Na Folha de domingo passado, uma reportagem de Fabiane Leite apresentava e comentava o projeto de um novo código de ética profissional do psicólogo, que será votado pela categoria em dezembro. Uma novidade inquietante concerne à questão do sigilo profissional.
Segundo o código em vigor, o psicólogo tem a (angustiante) liberdade de decidir em que circunstâncias extremas sua experiência e consciência podem exigir que ele quebre o sigilo e informe as autoridades competentes.
O novo código proposto adota o modelo norte-americano, pelo qual a quebra do sigilo não é um direito, mas um DEVER do profissional. O psicólogo será obrigado a informar a autoridade judiciária não só se ele for informado de um crime, mas quando ele achar que há risco ou ameaça para a integridade física ou psicológica de alguém. Se o dito alguém for criança, adolescente ou idoso, não será preciso que haja risco e ameaça, bastará a SUSPEITA.
Então, se você for psicólogo e não quiser que sua licença seja cassada, não hesite: caso seu/sua paciente declare que para ele/ela teria sido melhor não nascer (risco de suicídio, não é?) ou que seria bom estrangular o marido, a mãe ou a professora de matemática (risco de assassinato, não é?), ligue logo para a procuradoria. Espero que sejam criadas linhas 0800. Para facilitar o encaminhamento das denúncias, sugiro que a primeira triagem seja automática: se seu paciente pensou em suicídio, disque 1; se seu paciente pensou em assassinato, disque 2. Se ele pensou em assassinar a mãe ou o pai, disque 1; se ele pensou em assassinar você, disque 2.
A nova prescrição é catastrófica para qualquer prática psicoterápica. Na primeira entrevista, o psicólogo avisará: "Saiba que, se sua palavras acarretarem um risco, uma ameaça ou uma suspeita de perigo para a incolumidade física ou psíquica sua ou de outrem, informarei as autoridades. Agora fale livremente". Legal, não é?
De fato, como acontece nos EUA, funcionará um regime duplo. O psicólogo que trabalha em serviços comunitários considerará que sua responsabilidade é diante da comunidade; portanto ele encontrará no código o respaldo necessário para quebrar o sigilo sem tormentos excessivos. O profissional liberal continuará decidindo em seu foro íntimo. Conclusão: será institucionalizada a impossibilidade de tratamentos psicoterápicos dignos para pacientes de baixa renda.
Tomemos um caso real em que o novo código forçaria a informar as autoridades.
Uma moça se queixa de que o padrasto tentou seduzi-la. Será que se trata de fantasias em que pesam a recusa do novo marido da mãe e o ciúme pelo sucesso amoroso materno? Sei que qualquer moça, para tornar-se mulher, precisa encontrar (e recusar) algum indício de desejo no olhar do pai ou de quem ocupa seu lugar. Sei também que uma sedução efetiva pelo pai ou pelo padrasto produz um desastre psíquico: a moça se torna mulher, mas uma mulher sem pai. Afinal, se o pai me deseja realmente, ele não passa de um homem qualquer.
Então, denuncio o padrasto? O casal se separará (o padrasto indo eventualmente para a cadeia, por justa causa ou não) ou então a moça irá para um internato e, eventualmente, para outra família escolhida pelo tribunal. De qualquer forma, a moça se sentirá traída e punida por seu terapeuta. Falou de um receio, de uma fantasia ou mesmo de um fato de sua vida e o céu lhe caiu sobre a cabeça.
Segundo o código antigo, o tormento da decisão está com o terapeuta. Segundo o novo código, não tenho tempo para me atormentar: se me calo, sou cúmplice.
O único benefício certo do novo código é que o psicólogo será menos angustiado na hora de decidir sua conduta. Graças a Deus, agora ela é obrigatória.
Aos psicólogos que querem adequar o código brasileiro ao código norte-americano, sugiro a leitura do livro de Cristopher Bollas, "The New Informants".
Também importa lembrar que o psicoterapeuta (psicólogo ou não) tem o dever (isso sim) de interrogar-se sobre suas próprias motivações.
Ora, para evitar o exercício de nossa liberdade, inventamos estratégias sociais (leia-se, para começar, "O Medo à Liberdade", de Erich Fromm). E existem as estratégias singulares e patológicas pelas quais gostamos de transformar os direitos em deveres. Há sujeitos que só conseguem desejar por obrigação. Funciona assim, por exemplo. Alguém é obcecado por uma fantasia homossexual, mas não quer encarar seu desejo; preferem instituir uma regra: se ele chegar no limiar da sauna com o pé esquerdo, será obrigado a entrar. Sem isso, a entrada está proibida. Que alívio, não é?
Há mais. Entrevistado por Fabiane, Marcelo Del Chiaro, advogado do conselho regional de psicologia, declarou: "Tudo o que é ilícito deve ser denunciado. O que está se querendo é nortear um princípio quanto a isso". Entendi: terapia de toxicômano acontecerá só nos presídios.
É estranho. Eu esperava que qualquer psicólogo quisesse sobretudo escapar ao veredicto de Michel Foucault, segundo o qual é inelutável que os cuidados para com o bem-estar se transformem em formas insidiosas de controle social.
Aliás, outra leitura urgente: "A Vontade de Saber", de M. Foucault.
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