09 novembro 2006

"O Ano em que Meus Pais..."

No filme de Hamburger, a torcida de 70 é um ato de fé numa comunidade que talvez surja um dia

NA SEXTA passada, estreou o filme "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", de Cao Hamburger.

A história é conhecida: em 1970, os pais de Mauro, um menino de 12 anos, saem "de férias" para fugir da repressão. Por um imprevisto, Mauro acaba ficando sozinho e é acolhido pela comunidade judaica do Bom Retiro. Jogando seu futebol de botões, ele espera que os pais voltem, como lhe foi prometido, na hora da Copa.

Saí do cinema comovido, e não foi pela lembrança (que não tenho) do Brasil dos anos 70.
É que, no fundo, somos todos Mauros: alguns poucos, sem que a gente entenda direito como ou por quê, fazem "a História", e, no meio disso, nós vivemos amizades, saudades, aflições, exílios, pequenas e grandes paixões. Do ponto de vista da História com letra maiúscula, somos botões empurrados pela mão de quem joga (ou acha que está jogando), mas é no tabuleiro ou na mesa improvisada que as vidas concretas acontecem.

"A História", para nós, botões, é um pano de fundo, uma atmosfera. E Cao Hamburger é um mestre na criação de atmosferas. Sua obra anterior é um seriado para a HBO, "Filhos do Carnaval", que mereceria uma nova difusão. O seriado era dominado por uma uniformidade cromática (uma mistura fria de verdes e azuis) que era a cor de um mundo duro e impiedoso. Em "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", a cor dominante é um marrom grisalho, que, por si só, expressa o clima da ditadura em seu pior momento. Há um precedente: "Um Dia Muito Especial", de Ettore Scola (1977).

Na obra de Scola, o fascismo italiano tem uma cor parecida com aquela que é inventada por Hamburger (e pelo talento de Adriano Goldman, o cinematografista de ambas suas últimas obras). Mas a cor da opressão não é o único ponto em que o filme de Hamburger encontra o de Scola: nos dois filmes, os protagonistas são botões atropelados pelos "grandes" acontecimentos, seu drama humilde é um protesto, uma reivindicação da vida concreta contra as forças covardes da História.

Mauro, como disse, é acolhido pela comunidade judaica do Bom Retiro. Essa relação, que se constrói aos poucos, não é fruto de uma cumplicidade de idéias. Mal sabemos o que pensa, em matéria de política, o velho que acaba fazendo as vezes dos pais de Mauro, mas descobrimos, com ele e com Mauro, que, nos piores momentos, é possível contar com uma moral dos afetos, uma moral da vida concreta: uma solidariedade dos botões.

Mil vezes, ouvi dizer que a vitória do Brasil em 1970 foi "boa" para a ditadura (e que, se o Brasil ganhasse em 2006, Lula "capitalizaria"). A Itália ganhou suas primeiras copas durante o fascismo, em 1934 e 1938, e não sei como essas vitórias foram vividas, na época, pelos militantes antifascistas. Seja como for, o filme nos mostra o Brasil reunido e parado diante dos televisores e dos rádios; até nos redutos da oposição, a hora do jogo é um momento de trégua. A impressão (verídica, ao que tudo indica) é que, apesar de uma divisão sangrenta, graças ao futebol, ainda existia uma nação.

Mas em que sentido? Será que se tratava de uma torcida patriótica pela qual a seleção seria um símbolo nacional abstrato, uma bandeira? E, se fosse assim, no que essa torcida seria diferente da paixão guerreira de quem procura ou inventa adversários para poder gritar "my country, right or wrong" (meu país, de qualquer forma, tanto faz que ele esteja certo ou errado)?

O patriotismo, como diz a famosa frase de Samuel Johnson (com a qual concordo, aliás), é "o último refúgio dos canalhas": é um recurso para encontrar, na coletividade, força, identidade e "bom direito" sem levantar perguntas que seriam incômodas se fossem colocadas aos indivíduos, um a um.

Não vou recorrer a argúcias para provar, sei lá como, que a inspiração das torcidas pode ser de um quilate melhor que a do patriotismo canalha. Não é necessário, pois o filme de Hamburger responde: nele, a torcida de todos, em 70, é o momento comovedor de uma aposta, um ato de fé numa comunidade de destino, que surge por um momento no Bom Retiro onde Mauro se encontra e que talvez surja, um dia, depois do sangue e da raiva.

É como se a torcida nacional celebrasse não uma bandeira abstrata, mas a comunidade real, concreta, aquela que não existe, mas cujo sonho vive e continua, há alguns séculos, apesar de divisões e diferenças, apesar de tudo.

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