais direta. Sobretudo menos vendida. Não seria mau.

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