28 dezembro 2000

Prosperidade e miséria da década que acaba

Chega o fim do ano. Ao mesmo tempo, terminam o século e o milênio. Apesar dessa circunstância excepcional, é a década de 90 que, nestes dias, me parece merecer um balanço.

No controle da Polícia Federal americana, em Miami, há três filas: a da esquerda para os visitantes, a do meio para os residentes e a da direita para os cidadãos americanos. Um agente grita: "Vocês, cidadãos, passem à direita, avancem sem esperar...". E acrescenta: "You own it!". O tom maroto situa o significado de sua frase entre "é seu direito" e "vocês são donos do pedaço".

Penso, no estilo dos anos 90: "Falou certo! A democracia é uma espécie de co-propriedade. Há o dono da cobertura com piscina e o cara da quitinete do primeiro andar. No entanto são condôminos". Mas de onde vem essa idéia de democracia como condomínio? Lembro o antigo slogan da Bolsa de Nova York: "Own a share of America", ou seja, "Seja dono de uma parte (um título acionário) da América". Justamente criava uma confusão deliberada entre ser acionista e participar de uma democracia.

Desde os anos 40, vigora o projeto de convencer o cidadão de que possuir ações é um investimento seguro e altamente moral. Quando, mais tarde, os americanos foram convidados a investir autonomamente o dinheiro acumulado para suas aposentadorias, eles puderam, assim, participar da festa especulativa com todo o orgulho, pois quem investe em ações -sugeria o slogan- investe na nação, portanto ele persegue o bem comum.

Os anos 90 deram o toque conclusivo ao marketing da especulação. Graças à Internet, tornou-se fácil negociar ações e fundos passando por cima dos intermediários tradicionais. Dispensar os serviços dos agentes financeiros foi apresentado como uma revolução social, uma maneira de devolver o poder aos cidadãos. Graças ao investimento eletrônico, renascia a democracia direta.

Os cidadãos-investidores da década que acaba não precisam que ninguém os proteja contra os colossos da economia mundial. Eles desconfiam até dos governos, que sempre podem ser comprados por esses monstruosos poderes. Preferem manifestar diretamente sua vontade. Está cansado da IBM e prefere o estilo cool de Steve Jobs? Compre ações da Apple. Quer punir a Nike por ela explorar crianças tailandesas? Venda suas ações da companhia. O investidor exerceria sua influência diretamente sobre os verdadeiros centros do poder.

As cassandras repetem que o mundo de hoje seria governado por companhias que se situam acima dos governos nacionais eleitos e que são, portanto, insensíveis às formas tradicionais de controle político. Talvez elas tenham razão, mas já encontramos o remédio certo. O cidadão ideal dos anos 90, comprando e vendendo livremente suas ações, retoma as rédeas do mundo.

Essa idéia não teria vingado sem a ajuda de um outro consenso que também domina o espírito dos anos 90. A década começou simbolicamente, em novembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim. A vitória do capitalismo sobre o socialismo foi promovida não como triunfo de formas melhores de participação democrática, mas como vitória da liberdade de mercado. O consenso dos anos 90 grita que o mercado livre é o grande, talvez o único, pressuposto da democracia, a qual só avançaria pela queda dos impostos alfandegários e das reservas de mercado.

A década promoveu nos EUA e, progressivamente, no mundo ocidental um consenso inédito segundo o qual investir, especular e consumir são as práticas democráticas por excelência. Uma fantástica operação cultural conseguiu fornecer um pretexto moral tanto à sede de lucro do capital financeiro como ao consumo supérfluo: ambos manifestariam nosso anseio de democracia.

Segundo os anos 90, a democracia vinga quando podemos comprar e vender livremente produtos e ações. Ou seja, o meio democrático de agir sobre o mundo, nossa expressão política eficiente é a compra e venda. Somos cidadãos por sermos investidores e consumidores. PFL, PSDB, PT... qualquer escolha é irrelevante. Mas importa que possamos circular nos corredores dos supermercados e escolher a Garoto contra a Nestlé e a Tobler. Logo voltaremos para casa e, indignados, sei lá, com o custo dos remédios, venderemos on line nossas ações farmacêuticas.

Em 1989, o capitalismo ganhou do socialismo. O sonho dos anos 90 talvez fosse que o capitalismo tripudiasse também sobre a democracia liberal e realizasse uma nova utopia econômica, psicológica e social na qual o mercado seria a única dimensão de nossas vidas.
Em novembro de 1999, exatamente dez anos após a queda do Muro de Berlim, houve a primeira de uma série de manifestações -a de Seattle contra a Organização Mundial do Comércio. Disseram que era uma baderna. Só podia: todo barulho é pouco para nos acordar do sonho dos anos 90.

Ainda bem que a década acabou. Como o Grinch com o Natal, acho que ela queria roubar a democracia.

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