30 setembro 2004

Elogio das eleições

Em época de eleições, sempre ouço comentários sarcásticos: votar é participar de um processo idiota, em que um monte de sujeitos desinformados escolhem administradores e representantes segundo critérios que nada têm a ver com as questões e os valores em jogo.

Responder o quê? É um fato: em sua maioria, os eleitores são desinformados. Eis um exemplo americano (sem ufanismo: a situação no Brasil não deve ser melhor): o Program on International Policy Attitudes (programa que estuda as opiniões dos cidadãos sobre política internacional), da Universidade de Maryland, nos EUA, quis saber o que pensam os americanos em matéria de ajuda a países estrangeiros. Resultados: em 2002, a maioria dos americanos queria que os EUA gastassem US$ 1 em ajuda a países estrangeiros a cada US$ 3 destinados à defesa nacional. De fato, os EUA gastam US$ 1 em ajuda internacional a cada US$ 19 investidos na defesa.

Portanto você poderia imaginar que os ditos americanos quisessem gastar menos em armamentos e mais em ajuda internacional. Nada disso: em sua maioria, os ditos americanos pensavam que os EUA investiam demais em ajuda internacional. Como pode? Simples. Eles não conheciam as alocações orçamentárias: acreditavam que os EUA gastassem 24% de seu Orçamento em ajuda a países estrangeiros (um disparate; na realidade, a ajuda internacional absorve 1% do Orçamento dos EUA).

O que aconteceria na hora de esses cidadãos votarem? Aclamariam o candidato que prometesse diminuir a ajuda a países estrangeiros. No entanto, se conhecessem o tamanho real dessa ajuda, eles prefeririam aumentá-la.

Não me diga que esses sujeitos seriam informados graças ao debate entre partidos e candidatos. Sob a névoa das campanhas eleitorais, é provável que ninguém aprenda coisa alguma. Você, eleitor paulistano médio, depois de semanas de horário eleitoral, sabe mesmo quem começou as obras daquela estação de metrô que lhe interessa?

O eleitor desinformado, então, escolhe baseando-se em quê?

Nosso interlocutor desabusado dirá que o voto é efeito de marketing, de interesses privados imediatos e de simpatias irracionais. Nada a ver com a idéia do bem público. Ele concluirá: não seria melhor desistir da democracia e confiar o governo a quem sabe das coisas? (Detalhe: quem pensa assim, em geral, inclui-se na elite dos que sabem das coisas.)

Sem chegar a tanto, é banal considerar que o funcionamento democrático seria "dos males o menor". Entende-se por quê: nossa cultura valoriza a consciência crítica dos indivíduos. As decisões coletivas nos parecem fadadas ao erro por serem paixões da massa manipulada ou médias estatísticas, consensos numéricos sem argumentação e sem complexidade.

Ora, acaba de sair um livro divertido, perfeito para uma época de eleições, "The Wisdom of Crowds" (a sabedoria das multidões), de James Surowiecki. O livro é uma mina de exemplos, nos quais aparece que as coletividades chegam a decisões parecidas com as dos mais sábios. As experiências relatadas funcionam mais ou menos assim: reúne-se um grupo de sujeitos com grandes competências específicas para a solução de um problema. Para resolver o mesmo problema, reúne-se outro grupo de sujeitos com competências menores e muito menos específicas. Comparam-se os resultados. Misteriosamente, os resultados do segundo grupo (menos homogêneo e menos competente) são parecidos com os do primeiro (ou, então, são melhores). Não me pergunte por quê; o fato é que a diversidade dos sujeitos que compõem o segundo grupo parece valer tanto quanto a competência dos especialistas, se não mais. Os chutes e os palpites dos desinformados competem com as decisões argumentadas dos "experts".

A misteriosa sabedoria das multidões não é o único argumento a favor da prática democrática. Há outro, talvez mais importante. Para introduzi-lo, uma anedota. Zombei de um amigo inglês, pelo fato de a Grã-Bretanha ser "ainda" uma monarquia. Ele me respondeu que eu não entendia a beleza do sistema: a cada semana, o primeiro-ministro, homem inteligente e escolhido pelo voto popular, deve prestar conta a um rei ou a uma rainha ignaros, eventualmente arrogantes e escolhidos pela roleta genética. A humildade necessária para essa prestação de contas seria, segundo meu amigo, a suprema virtude democrática inglesa.

Adaptemos essa anedota ao funcionamento das eleições. Os que sabem das coisas (nós, não é?) devem tolerar que a escolha de representantes e governos esteja nas mãos de uma massa, da qual eles fazem parte, mas que lhes parece ser composta, em sua maioria, de sujeitos que decidem Deus sabe segundo qual critério.

O exercício democrático, nota Surowiecki em sua conclusão, é a "experiência de não ter tudo o que a gente quer. É a experiência de ver nossos opositores ganharem (...) e de aceitar essa situação". Acrescento que é também a experiência de ser apenas um entre outros.

Nisso, as eleições são terapêuticas, pois não há cura para a dor de viver que não peça justamente que desistamos de considerar que somos extraordinários, onipotentes e únicos.

23 setembro 2004

Controlar e regulamentar

Regulamentar está na moda.

Nos últimos tempos, 1) o governo propôs a criação de uma agência nacional que fomentaria e fiscalizaria a produção cinematográfica e audiovisual; 2) o presidente da República apoiou repetidamente o projeto de instituir um Conselho Nacional de Jornalismo que exala um perfume de censura; 3) o Conselho Federal de Psicologia apresentou um novo código de ética, segundo o qual os psicólogos teriam a obrigação de denunciar os pacientes que cometessem ou relatassem atos violentos e ilícitos; 4) tramita no Senado um projeto de lei segundo o qual qualquer diagnóstico e qualquer indicação de tratamento seriam atos reservados ao médico. Na semana passada, aliás, profissionais e estudantes de várias categorias da saúde (farmácia, fisioterapia, educação física, enfermagem, fonoaudiologia, nutrição, psicologia, odontologia, biologia, biologia médica etc.) manifestaram-se contra o projeto pelo Brasil afora.

Essas propostas, concebidas supostamente para o bem da comunidade, ferem a liberdade dos indivíduos sem que apareça com clareza a necessidade desse sacrifício.

Tomemos o caso da lei do ato médico. Imagine: estou com câncer e acredito nos poderes de uma terapia oriental pela queima de incenso ou na eficácia de operações espirituais. Você é médico e aprendeu que nada disso funciona. Você tem o direito e o dever de me informar. Pode também excluir essas práticas da lista dos procedimentos oferecidos pela assistência pública, pois é lógico que a dita lista seja estabelecida segundo o consenso majoritário em matéria de saúde. Mas pergunto: é necessário que uma lei impeça meu sábio oriental ou espírita de praticar sua arte, de se dizer terapeuta e de propor seus serviços como cura?

Alguém dirá que a lei do ato médico nos protege contra a charlatanice. Respondo: a comunidade tem o dever de tutelar seus membros, mas será que isso a autoriza a legiferar sobre as escolhas dos cidadãos como se fossem menores? Além disso, os critérios da legislação não são simples.
A história da medicina é uma longa batalha entre idéias e práticas que se acusaram mutuamente de charlatanice.

Considere o eletrochoque. Em poucas décadas, essa prática terapêutica dos transtornos mentais deixou de aparecer como uma cura milagrosa e se tornou uma prática execrada. Hoje, alguns afirmam que o choque é eficaz em casos de depressão grave e resistente; outros querem bani-lo. Se fosse preciso legislar, faria sentido decidir que qualquer prática é legítima à condição que seu defensor seja médico?

Não é melhor não legislar e deixar que o paciente e seus próximos, uma vez informados, escolham livremente a terapia e o terapeuta?

Os espaços sociais, em sua maioria, são administrados pelas interações concretas que os indivíduos inventam; por que, de repente, tantos espaços necessitariam dos cuidados do legislador? De onde vem essa epidemia de propostas que querem nosso bem e comprometem nossa autonomia?

Na "Veja" desta semana, Roberto DaMatta afirma que o governo do momento tem duas faces: uma face que acredita no indivíduo como valor e uma face pela qual a organização do coletivo (sindicatos, corporações, conselhos etc.) seria mais importante do que as pessoas concretas. Em suma, uma face que acredita nas cabeças, e outra que acredita mais nos bonés.

É uma luta que dura desde o começo da modernidade. Num canto, Adam Smith, com a idéia de que é preciso legislar pouco, pois os indivíduos encontram jeitos de conviver à força de acertos e desacertos. No outro, Rousseau, com a idéia de que é preciso estabelecer uma vontade geral, extrair regras "certas" da confusão de nossas vidas e impô-las a todos.

Atualmente, Rousseau parece prevalecer na administração de nossa vida concreta. É estranho que isso aconteça logo hoje, quando Adam Smith prevalece na hora de o governo fazer suas escolhas econômicas fundamentais.
Surge a suspeita de que se manifeste aqui um mecanismo que, no passado, transformou muitos revolucionários em burocratas: não conseguiram mudar as grandes estruturas do mundo segundo seus desejos, mas se dedicaram a regulamentar a vida cotidiana minuciosa e opressivamente. Ou seja, sonharam em vão com um mundo radicalmente feliz e passaram a instituir regras para mil casos em que seria melhor "deixar como está para ver como fica".

Eis uma constatação banal em psicopatologia. Há pessoas que regulam sua própria vida a ponto de transformá-la num pesadelo de obediências. Alguém só pode virar à esquerda se ele chegar na esquina com o pé direito; outro só pode pagar se tiver o troco exato no bolso. Em geral, os sistemas de regras são mais complexos. De qualquer forma, essas pessoas, algozes de sua própria liberdade, têm um traço em comum. Quase sempre, elas carregam consigo a lembrança ou a fantasia de uma imensa felicidade que lhes foi retirada ou com a qual sonharam e que não aconteceu. Em geral, o excesso de regras que elas impõem a suas vidas tem uma dupla função.

Serve para consolar: perdi o paraíso, mas continuo controlando o mundo. E serve para proteger: a lembrança do paraíso perdido é tão forte que minha vontade de reencontrá-lo me atropelaria se eu não regrasse cada passo de meu caminho.

Difícil não perguntar: alguma relação com a atual paixão de regulamentar a vida?

16 setembro 2004

"Cama de Gato"

"Cama de Gato", de Alexandre Stockler, estréia amanhã em São Paulo, Rio e Brasília. Espero que chegue logo ao resto do país. Assisti ao filme no sábado à noite, numa pré-estréia, e desde então ele cresce na lembrança.

Conselho a adolescentes, pais, educadores e outros interessados na adolescência: não percam.

O filme chega com duas reputações.

A primeira é a de ser escabroso. Bom, se a visão de dois pintos e um momento de sexo oral forem incômodos para você, feche os olhos e agüente firme: o resto compensará seu esforço.
A segunda é a de ser uma versão brasileira e pobre de "Kids" (filme de Larry Clark, de 1995). Ora, "Cama de Gato" tem uma qualidade moral decididamente superior à do filme de Clark.

Lembra de "Kids"? A gente saía com uma sensação contraditória: o filme inspirava um tipo de horror pela vida violenta e vazia dos adolescentes retratados, mas também conferia à adolescência sem rumo dos protagonistas uma dimensão inevitavelmente glamourosa. Era difícil ser adolescente, ver "Kids" e não querer para si os espasmos desesperados dos "teens" de Washington Square.

Alguns dirão que esse é o efeito sedutor da pátina hollywoodiana. "Cama de Gato" não produziria esse efeito graças à sua filmagem áspera, em vídeo (filmagem, aliás, que eu achei particularmente feliz). E graças a uma montagem que não deixa o tempo de sonhar com identificações possíveis, pois a narração é entrecortada por rápidas entrevistas de adolescentes "reais" ou pela aparição dos três personagens assistindo a seu próprio filme num cinema. De fato, "Cama de Gato" é estilisticamente mais próximo de "Bruxa de Blair" do que de "Kids". Mas não são apenas o tom de documentário e o distanciamento "à la Brecht" que fazem a diferença.

Os três amigos do filme de Stockler são muito mais complexos que os adolescentes de "Kids". Por isso eles são mais próximos dos adolescentes de nossa classe média urbana. Como diz um dos protagonistas, eles são, socialmente, pobres demais para serem ricos e ricos demais para serem pobres. São estudiosos o suficiente para passar em seus vestibulares e decididos a conquistar com diligência um lugar ensolarado para suas vidas adultas. Preocupam-se com as injustiças do mundo no qual vivem. E sua soltura na hora da balada não impede que eles sejam "bons" filhos, que respeitam pais e mães.

É essa "normalidade" que torna escandalosa a outra face dos adolescentes "médios" de "Cama de Gato" -escandalosa não pela licenciosidade (a gente não vai se indignar com uma transa, quatro beijos de língua, um baseado ou mesmo uma linha de cocaína no banheiro), mas pelo conflito trágico que exaspera os protagonistas e os leva ao pior.

Mesmo assim, a tragédia e o conflito poderiam conferir às aventuras dos três amigos uma espécie de grandeza épica "invejável". A inquietude famélica de suas noites poderia ser glamourosa como as aventuras dos "Kids". Ora, "Cama de Gato" evita essa armadilha pela sua força cômica.
Assisti ao filme numa sessão da meia-noite. Ao nosso lado estavam sentados três adolescentes, talvez um pouco "fumados": sua hilaridade contagiante era a prova de que o filme os forçava a se enxergar de uma maneira que devia ser, ao mesmo tempo, certeira e dificilmente tragável. Ou seja, o filme, aparentemente, oferecia-lhes uma imagem na qual se reconheciam, mas com a qual não devia ser agradável identificar-se.

Para não contar o filme, direi apenas que, juntando várias cenas, saí presenteado por uma extraordinária imagem da adolescência. E vai levar um bom tempo para que eu encontre uma melhor.

A imagem é esta: três jovens amigos, errando de carro na noite, fumam raivosamente seus cigarros, talvez por medo de se acalmar; são licenciosos na fala e nos atos, mas prontos a escarnecer a prostituta ou o travesti que lhes fala de um desejo com o qual, de fato, não sabem bem como lidar; metralham considerações pernósticas sobre as mudanças das quais o mundo precisa, mas estão prontos a agredir o miserável, talvez por medo de se parecer com ele; enfim, carregam dois presuntos com os quais não sabem o que fazer. Um é, classicamente, o corpo materno, do qual é complicado se separar; o outro é o corpo de alguém que poderia ser uma companheira se, para os adolescentes, na ingrata tarefa de definir sua identidade, o grupo de amigos não fosse sempre mais importante do que as difíceis negociações de qualquer história de amor.

Também não me esquecerei tão cedo da imagem dos três amigos, perdidos no lixão como personagens de Beckett à espera de um Godot que não chega e que certamente não é o pai; pois os pais, pelo que é de encontrar o norte na hora do vamos ver, talvez sejam tão perdidos quanto seus filhos adolescentes.

Na mesma noite em que assisti a "Cama de Gato", vi (também imperdível) "Redentor", de Cláudio Torres, que, como Stockler, propõe seu primeiro longa. Os dois filmes têm um traço em comum: em ambos, o efeito cômico não é fruto de uma caricatura, não é efeito de nenhuma simplificação grotesca. Admiravelmente, em ambos os filmes, o cômico revela a diabólica complicação do mundo. Viva o cinema brasileiro.

09 setembro 2004

Um novo código para os psicólogos

Na Folha de domingo passado, uma reportagem de Fabiane Leite apresentava e comentava o projeto de um novo código de ética profissional do psicólogo, que será votado pela categoria em dezembro. Uma novidade inquietante concerne à questão do sigilo profissional.

Segundo o código em vigor, o psicólogo tem a (angustiante) liberdade de decidir em que circunstâncias extremas sua experiência e consciência podem exigir que ele quebre o sigilo e informe as autoridades competentes.

O novo código proposto adota o modelo norte-americano, pelo qual a quebra do sigilo não é um direito, mas um DEVER do profissional. O psicólogo será obrigado a informar a autoridade judiciária não só se ele for informado de um crime, mas quando ele achar que há risco ou ameaça para a integridade física ou psicológica de alguém. Se o dito alguém for criança, adolescente ou idoso, não será preciso que haja risco e ameaça, bastará a SUSPEITA.

Então, se você for psicólogo e não quiser que sua licença seja cassada, não hesite: caso seu/sua paciente declare que para ele/ela teria sido melhor não nascer (risco de suicídio, não é?) ou que seria bom estrangular o marido, a mãe ou a professora de matemática (risco de assassinato, não é?), ligue logo para a procuradoria. Espero que sejam criadas linhas 0800. Para facilitar o encaminhamento das denúncias, sugiro que a primeira triagem seja automática: se seu paciente pensou em suicídio, disque 1; se seu paciente pensou em assassinato, disque 2. Se ele pensou em assassinar a mãe ou o pai, disque 1; se ele pensou em assassinar você, disque 2.

A nova prescrição é catastrófica para qualquer prática psicoterápica. Na primeira entrevista, o psicólogo avisará: "Saiba que, se sua palavras acarretarem um risco, uma ameaça ou uma suspeita de perigo para a incolumidade física ou psíquica sua ou de outrem, informarei as autoridades. Agora fale livremente". Legal, não é?

De fato, como acontece nos EUA, funcionará um regime duplo. O psicólogo que trabalha em serviços comunitários considerará que sua responsabilidade é diante da comunidade; portanto ele encontrará no código o respaldo necessário para quebrar o sigilo sem tormentos excessivos. O profissional liberal continuará decidindo em seu foro íntimo. Conclusão: será institucionalizada a impossibilidade de tratamentos psicoterápicos dignos para pacientes de baixa renda.

Tomemos um caso real em que o novo código forçaria a informar as autoridades.

Uma moça se queixa de que o padrasto tentou seduzi-la. Será que se trata de fantasias em que pesam a recusa do novo marido da mãe e o ciúme pelo sucesso amoroso materno? Sei que qualquer moça, para tornar-se mulher, precisa encontrar (e recusar) algum indício de desejo no olhar do pai ou de quem ocupa seu lugar. Sei também que uma sedução efetiva pelo pai ou pelo padrasto produz um desastre psíquico: a moça se torna mulher, mas uma mulher sem pai. Afinal, se o pai me deseja realmente, ele não passa de um homem qualquer.

Então, denuncio o padrasto? O casal se separará (o padrasto indo eventualmente para a cadeia, por justa causa ou não) ou então a moça irá para um internato e, eventualmente, para outra família escolhida pelo tribunal. De qualquer forma, a moça se sentirá traída e punida por seu terapeuta. Falou de um receio, de uma fantasia ou mesmo de um fato de sua vida e o céu lhe caiu sobre a cabeça.

Segundo o código antigo, o tormento da decisão está com o terapeuta. Segundo o novo código, não tenho tempo para me atormentar: se me calo, sou cúmplice.

O único benefício certo do novo código é que o psicólogo será menos angustiado na hora de decidir sua conduta. Graças a Deus, agora ela é obrigatória.

Aos psicólogos que querem adequar o código brasileiro ao código norte-americano, sugiro a leitura do livro de Cristopher Bollas, "The New Informants".

Também importa lembrar que o psicoterapeuta (psicólogo ou não) tem o dever (isso sim) de interrogar-se sobre suas próprias motivações.

Ora, para evitar o exercício de nossa liberdade, inventamos estratégias sociais (leia-se, para começar, "O Medo à Liberdade", de Erich Fromm). E existem as estratégias singulares e patológicas pelas quais gostamos de transformar os direitos em deveres. Há sujeitos que só conseguem desejar por obrigação. Funciona assim, por exemplo. Alguém é obcecado por uma fantasia homossexual, mas não quer encarar seu desejo; preferem instituir uma regra: se ele chegar no limiar da sauna com o pé esquerdo, será obrigado a entrar. Sem isso, a entrada está proibida. Que alívio, não é?

Há mais. Entrevistado por Fabiane, Marcelo Del Chiaro, advogado do conselho regional de psicologia, declarou: "Tudo o que é ilícito deve ser denunciado. O que está se querendo é nortear um princípio quanto a isso". Entendi: terapia de toxicômano acontecerá só nos presídios.
É estranho. Eu esperava que qualquer psicólogo quisesse sobretudo escapar ao veredicto de Michel Foucault, segundo o qual é inelutável que os cuidados para com o bem-estar se transformem em formas insidiosas de controle social.

Aliás, outra leitura urgente: "A Vontade de Saber", de M. Foucault.

02 setembro 2004

A corrida de Vanderlei Cordeiro de Lima

Vanderlei Cordeiro de Lima estava muito bem colocado para ganhar a maratona da Olimpíada de Atenas; depois de 36 quilômetros, corria com quase 40 segundos de vantagem.

Foi agredido, parado e derrubado pelo ex-padre Cornelius Horan, que estava ansioso por comunicar ao mundo sua mensagem. Fato incrível, Vanderlei encontrou a força e a concentração necessárias para retomar a corrida e conquistou o bronze.

Quanto a Horan, ele pagou uma fiança e, nesta altura, deve estar de volta à Inglaterra, acalmado pela breve prisão e por um antipsicótico. Se eu fosse juiz em Atenas, teria condenado o ex-padre Horan a correr uma maratona inteira movido a pontapés no traseiro. Isso, se fosse possível encontrar alguém que tivesse o fôlego para ficar atrás dele e lhe administrar a punição.

Durante dois anos de minha vida, pratiquei esporte de competição (nada de olímpico, apenas campeonatos universitários). Basta-me para ter uma idéia do que é o treino de um atleta como Vanderlei. Nada a ver com malhar para ficar bonito ou saudável. Certo, há o projeto de correr mais rápido que os outros, mas, no fundo, treinar é uma ascese que dispensa a promessa do paraíso ou da vitória. O treino é como uma obra de arte clássica; sua beleza está em sua aparente futilidade, no exercício de uma disciplina que não tem finalidade externa. O treino não transmite nenhuma mensagem urgente; ele "apenas" diz da capacidade humana de se engajar numa tarefa difícil. Por isso o treino é um exemplo moral: ensina que, para se dedicar a viver, não é preciso que a vida tenha um sentido.

Agora, imaginemos que o ex-padre Horan seja um profeta menos louco e confuso. Imaginemos que sua mensagem encontre nossa aprovação: qualquer coisa, desde o genocídio em curso no Sudão até a Aids na África ou a guerra no Iraque. Mais próximo do que ele mesmo deve pensar, imaginemos que se trate de uma espécie de segredo de Fátima que ele seria encarregado de transmitir e que poderia, se fosse escutado, tocar os corações de todos nós.

Pois é, você dirá, muito legal, seu Horan. Mas por que escolher logo aquele momento, com um maratonista brasileiro em primeira posição? Por que não foi para Nova York protestar na calçada da convenção do Partido Republicano?

Fora que, em Nova York, nestes dias, não faltam "Horans" de todo tipo, parece que o ex-padre tem um interesse específico por esporte. Já interveio numa corrida de Fórmula 1 e em jogos de rúgbi.

A competição esportiva deve ser o protótipo do que ele quer atrapalhar: "Parem de desperdiçar suas energias no esforço de correr ou bater bola; parem de torcer pelos atletas de seu coração. Acordem e façam algo mais útil para suas almas e para seus semelhantes".

Se o ex-padre Horan se dispusesse a escutar minha resposta, o que eu lhe diria?

Meus primeiros argumentos seriam uma defesa da vida concreta diante de exigências morais absolutas. É possível, eu diria ao ex-padre Horan, se importar com a guerra no Iraque e o genocídio no Sudão sem parar de viver histórias de amor, de ler romances, de tomar "capuccinos" na esquina, de cortar o cabelo, de treinar e de correr na próxima maratona.

Tentaria explicar ao ex-padre Horan que, certo, concordo: há coisas justas e coisas erradas e há coisas mais morais do que outras. Mas a vida, para nós, não é orientada por uma aspiração ou por um critério absoluto. Nossas escolhas são relativas não porque valeriam hoje e não amanhã, mas porque são concretas, relacionadas (é esse o sentido de nosso "relativismo") a realidades complexas e incertas, a do mundo e a nossa.

No entanto essas explicações conciliatórias talvez sejam enganosas. De fato, por concretas e incertas que sejam minhas escolhas morais, sei reconhecer a imoralidade. Pois acontece que a incerteza moral não é um "laissez-faire" ou uma forma de indiferença. Ao contrário, ela é para mim um valor essencial.

A meu ver, o ex-padre Horan, que não pesa na mesma balança a beleza da corrida de Vanderlei e a necessidade de conclamar sua fé, deu prova de uma inabalável certeza, que é o pecado moral supremo.

Em suma, a luta de Horan e Vanderlei é (como deve pensar Horan) a luta do bem contra o mal, só que (à diferença do que pensa Horan), nessa luta, Vanderlei é do bem, e Horan é do mal.
Nota, em clima de convenção do Partido Republicano em Nova York: é possível contrapor dezenas de razões pelas quais o governo americano devia ou não derrubar Saddam Hussein. Sempre há espaço para discutir sobre o certo e o errado. Mas o intolerável, o que é irremediavelmente errado, é a certeza moral com a qual a decisão foi argumentada.

Disse que a certeza moral é, para mim, o pecado moral supremo. Supremo, mas não por isso absoluto; a tal ponto que, justamente, posso desculpar o ex-padre Horan, porque entendo que seu gesto é o resultado da imponderável cadeia dos eventos concretos que constituem, banalmente, uma vida.

A Vanderlei, que conseguiu continuar a correr e sorrir no pódio, vão as felicitações e a glória devidas a um verdadeiro campeão.