30 novembro 2006

O poder da reza


Mistério: estudo mostra que uma reza retroativa ajudou pacientes anos depois da internação

UM AMIGO médico, Décio Mion, me fez conhecer um estranho debate que ocupou, de 2001 a 2003, as páginas do seríssimo "British Medical Journal".
Premissa: várias pesquisas, há tempos, mostram os efeitos positivos da reza num

a variedade de condições patológicas. Documenta-se que o doente encontra benefícios (quanto ao andamento de sua enfermidade) no ato de rezar ou na consciência de que seus próximos rezam por ele. Até aqui, tudo bem: o paciente acharia assim uma paz de espírito que melhora sua evolução.

A coisa se complica: às vezes, as pesquisas mostram que a prece traz benefícios mesmo quando alguém reza por um doente sem que ele próprio saiba disso. Como explicar esses casos?

Talvez o benefício seja fruto de uma intervenção caridosa da divindade solicitada, mas essa explicação depende de um ato de fé que não cabe na interpretação de uma pesquisa científica. Além disso, é curioso que os benefícios apareçam seja qual for o deus ou o intercessor que receba a oração.

Resta, pois, imaginar que a intenção humana (o esforço cerebral de quem deseja que algo aconteça e reza por isso) tenha alguma realidade material (energia, partículas etc.) capaz de influir no andamento de um processo patológico. Estranho?

Nem tanto: afinal, até poucas décadas atrás, ignorávamos a existência de uma série de partículas que, segundo a física de hoje, povoam nosso universo. Por que as nossas intenções não movimentariam uma energia desconhecida, mas capaz de alterar o mundo físico? Nos EUA, nos anos 60-70, foram organizadas reuniões diante da Casa Branca com a idéia de que, se todos se concentrassem, a energia do dissenso faria levitar a residência do presidente americano. Embora cético, participei, convencido por um amigo que dizia: "Tentar não dói". Claro, não funcionou.

Ora, no fim de 2001, o "British Medical Journal", depois de um editorial lembrando que a razão não explica tudo, publicou uma pesquisa, de L. Leibovici (BMJ, 2001, 323), que registra os efeitos benéficos (em pacientes com septicemia) de uma reza afastada não só no espaço, mas também no tempo. Explico.

Foram incluídos no estudo todos os pacientes internados com septicemia, de 1990 a 1996, num hospital israelense; eram 3393. Em 2000 (de quatro a dez anos mais tarde), por um processo rigorosamente aleatório, os arquivos desses pacientes foram divididos em dois grupos: um grupo pelo qual haveria reza e um grupo de controle. Para cada nome do primeiro grupo, foi dita uma breve reza que pedia a recuperação do paciente e do grupo inteiro.

Resultado: no grupo que recebeu uma reza em 2000, a mortalidade foi (ou melhor, fora, de 90 a 96) inferior, embora de maneira pouco significativa; no mesmo grupo, a duração da febre e da hospitalização fora (ou melhor, havia sido, de 90 a 96) significativamente menor.

A publicação da pesquisa provocou uma enxurrada de cartas (BMJ, 2002, 324), algumas contestando as estatísticas, outras manifestando uma certa incompreensão do problema, que é o seguinte: como entender que uma reza possa agir não só sem que o paciente tenha consciência da intercessão pedida (com possível efeito psicológico positivo), mas à distância no tempo? Como entender, em suma, que uma reza dita em 2000 tenha um efeito retroativo em alguém que estava doente entre 90 e 96, quando a pesquisa e a reza nem sequer estavam sendo cogitadas?

Uma tentativa de resposta veio em 2003. O "BMJ" (2003, 327) publicou um interessante e enigmático artigo de Olshansky e Dossey, "History and Mystery" (história e mistério), em que os dois médicos dão prova de conhecimentos de física quântica muito acima de minha cabeça. O argumento de fundo é o seguinte: há modelos do espaço-tempo nos quais é possível que haja relações físicas entre o passado e o presente (ou seja, modelos em que o presente pode alterar o passado).

Que o leitor não me peça para explicar como isso aconteceria. As dimensões do "espaço de Calabi-Yan" e os "campos bosônicos", para mim, são tão obscuros quanto os ectoplasmas, os espíritos e os milagres.

Moral da história: embaixo do sol (ou da chuva), deve haver muito mais do que imaginamos, até porque nossa ciência está longe de ser acabada. Alguns colegas positivistas talvez durmam mal com esse barulho.

Eu não acredito nas paranormalidades, mas, em geral, durmo melhor ninado pelo mistério do que pelas certezas.

16 novembro 2006

Psicopatas bem ou malsucedidos


As pesquisas sobre motivação são biquínis: mostram muita coisa, mas não o essencial
ADMITIMOS SEM hesitar que o mundo é composto de moléculas, átomos, células etc., mas isso não altera nossa percepção da realidade. Estou num bar, vejo e toco a cadeira e a mesa, converso com o garçom; mesmo se eu fosse professor de física ou biologia, não me pareceria estar lidando com aglomerados instáveis de partículas.

Na nossa percepção da subjetividade humana, acontece uma coisa análoga. Posso saber que minhas escolhas são o efeito de meus genes, de meu passado, da forma e da quantidade de minha matéria cerebral, mas nada disso altera o sentimento fundamental de que estou agindo livremente. Isso vale também para os outros: reconheço tudo o que os determina, mas lhes atribuo a mesma liberdade com a qual imagino agir.

Nunca encontrei um drogado, alcoólatra ou fumante que não declarasse poder parar quando quisesse.

E nunca encontrei um familiar ou próximo de drogado, alcoólatra ou fumante que não pensasse, em última instância, que o "viciado", para deixar seu "vício", precisaria sobretudo de boa vontade.

Essa diferença entre nosso saber e nossa percepção (de nós mesmos e dos outros) alimenta um paradoxo, que é provavelmente salutar: pedimos que a ciência transforme o mistério das motivações humanas num cálculo exato, mas acreditamos na responsabilidade, na culpa e na possibilidade de redenção (idéias que pressupõem a liberdade do sujeito).

Quem tem razão: nossa percepção ou nossa ciência?

Seja como for, meu professor de estatística na Universidade de Milão começava seu curso de primeiro ano com esta declaração (um pouco machista): "A estatística", ele dizia, "é como um biquíni: ela mostra muita coisa, mas esconde o essencial". Pois é, as pesquisas científicas sobre a motivação humana são quase sempre biquínis, e não só porque os resultados têm valor estatístico.

Eis um exemplo. Desde 1990, graças a uma pesquisa desenvolvida por Antônio Damásio, presume-se que exista uma relação entre o comportamento anti-social do psicopata e alguma redução do córtex pré-frontal. Damásio verificou essa correspondência em sujeitos que se tornaram impulsivos e violentos depois de um acidente.

A seguir, uma série de pesquisas mostrou que essa correlação vale especificamente para a matéria cinza, cuja redução seria responsável pela falta de inibições, já identificada como uma caraterística clássica dos psicopatas.

Recentemente, a revista "Biological Psychiatry" (2005, vol. 57) publicou uma pesquisa de Yang, Raine e outros, "Volume Reduction in Prefrontal Gray Matter in Unsuccessful Criminal Psychopaths" (redução de volume na matéria cinza pré-frontal em psicopatas criminosos fracassados). Esse título curioso se justifica porque os autores, por uma vez, tiveram a idéia de comparar três grupos: um grupo de controle (cidadãos comuns e pacíficos que nem a gente), criminosos aprisionados (que seriam, portanto, psicopatas fracassados, visto que se deixaram prender) e criminosos que nunca foram presos (aqui, obviamente, reunir o grupo foi difícil).

É uma novidade notável: em regra, nas pesquisas sobre a mente criminosa, os pesquisadores recrutam seus sujeitos nas prisões, sem levar em conta dois fatores. O primeiro é uma antiga constatação da psicologia social: o próprio ambiente carcerário transforma os sujeitos. O segundo (salientado pelos autores da nova pesquisa) é que talvez exista uma diferença psíquica e cerebral entre os psicopatas que se deixam pegar - ou seja, como sugerem os autores, os criminosos fracassados - e os bem-sucedidos, que conseguem perpetrar seus crimes em toda liberdade.
Pois bem, o resultado da pesquisa é o seguinte: nos criminosos fracassados (aprisionados), há, de fato, uma redução do volume da matéria cinza pré-frontal, enquanto os psicopatas bem-sucedidos (que evitam a prisão) têm um córtex parecido com o nosso.

Moral da história: a redução de matéria cinza no córtex não nos diz quem é psicopata e quem não é; ela nos indica apenas quem é impulsivo e, portanto, se for criminoso, tenderá a agir de maneira a ser preso. Note-se, de passagem, que, normalmente, os psicopatas criminosos de colarinho branco são menos impulsivos que os assaltantes de farol; é bem possível, aliás, que haja mais psicopatas fora da cadeia do que dentro.

Enfim, uma recomendação: de qualquer forma, se você for psicopata e criminoso, fique frio.

09 novembro 2006

"O Ano em que Meus Pais..."

No filme de Hamburger, a torcida de 70 é um ato de fé numa comunidade que talvez surja um dia

NA SEXTA passada, estreou o filme "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", de Cao Hamburger.

A história é conhecida: em 1970, os pais de Mauro, um menino de 12 anos, saem "de férias" para fugir da repressão. Por um imprevisto, Mauro acaba ficando sozinho e é acolhido pela comunidade judaica do Bom Retiro. Jogando seu futebol de botões, ele espera que os pais voltem, como lhe foi prometido, na hora da Copa.

Saí do cinema comovido, e não foi pela lembrança (que não tenho) do Brasil dos anos 70.
É que, no fundo, somos todos Mauros: alguns poucos, sem que a gente entenda direito como ou por quê, fazem "a História", e, no meio disso, nós vivemos amizades, saudades, aflições, exílios, pequenas e grandes paixões. Do ponto de vista da História com letra maiúscula, somos botões empurrados pela mão de quem joga (ou acha que está jogando), mas é no tabuleiro ou na mesa improvisada que as vidas concretas acontecem.

"A História", para nós, botões, é um pano de fundo, uma atmosfera. E Cao Hamburger é um mestre na criação de atmosferas. Sua obra anterior é um seriado para a HBO, "Filhos do Carnaval", que mereceria uma nova difusão. O seriado era dominado por uma uniformidade cromática (uma mistura fria de verdes e azuis) que era a cor de um mundo duro e impiedoso. Em "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", a cor dominante é um marrom grisalho, que, por si só, expressa o clima da ditadura em seu pior momento. Há um precedente: "Um Dia Muito Especial", de Ettore Scola (1977).

Na obra de Scola, o fascismo italiano tem uma cor parecida com aquela que é inventada por Hamburger (e pelo talento de Adriano Goldman, o cinematografista de ambas suas últimas obras). Mas a cor da opressão não é o único ponto em que o filme de Hamburger encontra o de Scola: nos dois filmes, os protagonistas são botões atropelados pelos "grandes" acontecimentos, seu drama humilde é um protesto, uma reivindicação da vida concreta contra as forças covardes da História.

Mauro, como disse, é acolhido pela comunidade judaica do Bom Retiro. Essa relação, que se constrói aos poucos, não é fruto de uma cumplicidade de idéias. Mal sabemos o que pensa, em matéria de política, o velho que acaba fazendo as vezes dos pais de Mauro, mas descobrimos, com ele e com Mauro, que, nos piores momentos, é possível contar com uma moral dos afetos, uma moral da vida concreta: uma solidariedade dos botões.

Mil vezes, ouvi dizer que a vitória do Brasil em 1970 foi "boa" para a ditadura (e que, se o Brasil ganhasse em 2006, Lula "capitalizaria"). A Itália ganhou suas primeiras copas durante o fascismo, em 1934 e 1938, e não sei como essas vitórias foram vividas, na época, pelos militantes antifascistas. Seja como for, o filme nos mostra o Brasil reunido e parado diante dos televisores e dos rádios; até nos redutos da oposição, a hora do jogo é um momento de trégua. A impressão (verídica, ao que tudo indica) é que, apesar de uma divisão sangrenta, graças ao futebol, ainda existia uma nação.

Mas em que sentido? Será que se tratava de uma torcida patriótica pela qual a seleção seria um símbolo nacional abstrato, uma bandeira? E, se fosse assim, no que essa torcida seria diferente da paixão guerreira de quem procura ou inventa adversários para poder gritar "my country, right or wrong" (meu país, de qualquer forma, tanto faz que ele esteja certo ou errado)?

O patriotismo, como diz a famosa frase de Samuel Johnson (com a qual concordo, aliás), é "o último refúgio dos canalhas": é um recurso para encontrar, na coletividade, força, identidade e "bom direito" sem levantar perguntas que seriam incômodas se fossem colocadas aos indivíduos, um a um.

Não vou recorrer a argúcias para provar, sei lá como, que a inspiração das torcidas pode ser de um quilate melhor que a do patriotismo canalha. Não é necessário, pois o filme de Hamburger responde: nele, a torcida de todos, em 70, é o momento comovedor de uma aposta, um ato de fé numa comunidade de destino, que surge por um momento no Bom Retiro onde Mauro se encontra e que talvez surja, um dia, depois do sangue e da raiva.

É como se a torcida nacional celebrasse não uma bandeira abstrata, mas a comunidade real, concreta, aquela que não existe, mas cujo sonho vive e continua, há alguns séculos, apesar de divisões e diferenças, apesar de tudo.

02 novembro 2006

Viva o cinema



Nunca sentimos tanto a unidade por trás da variedade de culturas: é graças ao cinema


CHEGA AO fim a 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Fui convidado a fazer parte do júri. Funciona assim: concorrem ao prêmio os filmes de diretores "jovens" (a obra deve ser seu primeiro ou segundo longa-metragem), os votos dos espectadores da mostra selecionam 15 finalistas, entre os quais um júri de sete pessoas escolhe qual ou quais premiar.

Desde domingo passado, assisto a três ou quatro filmes por dia. Na minha adolescência, passava as tarde de sábado no cineclube do meu colégio e assistia a dois filmes. À noite, quase sempre, ia ao cinema. Mas era só um dia por semana.

Guardo com carinho os diários do meu pai; são quase 60 volumes, de 1936 a 1994. A partir do fim dos anos 40, em média três vezes por semana, meus pais iam ao cinema, anotavam o título, o diretor e os atores principais, atribuíam uma nota ao filme (de zero a dez) e escreviam brevemente por que tinham gostado (ou não). Quando me dou o prazer (um pouco doloroso) de ler os diários, sempre me surpreendo com essas anotações: há filmes que eles adoraram e que eu presumia que eles tivessem detestado.

Imaginava que eles reprovariam aqueles filmes que falavam de uma experiência próxima de minhas inquietudes e (portanto, eu supunha) afastadíssima da visão do mundo de meus pais; ora, tanto "Juventude Transviada" quanto "De Punhos Cerrados" ganharam um 9. Ou, então, pensava que eles não gostariam de narrativas inovadoras, pouco convencionais; ora, "Fellini 8 1/2" também ganhou um 9.

Há uma entrada, de 1974, que é enigmaticamente sintética. Apenas o título e a nota, sem comentário nem nome do diretor e dos atores: "C'Eravamo tanto Amati - 10".
Para quem tinha vivido a resistência antifascista, o filme de Ettore Scola ("Nós que Nos Amávamos Tanto") era um balanço que deixava sem palavras.

O cinema é uma arte maravilhosa: um filme consegue nos envolver numa história e num mundo (semelhantes ao nosso ou radicalmente diferentes dele, tanto faz) muito mais rapidamente que a leitura de um romance. Além disso, o cinema conseguiu ensinar sua linguagem a seus espectadores de maneira, por assim dizer, indolor: todos entendem e reconhecem campos e contracampos, inversões temporais e deslizes da realidade ao sonho. Ninguém precisou estudar dicionário, gramática e sintaxe: a narrativa era imediata e magicamente acessível.

Graças ao cinema, qualquer sujeito da segunda metade do século 20 se apaixonou, comoveu-se, indignou-se por uma diversidade inédita de histórias. Com isso, nunca como hoje tivemos uma consciência da unidade por trás da multiplicidade das culturas e dos destinos. Nunca como hoje tivemos a sensação de que a imensa variedade das experiências humanas (misérias e grandezas, sonhos e pesadelos) é apenas um repertório de vidas que poderiam todas ser as nossas -a ponto que, por um instante, numa sala escura, sentimos facilmente seu gosto.

Não é louco pensar (com otimismo) que os conflitos que se exacerbam hoje (entre culturas, religiões e mesmo entre os que têm mais e os que não têm nada) sejam sobressaltos penosos, que resistem à rápida expansão do sentimento de uma comunidade de destino. Na aceleração dessa expansão, o papel do cinema foi e é crucial.

Claro, nas próximas semanas, comentarei os filmes que mais me tocaram. Mas, desde já, gostaria de organizar uma sessão dupla. Um dos filmes é egípcio, "O Edifício Yacoubian", de Marwan Hamed; o outro é norte-americano, "Shortbus", de John Cameron Mitchell (espero que logo entrem em cartaz).

O filme egípcio é o retrato de um mundo dilacerado entre a nostalgia de um passado tradicional, a corrupção de uma plutocracia com ares de democracia e a tentação do fundamentalismo como forma de vingança. O filme americano é o retrato de uma geração perdida na procura impossível (e cômica) do orgasmo e do amor perfeitos. Pois bem, eu sonho com uma cabine em que sentassem para projeção dupla os governantes dos países ocidentais (a começar pelos EUA) e as elites políticas e religiosas dos países islâmicos. Na verdade, seria bom que os povos também assistissem: é minha proposta para começar a resolver o conflito que assola o começo deste século.

De todas as soluções propostas nas últimas décadas, é a menos estapafúrdia. Prova disso: com esses filmes ou com outros, ela já está acontecendo.